Saturday, August 27, 2011

Feitiço da Vila


O IAPI

Voltei agora do passeio guiado da Prefeitura de Porto Alegre, intitulada Viva o Centro a Pé, cujo tema deste sábado foi o do famoso Conjunto Habitacional Passo da Areia, mundialmente conhecido como a mítica Vila do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários(IAPI). Como dessa vez a caminhada não seria pelo Centro, fomos de ônibus (o sanfonão clássico tr00 da Carris). O orientador da visita itinerante foi o professor Helton Estivalet Bello, que também mantém trabalhos integrados à Secretaria de Planejamento da Capital.

A Vila, idealizada em 1946 e inaugurada em 1953 e tombada pelo Patromônio Histórico há cinco anos, é o mais conhecido exemplo de cidade jardim na cidade. A partir do fim dos anos 50, o Instituto passou a investir em conjuntos habitacionais - na sua maioria situados próximos à setores das grandes cidades com maior índice de industrialização massiva.

Esse é o caso de Porto Alegre. Como a Zona Norte passou a viver um surto de indústrias de todo o tipo, desde a Renner, que liderava uma rede de lojas de departamento até a Wallig e a Hercules, especializadas em produtos de metalurgia, surgiu a possibilidade de criar uma "cidade-dormitório" no limite entre os bairros São João e Passo da Areia.

A novidade é que, ao contrário das primeiras city gardens, como as paulistanas, o IAPI era subvencionado por um instituto ligado ao governo federal. Não seria a única do gênero no país; contudo, a vila porto-alegrense é a maior de todas: seu projeto chegaria a 2 mil domicílios e onze praças, além de um parque (o Alim Pedro) e de escolas.

O curioso é que, por mais sofisticado que possa parecer, o conceito de cidade jardim não sobrepujava o fato de que, a despeito de ser um conjunto habitacional, ele era de caráter popular, suburbano e que abrigava boa parte dos sem culotes de Porto Alegre.

Logo, a imagem ligeiramente preconceituosa que se teve a partir dali para designar o lugar o colocou sob uma aura semelhante ao que a maioria das pessoas tem com relação aos conjuntos do tipo Cohab ou BNH, e guardadas as devidas proporções.

A diferença é que, com o tempo, a concepção de habitação popular em massa (os BNH da vida) passaram a ser concebidos de forma mais racionalista e sucinta (e simplista), do ponto de vista arquitetônico. E a pobreza de concreto armado que nós vemos hoje é totalmente diferente da própria concepção de city garden que foi franqueada ao IAPI.

Ou seja, enquanto a expensão populacional obrigou os urbanistas a racionalizarem quaisquer soluções habitacionais, a questão estética ficou em segundo plano. E a característica principal do IAPI de Porto Alegre foi mantar uma integração quase total à natureza do lugar.

Para tanto, basta ver que as casas e o arruamento em geral é feito em função dos acidentes de terreno, principalmente na caída dos casarões que vão do topo do Alim Pedro até a Plínio Brasil Milano, ou a dos casebres que descem a Cristóvão até a Brasiliano de Morais. Com o surgimento das copas das árvores (eucalíptos, pessegueiras, jacarandás, abacateiros em flor), os casarões, em geral de dois andares e com águas furtadas, algums concebidos em pó de granito, ficam quase que camuflados em meio à paisagem abundante.

E isso num tempo em que havia tempo para se conciliar esse tipo de solução arquitetônica na hora de se pensar um espaço urbano plenamente integrado à natureza, algo que hoje é concebível com relação à cidases-jardim contruídas pela iniciativa privada, e não ao que concerne à construções populares.

Noves fora o fato de que o tempo passou; lá se vão sessenta anos desde a sua inauguração. Todas as estéticas passaram e o IAPI, que era tido como algo povão, passou a virar cult (?).

