Wednesday, April 19, 2006

As Muletas de Sempre

Às vezes, quando assistimos à TV ou ouvimos declarações de pessoas públicas e políticos em geral, nos vemos cativos de todo o tipo de expressões que servem para dar fleuma na prosa claudicante de quem não tem o que falar. Em outros casos, ouvimos palavras-chave que preenchem evasivamente a retórica esdrúxula na boca quem tenta emprestar qualidade e estilo de improviso a uma afirmação que não quer ser objetiva. São as muletas de sempre, como disse o jornalista Josué Machado. Os vícios de língua, usados solenemente como se algo significassem.

Claro que isso faz parte das contingências da fala e, como não poderia deixar de ser, é parte integrante do que poderíamos chamar de dinâmica da língua. Como se sabe, a palavra gráfica se resguarda de cacoetes lingüísticos e vulgarismos, demonstra mais correção em sua elaboração e tangencia os inevitáveis improvisos. Por outro lado, na língua falada, o contexto extralingüístico toma conta de tudo (e de todos). Por ser espontânea e improvisada, ela sempre faz uso de palavras-curinga, de frases feitas. Até aí, tudo bem. O problema aparece quando essas mesmas muletas viciam de tal forma que acabam vicejando de forma abundante na língua escrita. Exemplos não faltam. Senão, vejamos:

ACORDAR: Hein? Essa virou moda. Acordar. A princípio, significaria firmar ou realizar um acordo. Antigamente, as pessoas firmavam acordos. Hoje elas acordam. Acordam onde? Como? Claro que a expressão pode ser reduzida, mas gera problemas de clareza. “PREFEITO ACORDA COM DMLU”. O que será isso? Acordou com nó nas tripas? Dor na coluna? Canseira? Coitado, ontem ele parecia tão bem!

AMIGO PESSOAL: expressão que demonstra afetividade, ternura, cumplicidade, mas existe algum amigo impessoal? É doença fácil, quando se vê, já está em nosso vocabulário. “Quem, o fulano? Pó, aqui, ó, é meu faixa, amigo pessoal”. “Ele é amigo pessoal do deputado”. Passou e ninguém sentiu. Depois, aparece: “AMIGO PESSOAL DO PRESIDENTE CHEGA HOJE”. Tem até o cognato: “Missícimo”. Amigo pessoal todo mundo tem: são os mesmos amigos de sempre, é possível que sejam pessoais há décadas e não tenham sequer desconfiado. Até aí, não tem problema. Eu quero ver se alguém acha algum amigo impessoal. Eu tenho milhões.

COM TODAS AS LETRAS: Essa aqui não tem deputado que não adore. O assessor parlamentar escreve no discurso, o político fala no plenário, o repórter coloca na citação e o colunista começa a grasnar, com muita seriedade. Recurso de retórica que pretende investir a palavra dada de uma profunda ênfase, quase sempre como um empolado aposto. “O presidente de honra do PLT afirmou, com todas as letras, que aceita a aliança com PBN e PTV”. Quais todas as letras? Costumam faltar palavras suficientes? Qual seria o pretenso limite de palavras para ser enfático. Quem usa todas é mais convincente dos que utilizam apenas as necessárias?

REINA GRANDE EXPECTATIVA: Essa sempre sai da boca de locutores esportivos. “Reina grande expectativa a respeito da escalação do Flamengo para o jogo desta tarde, no Maracanã!”. Reinar é uma expressão fora de moda e a conjugação foi tão desgastada através do tempo que virou exemplo de pernosticismo que os modernos manuais de redação de jornais e emissoras de rádio trataram de expulsá-la da face da terra.

SOCIEDADE CIVIL: Expressão oriunda de dicionários de ciência política, ela está mais ligada ao jargão de sociólogos do que ao seu significado simples. Como ela tem muito efeito em discursos, acaba virando uma conjugação desnecessária. Para quê dizer apenas “sociedade” se eu posso parecer mais empolado e inteligente dizendo “sociedade civil”? A despeito do simples clichê, para um bom entendedor, uma só palavra basta. Os clichês são a doença fértil de nosso falar, como “leque de opções”, “medidas drásticas”, “perda irreparável”, “grata satisfação”, e muitos outros.

VIDA ÚTIL: É de se supor que exista uma vida inútil. Alguma coisa como aquela velha apresentação: “Olá, me chamo Fulano, tenho vinte e dois anos. Na verdade, tenho vinte e oito, mas passei seis anos doente”. Antes, seria preciso saber o que tem vida e o que não tem vida. O que não tem vida tem vida inútil. Façamos um teste: dê um murro no teclado do seu computador. Ele gritou? Então, tem vida inútil.

VONTADE POLÍTICA: Querer ou “vontade de querer” depende de cada um. Se o deputado entende que falta “vontade política por parte do Executivo” para a realização de alguma coisa, já ficaria subentendido que o desinteresse é de “ordem política”. Este é mais um clichê fácil de grudar e que atravessa décadas a fio sem que ninguém se dê conta. Vontade política é alguma vontade superior? Um índio indolente carece de vontade indígena? Existe vontade jurídica? Flamenguista? Pó-de-arroz? Acaciana? Euclidana? Ideológica? Macumbeira?
As muletas são como pragas que aparecem em redações escolares, discursos e na correspondência pessoal. O pior é quando elas são visíveis no texto jornalístico, da mesma maneira como os pecados de concordância nominal e regência verbal infestam a língua escrita, oriundas da fala comum. São expressões que lemos e ouvimos todos os dias. O pecado supremo é ver a sinistra muleta finalmente incorporada em textos de jornais ou revistas na linguagem do próprio repórter ou redator. Se por um lado o texto literário costuma fazer uso do falar comum como recurso de estilo (como nos contos de Alcântara Machado, por exemplo), é claro que, quando aquele que escreve pretende se expressar de maneira objetiva, ela deve observar que, na verdade, essas tais muletas não levam a lugar nenhum. Se as convidamos a se retirar do texto, vemos depois que elas não fazem falta nenhuma.

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