Wednesday, March 29, 2017

Porto Alegre Noir

Terminei de ler o 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre, do Raphael Guimarens (Libretos, 2017). Li e lembrei dos antigos cronistas de Porto Alegre, desde o Antônio Álvares Coruja, lá do começo do século XIX até o Nilo Ruschel, nos anos 70, e o Renato Maciel de Sá Júnior.

Não procuro fazer comparações entre eles, embora isso seja inevitável. Até porque, ao contrário do Coruja e do Ruschel, que realmente viveram aquelas histórias que contaram, o que é surpreendente, porque eles falam de uma cidade que não existe mais, Renato e o Raphael recontam histórias do passado.

O Renato Maciel descobriu o filão do memorialismo sobre Porto Alegre saindo daquela coisa formal, que existia com o Ary Sanhudo ou o próprio Ruschel, no seu inesquecível Rua da Praia. Tanto que seu trabalho rendeu uma inesperada trilogia — que foi um best-seller (hoje pouco lembrado) nas feiras do livro de Porto Alegre nos anos 80.

Eu particularmente descobri a bibliografia a respeito da história (no viés "histórias) de Porto Alegre com o seu Anedotário da Rua da Praia. Os livros são excelentes. Infelizmente, Renato coletou depoimentos históricos, mas não teve interesse em emprestar uma perspectiva "histórica" na sua obra, optando por uma abordagem pitoresca, para não dizer obviamente humorística. Por sinal, é notável perceber que muito dos livros do Sá Júnior têm o volume de Nilo Ruschel como ponto de partida.

Já Raphael Guimarães têm desenvolvido uma obra singular que tem esse atavismo da perspectiva do memorialismo sobre a capital, numa série de livros que têm Porto Alegre como cenário. Desde o Tragédia da Rua da Praia a até o livro sobre a enchente de 42, o 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre se caracteriza por ser uma rescolta de histórias, o que o aproxima do panteão dos grandes cronistas da cidade.



Mas interessante em 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre é o tom a la New Journalism das histórias. O texto não quer o mero relato formal nem explorar o lado humorístico de histórias um tanto sombrias e que, por mais incrível que possa parecer, realmente aconteceram.

O tom, do livro é de quem está assistindo a um filme de curtas, e é impossível não ler os relatos sem imaginá-los como pequenos romancetes com um tom meio noir, tão bem contados que parecem pura ficção. Muitas delas tem um lado noir mesmo, e em preto-e-branco, de jornalismo antigo, romance policial, com histórias divertidamente folhetinescas, casos de amor e morte.

Arthur Elsner, um dos grandes maestros de Porto Alegre, cego e regente da antiga rádio Difusora torna-se uma espécie de compositor torturado por uma paixão fulminante por uma garçonete da Confeitaria Central (que ficava no Largo dos Medeiros que, por si só, valeria um livro), e o caso de amor também trágico, de Araújo Vianna por Olintha Braga. Um grupo de prostitutas que, com a ajuda do intrépido repórter e rábula Mário Cinco-Paus, consegue uma habeas para pode voltar a fazer o lenocínio de cada dia; uma fuga impossível da Ilha do Presídio; o triste fim de d Honorina, viúva de Júlio de Castilhos. Um caso policial em pleno bairro Navegantes dos anos 20 e sua surpreendente reviravolta; ou o extravagante caso do Professor Hindu que, de noite, virava o transformista Danúbio Azul.

Raphael soube recontar de forma sucinta e original duas histórias que, por muito tempo, viviam na memória da população como lendas urbanas: o assassinato de Maria Francelina, de amásia a santa do bairro Partenon (que Raphael transforma o algoz em tema de um debate absurdamente dostoievskiano a respeito das razões do crime) ; e o sumiço do delegado responsável pelo famoso inquérito envolvendo as mortes na rua do Arvoredo, ocorrido no longínquo ano de 1864. o caso foi tão escandaloso para a época (segundo reinado) que ela só sobreviveu como lenda — inclusive, por muitos anos, muita gente achou que era lenda mesmo.

em 20 relatos, a história ganha nova abordagem, num contexto de texto jornalístico, agora sob um novo contexto. Olhado em retrospectiva, o Crime da rua do Arvoredo hoje parece banal. A lenda só transformou um duplo assassinato num caso de canibalismo por parte de toda a população de Porto Alegre. (a história só seria recontada em seu devido contexto mais um século depois, com o O Maior Crime da Terra, de Décio Freitas).

