Capa da partitura do tango Griseta |
A gente, que é brasileiro, e mesmo em outros países, acaba assimilando o tango como uma dança. Assim, não entende todo o ethos, a linguagem – muitas vezes cifrada pela gíria do lunfardo, e todo o imaginário em torno desse gênero, que nasceu no bas-fond de Buenos Aires há mais de um século e que se transformou numa síntese da música argentina.
Por exemplo, o tango “A Media Luz” tem lá as suas histórias. Muitos não sabem, mas os tangos naquele tempo, como o maxixe no Brasil dos anos 1920, estreava nas burletas e revistas de teatro das grandes metrópoles. Depois de caíram na boca do povo, eram gravadas numa época em que a fonografia ainda engatinhava embora já produzisse seus artistas do disco.
Tem um trecho dela que diz: “pisito que puso Maple”. Você não deve ter entendido nada. Maple era uma fábrica de móveis em Buenos Aires, e de origem inglesa. E além de móveis eles faziam pisos de madeira. O “pisito” seria o nosso famoso parquê. Então o que rolou aqui foi um marshandising maroto, proposital ou por pura zoeira.
Ainda em “À Media Luz”, a letra descreve, com muita sutileza, uma pessoa em busca de alguma aventura amorosa. Ele chega com o endereço anotado, pede o andar ao ascensorista e, lá dentro, coquetel e amor”. Pode ser uma casa de lenocínio ou uma garçoniere. Como naqueles tempos não existia o famoso motel, era comum alugar um apartamento – em geral dividido entre amigos (que o usavam alternadamente) para esses encontros à média luz.
Essa letra, de Carlos Manzi (de 1926) possui uma segunda parte, que foi posteriormente suprimida. Como se sabe, lá pelos anos 1940, com a ascensão dos militares, especialmente Perón, ocorreu uma espécie de revolução cultural na Argentina cujo objetivo era o de acabar com o tango e o lunfardo, taxados de imorais. Talvez por conta disso, a letra tenha sido alterada. A segunda parte é essa:
Juncal
12, 24
Telefoneá sin temor.
De tarde, té con masitas;
de noche, tango y cantar.
Los domingos, tés danzantes;
los lunes, desolación,
Hay de todo en la casita:
almohadones y divanes;
alfombras que no hacen ruido
y mesa puesta al amor.
Naquele tempo, drogas como a morfina, o ópio ou a cocaína chegavam da França via Marselha para Buenos Aires. No começo, até podia ser comprada em farmácias. Em geral, usava-se de algum código para adquirila no balcão. Fazia-se algum pedido qualquer, como “cafiaspirina” ou “ácido bórico” ou qualquer coisa inocente.
Era aspirada ao extrair o pó do vidrinho e passar nas narinas. Depois veio a idéia do canudos – feitos em geral com o papel da embalagem de cigarros. Depois da Primeira Guerra o uso se intensificaria quando as rotas entre Europa e América do Sul foram retomadas e espalharia-se com o tráfico de mulheres, cujo destino era Buenos Aires. E, em segundo lugar, o Rio. Ruy Castro cita Lima Barreto para dizer que, com a chegada das “polacas” ao Mangue, praticamente mais da metade das prostitutas da Capital Federal eram traficantes de cocaína. Do bas-fond, a droga facilmente adentraria salões e teatros em toda a parte e cheirava-se nas mesas como se fosse uma rodada de chá da índia.
Quando se fala em música em drogas, sempre se pensa em rock ou outros gêneros mais contemporâneos e associados à cultura jovem pós-guerra. Mas é interessante também pensar que sexo e drogas eram tópicos centrais na lírica do tango. O caso da supressão da segunda parte de “A Média Luz” e a perseguição do lunfardo por Perón demonstra a força que o tango possuía, e como é possível vislumbrar em temas como esse toda a força do imaginário do tango. É possível contar uma história social do gênero apenas revisitando e contextualizando suas letras.
Na letra de “Maldito Tango”, de 1916, a palavra “tango” serve como referência cifrada para falar da droga, bastando trocar uma por outra:
Maldito
tango que envenena
con su dulzura cuando suena,
maldito tango que me llena
de tan acerba hiel.
El fue la causa de mi ruina,
maldito tango que fascina...
¡Oh tango que mata y domina!
¡Maldito sea el tango aquel!
De maneira cifrada, ele culpa a dança e não a droga como salvação a um coração partido e a crença que sua vida está ligada eternamente ao bas-fond. No começo, ainda fazia-se esse expediente. Mais adiente, em temas como a supracitada “A Media Luz” e outras, como “Grisetta”, a referência é explícita – embora se usa mormente a gíria lunfarda:
con caricias de Rodolfo y de Schaunard,
era la flor de París
que un sueño de novela trajo al arrabal...
Y en el loco divagar del cabaret,
al arrullo de algún tango compadrón,
alentaba una ilusión:
soñaba con Des Grieux,
quería ser Manon.
Francesita,
que trajiste, pizpireta,
sentimental y coqueta
la poesía del quartier,
¿quién diría
que tu poema de griseta
sólo una estrofa tendría:
la silenciosa agonía
de Margarita Gauthier?
Mas la fría sordidez del arrabal.
agostando la pureza de su fe,
sin hallar a su Duval,
secó su corazón lo mismo que un muguet.
Y una noche de champán y de cocó,
al arrullo funeral de un bandoneón,
pobrecita, se durmió,
lo mismo que Mimí,
lo mismo que Manón.