Saturday, December 11, 2010

A Importância de ser Noel


Noel


Poeta da Vila, poeta lição. Noel Rosa nasceu há exatos cem anos.

Naquele tempo, o gênero pelo qual ele se notabilizaria ainda engatinhava nos saraus da casa da Tia Ciata, no Centro do Rio de Janeiro. O estilo musical dos tempos do Marechal Hermes era diverso e sofria uma enorme influência européia: eram mazurcas, valsas, modinhas, dobrados, tangos. Chiquinha Gonzaga fazia o crossover entre os sons colonizados e a musicalidade brasileira, assombrando a elite bem vestida da Capital Federal com seus maxixes — para muitos, era um verdadeiro escândalo.

Quando Noel Rosa despertou para o samba, em 1930, o gênero já entronizado por compositores como Pixinguinha, Donga, João da Baiana e Sinhô ainda tinha forte influência africana. O primeiro samba carnavalesco de sucesso — e que lançaria o paradigma do compositor popular do gênero por excelência, Pelo Telefone, em 1917, ainda não existia o rádio comercial.

De Pelo Telefone até o a morte de Sinhô, o samba tomou vulto. Em pouco tempo, todos aqueles gêneros europeizados iam cair de moda, como o espartilho e o pince-nez. Da revista para o rádio, logo ele iria cruzar o Rubicão e conquistar o Brasil e o mundo.

Pois o Poeta da Vila surgiu no panorama musical brasileiro ao mesmo tempo em que o samba desceu o morro e que o rádio e o disco ganharam visibilidade pela primeira vez. Noel nasceu em 11 de dezembro de 1910. O parto foi difícil: o garoto não saia do ventre da mãe de jeito nenhum. Foi obrigado a nascer a fórceps.

As seqüelas foram terríveis. Noel ficou com o queixo deformado: seu perfil se tornaria uma marca registrada, o queixo ausente, contrastando com o cigarro caído era uma caricatura que ele gostava de fazer, e o transformava quase numa figura chapiliniana.

Contudo, se o poeta nasceu à fórceps, seus sambas nasciam com extrema facilidade. Sua música lhe brotava pelos dedos, pelos cotovelos. Mais do que isso: ao contrário do estilo de samba de roda típico do morro, Rosa, de educação livresca, emprestou ao samba um estilo sofisticado sem, no entanto, deixar de pagar tributo aos grandes mestres. “A Vila/não quer apagar ninguém/só quer mostrar que faz samba também”.

E a Vila fazia um samba que fazia até dançar os galhos do arvoredo e a lua nascer mais cedo. Além de sambista, o Noel era um exímio versejador. Tinha um talento impressionante para rimas originalíssimas, como em Três Apitos: “nos meus olhos você vê/como sofro cruelmente/com ciúmes do gerente/impertinente/que dá ordens/a você”.

Noel era uma espécie de malandro quixotesco. Por um lado, se integrava ao estereótipo, como em Conversa de Botequim. Por outro lado, fazia polêmica com quem bancava o papel do malandro por excelência. Por conta disso, ele acabaria se metendo numa curiosa polêmica com Wilson Batista — este defendendo a malandragem, enquanto Noel fazia o papel do advogado do diabo. Na polêmica, salvaram-se todos, e quem saiu ganhando foi ele — o samba.

Noel chapiliniano. Para ele mesmo ele compôs malandro medroso: gostava de se caricaturar. Noel por Noel. Não tinha navalha, a gravata da foto era uma meia branca. Os sapatos sujos, a roupa amarfinhada. Mas sempre dava um jeito de colocar o melhor terno (o único) terno branco para passear bonito pela Lapa ou pelo Café Nice. Sempre precisava de vintém: “seu garçom me empreste algum dinheiro/que eu deixei o meu com o bicheiro”. Nada poderia defini-lo melhor

Noel intérprete: no tempo dos vozeirões estilo Vicente Celestino, com tenores e vibratos épicos, o Poeta da Vila cantava com sua voz pequena e quase cômica. Muitos dividem-se em avaliar quem melhor defendeu suas canções — Marília Batista ou Aracy de Almeida (descoberta dele)? O melhor intérprete de Noel era ele — Noel.

Noel iconoclasta: assim como Orestes Barbosa, ele era, com efeito, um cronista do cotidiano. O autor de Chão de Estrelas trouxe o modernismo para a música em suas serestas, enquanto Noel modernizava o próprio samba. Em O Orvalho Vem Caindo — parceria com o boxeador Kid Pepe — Rosa parte para a temática social: “meu cortinado/é o vasto céu de anil/e o meu despertador/é o guarda civil/que o salário inda não viu”. Misturando o onírico do céu e o profano do guarda-civil, o apito da fábrica ou o Russinho do Vasco da Gama (em Quem dá Mais?), ele tirava a poesia dos píncaros azulados do parnasianismo para o rés do chão do lirismo de cada dia.