Mesmo que as histórias não sigam um padrão, é curioso observar, em 20 relatos, que algumas delas, mais curtas e mais leves, sirvam como 'vinhetas' entre as crônicas mais dramáticos. Mas é importante notar tanto o apuro na hora de contar os tais relatos ( em alguns casos, elas ganham foros quase de auto-ficção, onde a primeira pessoa se confunde com o repórter-narrador (o elemento recorrente na obra é o trânsito entre a reportagem de jornal e a história policial, como se fossem complementares, e típicos desse voyeurismo literário do fait-divers e suas possibilidades poéticas, do folhetim ao jornalismo literário), tornando assim o leitor cúmplice do desdobramento do drama, o que empresta ao livro esse clima noir, de pequenos roteiros 'ligeiros'. O 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre pegar e não largar. Já estamos esperando outros 20.

Saturday, March 25, 2017

Geração


Batida (no mau sentido) na Lancheria Redenção

Acabaram com o Baile de Porto Alegre. esse ano não vai ter aquele evento que era o ponto máximo da comemoração da Semana da Cidade.

Acho que todas as coisas boas se foram cedo demais. Cedo demais até para que a gente possa falar em nostalgia. Nostalgia parece coisa por demais avoenga, daquelas que a gente tenta recordar não sem um pouco de imaginação. Afinal de contas, se a gente lebra de tudo, então é porque a gente não viveu tudo aquilo.

Mas Porto Alegre parece uma cidade que envelheceu cedo demais.

Digo isso e retorno à Cristóvão Colombo. Quando a gente descia a Ramiro, dobrava à direita e começava a rotina dos bares. Havia o Grilo, com aquele toldo grande, lembra? do lado, havia uma brechó, o Pé da Múmia — que tinha inclusive uma gata gorda que ficava sentada em cima dos livros e discos e ai de quem ousasse mexer com ela ali.

Mais adiante, tinha o Bar do Walter. Verdadeiro pé sujo, mas com m cardápio proustiano. Quem não lembra do filé de porco á milanesa, com aquela travessa de arroz fumegante junto? Ou então, a gente variava o cardápio, e ia no Xuvisco, que fica embaixo, até hoje. O Walter se mudou — foi para a Dr. Vale, e vocês sabem o que eu penso a respeito de bares que mudam de endereço.

Havia muitos outros, como a Cantina Roma, ali, defronte á Brahama, muito antes daquilo virar shopping. Eu morava no Edelweiss e aspirava todas as madrugadas aquele sarro de cerveja sendo preparada.

Hoje, o único bar da Cristóvão que ainda insiste em existir é o Vassouras, na esquina da Câncio Gomes. Passei na frente sexta de noite. Havia um público interessante. Claro que temos ainda o Alfredo, mas ele não conta. Não é propriamente um bar como era o Grilo ou o Walter.

Mas mudei de assunto: estava falando do Baile da Cidade. ele ocorria sempre no sábado da Semana. Não recordo da última edição no parque. Mas lembro que, até os anos 80, havia ainda a vida noturna da Oswaldo Aranha à noite, já naquela fase entre meados dos 80 até 1998.

Por que 1998? Explico. Depois daqueles incidentes que foram chamados de Berlim-Bonfim, a vida noturna na Oswaldo até que durou bastante. A verdade é que, aos fins de semana, aquela parte do Bonfim atraía um número considerável de gente. Às vezes, inconsíderável. Aos domingos, era um negócio weird. lembro de ficar depois do Brique por ali. Até ali pelas cinco da tarde, começava a festa. Era tanta gente que as pessoas conversavam no meio da rua, na frente do Araújo. No Mercado, havia o Luar Luar, com suas mesas que iam calçada afora. Nos fins de tarde, já não havia mesas. A Lancheria também lotava, assim como o João e o Bar Redenção.

Quem chegava atrasado não tinha nem onde ficar para beber. Mas isso não era problema, dada a quantidade de ambulantes vendendo toda a sorte de bebidas possível.

Um domingo comum na Oswaldo era encontrar algum conhecido na Oswaldo, cercado de grupos — muitos punks de verdade, com cabelo moicano e roupas cheias de pregos e penduricalhos. Dali a pouco, rolava aquela vontade de beber algo. A grana era pouca, até que a gente juntava uns morlacos e regateava com algum tio ou tia ambulante a vende rum copo de batida. De repente, você encontrava outro conhecido, rolava um crowdfunding dos brothers e a gente arrecadava mais um copo de trago.