Por sinal, quando a gente desceu do ônibus, um Cocker Spinel de pelo cor de mel passou a nos seguir. ao que pude apurar, ele fugiu de uma pet shop e nos achou ali, peripateticamente fotografando, caminhando e seguindo as instruções do pessoal do passeio.

Cult porque ali na Rua Rio Pardo, 21, logo quando descemos (a Santo Amaro), à esquerda rumo à praça Chopin (cult), ali na esquina com a Novo Hamburgo, fica a casa onde morou a Elis Regina. Descendo a Pistóia, chegamos na Brasiliano, para enfim contornar o Alim Pedro pela Industriários.

Todo mundo aparcia ns janelas sem entender o que eram aqueles 200 malucos guiados por outro maluco empunhando um megafone e guiando um bando de curiosos e um cocker cor de mel.

Curiosos mesmo, porque se a gente pensar bem, quando nos inserimos num ritual desse tipo, nós acabamos nos colocando na situação do turista, porém numa situação prá lá de curiosa, que é a de ser flaneur na sua própria cidade. Claro que, nessa situação peculiar, ou seja, quando nos colocamos na pela do turista, o nosso ponto de vista ao ver (no fim das contas)a mesma coisa que a gente vê, vamos dizer assim, quase todos os dias, já que, de segunda a sexta, a Brisiliano vomita bilhões e bilhões de veículos que sobem e descem o IAPI e, no entanto, ninguém repara para ver o que é aquilo ali de fato.

Mas como eu ia dizendo, é justamente esse que é o ponto: essa visão moderna e anacrônica do que é o complexo habitacional do IAPI é que nos permite entender esse fenômeno típico das grandes cidades e a importância histórica do lugar na memória de Porto Alegre. E isso explica por que o IAPI hoje foi colocado em primeiro plano no sentido de revitalização e preservação de seu sítio.

Sobre isso, o nosso guia Helton Estivalet mostrou que esse senso de preservação histórica (dentro da visão anacrônica que eu comentei acima) se faz necessária pelo fato de que, nesses sesenta anos ou mais, boa parte daquelas construções foi sendo lentamente descaracterizada, e por seus rsspectivos moradores.

Ah, um parêntese: quando subíamos a avenida dos Industriários, o professor Estivalet apontou o dedo para o primeiro piso do edifício (Na área circundante à Brasiliano, os prédios ganham mais um andar e se situam em oblíquo, como que abrindo alas para o trânsito e protegando a porção anterior da vila) de esquina com a Tupanciretã e disse: "para quem gosta de rock, ali naquele prédio morava o fundador do [Liverpool e do] Bixo da seda, o Fughetti Luz". Depois, ele brincou: "de repente, o Fughetti deve estar acordando agora". Mas eu acho que ele não mora mais ali...

Voltando, caro leitor. Ocorre que muitos daqueles prédios tivaram dois tipo de intervenção: uma foi a substituição da conclusão externa feita em pó de granito por uma mão de pintura (aliás, ese é um erro tipicamente recorrente em prédios históricos, como o Hudson, na Caldas Júnior) ou a substituição das janelas originais por outras, de alumínio ou persianas de vinil).

A outra descaracterização, e essa bem pior é a de casos particulares onde um quarto andar foi adicionado a alguns conjuntos, como num prédio da Napoleão Laureano, onde nasceu uma água furtada com telha Zatilit, quase como se fosse um observarório. Por conta disso, ressaltou Helton Estivalet, urge a partir do tombamento do cojunto do IAPI, a preocupação para que essa adulteração arquitetônica seja impedida.



O começo


Fato é que essa preservação de prédios públicos ou de interesse público é um fenômeno recente, por parte dos governos e da sociedade civil, depois que nós vivemos a doença da destruição progressiva de sítios históricos não só de Porto Alegre quando de várias cidades brasileiras, num estilo que foi chamado de arquitetura brutalista, onde edifícios históricos eram sumariamente demolidos em favor de espigões de vinte andares.