Noel também era inefável ao recriar o vocabulário, em misturar o gongorismo poético da voga de então com a gíria dos bares e das calçadas, ele foi único em criar rimas insólitas para os ouvidos acostumados ao romantismo das modinhas, ao falar de fábricas de tecidos, guardas-noturnos, ou criando paráfrases engraçadíssimas, como em Cordiais Saudações: “Espero que notes bem/estou agora sem um vintém/se puder, manda-me algum/Rio, 7 de Setembro de 31”.

Cedo ele aprendera bandolim e o violão. O instrumento lhe dava sensação de importância. Dedicou-se com tanto afinco ao pinho que, com quinze anos, sabia tocar quase como os velhos chorões da Praça Onze. Porém, ao mesmo tempo em que o Poeta da Vila se entusiasmava com a música, ele foi largando os estudos em Medicina. Com vinte anos, ele já era o mais novo ‘rapaz folgado’ do bairro, fazendo ponto no Rio Clube ou no ponto de Cem Réis (que viraria samba).

Da Vila para o disco e o rádio foi um pulo. Primeiro com seus amigos Almirante e João de Barro com o Bando de Tangarás, que faziam números de emboladas e modas sertanejas, que faziam muito sucesso nos teatros de revista no final dos anos 20. O samba entra em sua vida a partir de Com que Roupa, de 1929.

O disco já existia no Brasil desde 1902. Contudo, foi com o rádio comercial, a partir dos anos 30 e o surgimento das três grandes — Philips, Mayrink Veiga e Educadora que Noel seria um dos compositores pioneiros justamente na função de cantores/compositores/artistas numa época em que a questão de direitos autorais ainda era antedliuviana e a expressão Indústria Cultural era algo inimaginável.

Mas nos anos 30, com a explosão promocional das marchinhas de carnaval, e éter e o microfone era o elemento irresistível e suficientemente capaz de criar a geração de entretainers no Brasil que saía do Teatro de Revista para o éter.

No princípio, Noel era contra-regra do Programa Casé, na Phillips. Ninguém ganhava bem, mas trabalhar no rádio era uma cachaça. Ali, ele pedia achar qualquer intérprete e, de chofre, apresentar-lhe o seu mais novo samba. Mário Reis, Aracy de Almeida, Marília Batista se tornariam grandes defensores das canções do Poeta. Aliás, saindo do cerco de Francisco Alves, que empresariava o então jovem Orlando Silva, Noel conseguiu fazer com que o Cantor das Multidões estreasse no disco com uma músicas suas: Menina dos Olhos(com Joel, da dupla Joel e Gaúcho) e Cidade Mulher, (de 1935), trilha do filme de mesmo nome.

Naquele tempo, para ganhar um tutu forte, um compositor popular dependia de um grande cantor para servir-lhe de ponte entre ele e o disco. Disso Francisco Alves se valeu durante sua vida da seguinte forma: gravava a canção desde que ganhasse a co-autoria. Assim Benedito Lacerda ganhou parceria com Pixinguinha e Chico Viola com Ismael Silva e Noel.

A parceria rendeu sucessos para Alves e Mário Reis, que formavam uma dupla no começo dos anos 30. Mais tarde, o Poeta resolveu se desvencilhar desse acordo desagradável: foi quando conheceu Osvaldo Gogliano. Músico erudito, Vadico emoldurou acordes que imortalizaram grandes momentos do Poeta, como Feitio de Oração e Feitiço da Vila. Mas Noel também sabia criar música de qualidade. Tanto que Três Apitos, Até Amanhã e Último Desejo, Com Que Roupa e Conversa de Botequim — o cartão de visitas de Rosa — são composições originais suas.

Poeta-lição: Noel tinha uma outra forma de malandragem. De rima em rima, ele conseguiu transformar música em trabalho. Ele já tinha um talento superior em estar sempre no lugar certo, municiado de suas canções. Nássara dizia que ele conseguia ter livre trânsito com todo mundo no meio. Desde a turma do dia e a do morro (fez Pierrô Apaixonado com Heitor dos Prazeres) ou a barra pesada do sereno. E seus sambas complementavam isso. Ele era um agitador cultural avant la lettre e um inteligentíssimo marqueteiro de escol muito antes da palavra jabá se tornar depreciativa...

Noel Rosa preferiu arder arder como uma chama breve do que se extinguir com o tempo. Vivia a boemia do Rio de Janeiro dia e noite. Como aconteceu com seu amigo Custódio Mesquita, viveu muito, viveu pouco. Como cronista de costumes, cantando sua cidade e a Vila, versejando amores de tango, amores não correspondidos.

Três Apitos talvez seja o maior exemplo. Noel gostava de uma funcionária da fábrica Confiança e o apito de outra fábrica (ele confundiu-as, como diz Carlos Didier e João Máximo, em biografia definitiva do compositor) foi o mote para a sua mais bela canção de amor: “mas você não sabe/que enquanto você faz pano/faço junto/do piano/esses versos/prá você”.

Saudade que faz um samba: “e quem suportar uma paixão/sentirá que o samba então/nasce do coração”. Poeta-lição. Noel está morto? Não. Noel está vivo e faz um século. Século de Noel Rosa, o Poeta da Vila.

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