Mais adiante, aparece algum amigo endinheirado com um outro amigo idem e dava para encarar uma Lancheria do Parque. Encarar em termos. Ali pelas seis, sete (ainda hoje), o espaço é disputado. Não existem mesas. Como a lanchera disponibilizava copos de plástico, isso aumentava o consumo mesmo que a gente tivesse que ficar na rua. E, com o balcão do lado, a calçada se comprimia de tanta gente — gente na via, gente na calçada, gente no canteiro, gente por toda Oswaldo. Naquela altura, os ônibus e carros tinham que debriar para poder passar no meio da multidão. Era como se fosse um desses be-ins tão na moda hoje, porém nada combinado. As pessoas simplesmente iam.

Por isso que aquela música do Frank Jorge faz todo o sentido. O "Amigo Punk" nada mais é que uma crônica daqueles dias: punks atravessando a Oswaldo para lá e para cá. Muitas vezes, aquele populacho ficava por ali até a madrugada. O povo arrefecia, mas os bares continuavam, muitos ficavam madrugada adentro. Às vezes, era comum você chegar de noite na Lancheria, e ficar só no vinho (quando beber era barato no Bonfim), e dê-lhe conversa. Sempre tinha alguém para conversar e alguém para juntar os morlacos para a próxima taça de vinho.

De repente, a noite morria na Lancheria. Aí, a gente, já transformado em Mr Hyde, ia procurar mais algum conhecido para pagar uma cerveja no Bar do Beto ou arredores. Ou aproveitava o mundaréu de gente na Lancheria e ficava no balcão, roubando cerveja de alguém que saiu e deixou munição no copo. Lembro de tardes malucas com gente até dependurada do lustre na Lancheria. de repente, aquele blend de maconha do banheiro. E lá ia o Adelar com algum garçom buscar os malucos.

Em 1998, eu lembro do Baile da Cidade. Acho que nunca, antes, nem depois, foi tanta gente. Naquele ano, o grande sucesso aqui era a Hard Working Band. Eles tocavam em todas as partes, no Opinião eram figurinhas batidas. estavam lançando um disco gravado ao vivo no Salão de Atos da PUCRS (a gente tava lá!) e iam ser o piece de resistance do Baile.

A gente conhecia os caras. e juntou um pessoal do estágio em jornalismo para assistir ao show. Parecia que tava toda Porto Alegre dentro da Redenção. eu cheguei cedo, com a grana contada. fiquei tomando umas latinhas de Antárctica no Zé do Passaporte (o antigo, ainda no tempo do Zé, no trailer). Depois, fiquei assistindo ao um casamento (prá matar tempo) na Santa Terezinha, depois fui para o parque. O pessoal começou a chegar. E dê-lhe cerveja, cerveja, até a hora do show. Apareceu um professor nosso, e ele tava com uma garrafa de uísque. e aquilo rodou, literalmente. Depois da Hard Working, ia tocar uma banda de baile, mesmo. No intervalo, já embalados, a gente foi esticar na Lancheria. E dali, aquela coisa. Amigo vai, amigo vem, garrafa de cerveja vai, garrafa de cerveja vem, eu já tava com a tampa cheia, mas positivo operante.

Isso até quando eu realmente fiquei trêbado. subi numa árvore e fiquei gritando que eu era o Billy Shears. Depois, recordo de ver meu chefe passando com a esposa e me vendo pagando vexame ali. O resto eu esqueci. Uma amiga depois me explicou que ela me levou até em casa, e que eu não conseguia andar sem me escorar pela grade. O que eu lembro foi que eu acordei no capacho do 802 (eu morava no 702) na manhã seguinte.

Aquele foi o último baile. No fim do ano, o Olívio ganhou a eleição e o Bonfim foi uma festa. Acho que foi a última vez que eu vi a Oswaldo cheia de gente — e foi certamente a última vez que eu fui no Luar Luar. Um ano depois, como num vendaval, tudo mudou: o Mercado fechou e os bares foram juntos. Luar, Escaler.

O Redenção fechou, o João começou sua lenta agonia, junto com o Bristol e Baltimore. O Araújo resistiu por mais alguns tempos, até 2001. Depois, fechou por quase uma década. E todos aqueles bares que viviam em função desse público, como o Vermelho 27 ou outros, efêmeros, pela volta do HPS, foram sumindo. O que restou, como o Bar do Beto, acabou sofrendo o lógico processo de gentrificação (e que também mudou de lugar).