Muito embora a tal brutalidade viesse do próprio descaso com o que hoje é considerado como intocável. Como no caso de igrejas como a Capela do Rosário e a do Menino Deus, que foram demolidas e substituídas por versões tenebrosas de cada uma delas. Uma que estava na lista para ser posta abaixo foi a do Bonfim e que, graças a um apelo da sociedade, ela foi reformada e está lá até hoje, como exemplo excelso de neoclassisismo puro (sem a cafonice positivista) em Porto Alegre, graças a Deus.

Quando subimos a Veranópolis, avistamos a terceira série de casarões do IAPI, que nos levam até a Plínio: por sua característica, elas têm frontões com rosáceas de tijolinhos à vista e pérgolas por sobre a porta principal - algo rococó demais para uma habitação popular, mas que se enquadrava dentro do projeto inicial do IAPI para esse tipo de residência, como as demais, inspirada num neocolonial bem simplista.

Terminamos o passeio (que durou aproximadamente uma hora e meia, incluindoo deslocamento) na simpática praça Província de Shiga. Confesso que não a conhecia e fiquei admirado, muito embora nem tanto, já que a preservação de sua beleza e exuberância se deve ao fato de que (felizmente) ela é cercada.

Então embarcamos todos no ônibus e voltamos para o Capitólio. Ah, havia uma produtora forográfica clicando uma modelo na pracinha (era a hora do fechamento do local, sempre ao meio-dia).

E que fim levou o Cocker Spinel?


:)

Thursday, August 11, 2011

Macumba em Parceria


O pobre diabo até que vinha tentando se lançar na carreira, mas sem sucesso. Não vingava nem no baixo clero da bola. Era apenas e tão somente um professor de educação física bem falante, pragmático. Chamavam-no o "papagaio de fraque". Foi quando resolveu procurar um bom pai-de-santo. Já tinha ouvido falar no homem, lhe disseram que era careiro, mas o caboclo dele era forte. Então, o treinador foi ter com ele. O mandingueiro deu uma lista de compras para o homem. Ao todo, pediu que ele comprasse umas velas pretas na flora, perfume de alfazema na farmácia, um galo preto mo mercadão, umas fitas azuis no armarinho e charutos na tabacaria. Feito o acordo, lá foram os dois para uma esquina.

Tempos depois, a carreira do cliente ia de vento em "polpa", como diria a Wanessa Camargo. De cara, ele pegou um time do interior do estado, e conseguiu levar um bando de pernetas às semifinais do regional. Logo, foi solicitado para atuar num clube também do interior, porém um pouco mais conhecido. Virou sensação do milênio! Só faltou matéria na Placar.

As coisas iam bem, só que no afã das vitórias, o nosso herói se esqueceu de pagar o pai-de-santo. Ele foi reclamar com o técnico. Este enrolou, enrolou, até que o outro se enfureceu. Os dois brigaram aos berros, um jurou o outro de morte. O técnico, irritado, decidiu que não ia pagar mais nada. Crispado de raiva, o homem do sortilégio decidiu se vingar: ia voltar todo o trabalho conta o treinador. Ia ser trabalho sujo, do grosso, pesado. Por essas tantas, ele já era entronizado pela imprensa especializada. Depois de classificar um inexpressivo clube à beira de fechar as portas para a Série B, foi contratado por outro que, novamente, chegou às portas das finais de outro regional. Saiu de lá coberto de glórias para disputar uma Copa do Brasil. Em quatro rodadas, ele fez o nome em todo o país.