Acho que toda aquela época acabou numa vomitada épica com a cara enfiada na privada do Bar do João depois de uma noite misturando vinho com cachaça e cerveja. Daquelas que a ânsia continua e não tem mais nada para sair.

E, como no poema do John Updike, a gente nem desconfiava que era uma geração.





Tuesday, March 21, 2017

Um Homem Célebre


Bach

Tenho um professor de música que sempre diz que todos os tratados teóricos musicais são feitos a posteriori. Isso quer dizer que toda o legado histórico de epifanias de compositores que fizeram a história da teoria musical através dos tempos só pode ser elaborada de forma diacrônica. Isso implica dizer que, no caso da música, a prática sempre irá preceder a teoria, e jamais o contrário.

A prática vem antes da teoria. A prática é quem viabiliza a 'teorização'. Assim, foi preciso um longo caminho para a consolidação de práticas e experimentos em diversas épocas e momentos para que toda a teoria fosse sendo observada com vistas a uma possível sistematização.

No caso do Barroco, toda a chamada era do "baixo contínuo" formou-se desde Monteverdi e os bardistas (os primeiros músicos de corte que passaram a lidar com uma voz só mas acompanhada com um instrumento (obbligato), ao invés da tradicional polifonia dos tempos de Josquin e Palestrina) até 1750.

Quem basicamente consolidou esse tipo de música e cifrou ela foi justamente Bach. Bach não foi um inventor, não inventou uma nova forma de fazer música. Ele pegou toda a tradição do baixo contínuo e levou-a ao paroxismo. Assim como Palestrina representou o fim da polifonia (que começou lá no tempo da Ars Nova, lá no século XIV.

O baixo continuo é um produto do século XIII. Na tentativa de criar um espetáculo cênico como numa recriação da tragédia grega, eles optaram pela substituição do canto coral pela ária. O baixo contínuo seria a cama onde a voz solo deitava-se. Esse formato iria ser a base da música barroca (e que os ouvintes modernos podem reconhecer bem, ao distinguirem a forma como o baixo é tratado no Barroco com relação ao classicismo). O baixo contínuo já estava presente na ópera Orfeo, de Monteverdi, de 1607, por exemplo.

1750 foi o ano da morte de Bach. Mesmo tratando-se de uma convenção, é ponto pacífico afirmar que o Barroco morreu com ele. Afinal, em 1750, uma nova geração de músicos já havia há muito superado o baixo contínuo e produzia música de forma e temática diversas. É importante lembrar que o século XVIII é o das Luzes. Naquele momento, a música religiosa estava em desuso, como se fosse um insidioso atavismo de uma sociedade aristocrática, diferente do espírito burguês que nascia com o Iluminismo.

Quer dizer, Bach não era um inventor, não um elemento de transição dentro do estilo; ele foi o fim de um ciclo gigantesco da história da música. E quando ele morreu, ele não era ninguém. ele era um arauto de uma arte decadente. Algo como (usando de um jargão da imprensa) um dromedário do tempo da máquina de escrever, do copidesque, do folhetim e do famoso artigo de fundo, que sempre usa algum tipo de formalismo tipo "preclaro amigo" numa época de jornalismo online.

Mozart, por exemplo, quando referia-se a Bach, ele queria falar de Carl Philipp Emanuel, que era um expoente do Classicismo de sua época. Os filhos de Bach, Carl e Johann Christian, por sua vez, já eram adeptos do classicismo, um novo estilo que surgiu quando bach ainda era vivo. Para se ter uma ideia: quando Carl Philipp Emanuel convidou o velho Bach para conhecer Frederico da Prússia, ele foi introduzido ao pianoforte.

O mestre de Eisenach experimentou aquele novo tipo de teclado, porém, não gostou. Afinal de contas, passou a vida toda afinando e consertando órgãos e compondo em espinetas e cravos. Um piano era demais para ele. era como convidar alguém que passou a vida toda atrás de uma Olivetti a escrever e salvar um texto no Word (a minha comparação é esdrúxula, mas dá para ter uma ideia do que aconteceu).

Bach morreu e toda uma época desapareceu com ele, desapareceu sem vestígios. Mozart foi um músico de transição já dentro do classicismo. Bach pai foi um músico do fim do Barroco, que foi esquecido, como uma herança de um passado que não valia a pena ser relembrado. Bach pai só seria redescoberto dois anos depois da morte de Beethoven, em 1829, já no começo do Romantismo. Como se sabe, uma das características do Romantismo é esse retorno ao passado.