Foi quando nosso herói sentiu o golpe. A macumba era forte e fez fez efeito, e ele começou a decair. Quando ia se consagrar, caiu do cavalo. Demitiram-no, sem explicação. Foi parar noutro time, nos cafundós do Judas. Porém, o tal técnico, que era um crente, tinha um não sei quê, um santo forte, ou uma legião de anjos da guarda. Teve tempo de pegar um clube grande. Um desses clubes grandes que, refestelados no meio de velhos troféus e louros de glórias do passado, acham que a sorte está com eles, aponto de deixar a política de futebol andar ao sabor dos ventos da Fortuna. Por algum motivo, os dirigentes desse clube resolveram apostar no "professor"(como ele já era chamado). Festejado como o "salvador da pátria" do clube, ele afundou em dois ou três jogos. Os tais dirigentes resolveram metê-lo no cadafalso, e escapar das críticas da torcida. O tal treinador estava fora.

Porém, nosso demissionário herói descobriu que alguma coisa estava acontecendo de bom no meio dessa maré de azar. Ao cair do comando no clube anterior, ele pôde receber meses e meses de salário por conta da recisão de contrato. Na entressafra entre um emprego e outro, ele pôde fazer o seu marketing: dava entrevistas, era simpático com repórteres, dava palestras um tanto pragmáticas aqui e ali, Certa feita, até descolou uma vaguinha de comentarista de tevê, numa dessas emissoras da vida. Não tinha levantado taça nenhuma, mas tinha um obscuro vice-campeonazito acolá que lhe investia de uma aura de genialidade e de lenda.

No campo do sobrenatural, era o armagedom do cangerê do pai-de-santo contra as peripécias do treinador, que ganhava de lavada.

Nessa vida de malabarista, o treinador virou um mito da bola. No primeiro semestre, sempre havia um clube interessado em seus serviços, a fim de ganhar algum clássico ou cumprir tabela no regional, com certa dignidade e com a estrela de tão afamado profissional. Já no segundo semestre, ele era solicitado para a incumbência de salvar algum time da segunda ou da terceira divisão. Nessa tarefa, ele atingiu o grau de mestre: já era pentacampeão em salvar desafortunadas agremiações do inferno da segundona ou da terceirona. Não ganhava certame algum, mas era requisitado. E se porventura não conseguisse salvar de todo, era demitido e ganhava um troco interessante pela recisão, e ainda tinha copa franca com a torcida, é claro. Era realista: só cobrava alto por clubes que pudessem pagar. Clubes que gostam de errar no futebol e depois chamar técnicos mágicos para salvar o ano e emendar sonetos de pé quebrado. Ah, e curioso é que times não faltavam para ele. E o mercado hoje nunca lhe foi tão favorável. Diplomata, tratava com mesura a muito cabotinismo a tudo e a todos. Se saía de um clube, cuidava para deixar o caminho aberta para retornar.

E o tal pai-de-santo? Coitado. Cansou de fazer macumba contra o técnico caloteiro e atacá-lo com entidades e caboclos. E o técnico, aliás, hoje nada em dinheiro por conta de contratos de recisão de clubes mal administrados e que torram dinheiro em favor de verdadeiros vigaristas de porta de vestiário. O "professor" enriquece coma recisão num time qualquer e acaba ganhando o dobro do salário num venturoso novo contrato. Em pouco tempo, empregado ou não, será sempre lembrado, e reinará na capelinha dos argutos de ocasião. E enquanto está fora do mercado, fatura com a grana da multa recisória enquanto mostra toda a sua cultura e salomônica sabedoria nos microfones do rádio e da tevê, em programas esportivos. Nosso herói está espantado. Ri a toa. A razão é tão simples: a sorte dele é o "azar" dos outros, e o "azar" dele, na verdade, não é azar. No fim, ele é quem virou uma espécie de macumbeiro do futebol, e quem mistifica e entroniza certos técnicos são os dirigentes medíocres. E não é só coisa do futebol. Mas aí, quem quiser que bote a carapuça.

O divertido nisso tudo é que o nosso treinador até que poderia pagar ao pobre do macumbeiro em dobro que ele ainda lhe deve para lhe desfazer o tal quebranto. Mas pagar para quê?