A redescoberta valeu a pena, mesmo que a música religiosa não fosse uma coisa muito em voga em meados do século XIX. Mesmo assim, Mendelsohn apresentou a um novo público a Paixão segundo São Mateus, de Bach, e a cantata causou grande espanto. A partir dali, Bach pai se transformaria num símbolo da música alemã e influenciaria toda a segunda geração de músicos do estilo - mesmo que, durante essa 'idade das trevas' de esquecimento da arte de Johann Sebastian, ele fosse ainda um "músico dos músicos". sua música não era executada em público, mas algumas de suas partituras não eram desconhecidas de compositores que antecederam essa renascença bachiana.

Quando Bach escreveu suas maiores obras, a Missa em Si Menor, a Oferenda Musical e a Arte da Fuga, ninguém queria mas saber daquele tipo de música. O curioso é que, mesmo sabendo que, a rigor, essas peças eram formalmente impossíveis de serem executadas (A Missa em Si era católica, e não luterana), ao contrário do que era comum durante a sua vida, ele não compôs sob encomenda de nenhum príncipe ou margrave: escreveu-as para ele mesmo (assim como Mozart escreveu o Requiem e as duas últimas sinfonias para si).

E Bach, ao contrário de Vivaldi, não se tornou popular porque não escreveu óperas. e por que Bach não escreveu óperas? Ele não gostava? Não, não era bem por isso. Na verdade, isso se deu justamente porque ele vivia pregado no trabalho de mestre de capela nas cidades onde viveu (muitas vezes, isso exigia dedicação exclusiva) e, em geral, essas cidades (Kothen, Weimar, Leipzig) não tinham casas de ópera. Leipzig chegou a ter um teatro, mas ele foi demolido pela municipalidade anos antes de Bach mudar-se para lá, em 1723.

Vivaldi viveu em Veneza, Viena, empresário musical, como Haendel, que foi para a Inglaterra; Bach viveu naquele mundo pequeno da Turíngia. Bach vivia andando pelo sul da Alemanha, de lá para cá. se formos ver, Arnstadt, Mühlhausen, Weimar, Leipzig, ele viajava muito, contudo, não saia dos mesmos lugares.

Mas, mesmo assim, Bach sabia de tudo o que tava acontecendo na Europa daquele tempo e conhecia a obra do Vivaldi, por exemplo. Inclusive, Bach transcriou vários concertos do mestre vienense, curioso que era, sempre queria saber o que estava acontecendo pelo mundo da música de seu tempo.

Aliás, Bach compôs em vários estilos, gêneros, porém não escreveu óperas, mas chegou perto. havia um café em Leipzig, chamado Zimmerman. Para o dono, ele escreveu cantatas profanas. Que, na verdade, não eram bem cantatas (embora formalmente tivessem a estrutura típica de ária-recitativo, mas não tinham coros). Eram, na verdade, variações baseadas pelo modelo da cantata barroca, mas por serem profanas, a generalização delas é algo sempre em disputa. Para muitos, tratam-se de operetas. Hoje elas são pouco conhecidas (não estão entre os temas mais conhecidos do mestre de Eisenach), mas são bem interessantes.

Aí alguém vai me dizer: "o religioso Bach escreveu...operetas??". Sim. Aqui está:



Naquele tempo, o café estava na moda por lá, era ainda uma iguaria rara, difícil de achar na Europa de meados do século XVIII. A história é simples: de um pai desesperado porque quer que a filha case mas não quer que ela tome café (ela é viciada na coffea arabica). Ela, contudo, só topa o consórcio se o futuro noivo aceite o seu hábito de tomar café.

Monday, March 20, 2017

Bye Bye, Johnny


Chuck no documentário Jazz on a Summer's Day, de 59.

Chuck Berry não apenas influenciou como determinou a existência de uma geração de músicos após ele.

Muitos sequer se deem conta, mas Chuck foi o primeiro grande letrista do rock. “School Days” é um dos primeiros hinos da juventude transviada. É um blues, mas a temática é diversa: o jovem que sai da opressão da sala de aula, chega no snack bar, e bota moedas na jukebox para dançar. Ninguém tinha pensado nisso. Chuck era o cronista dos rebeldes sem causa. “Sweet Little Sixteen” conta a febre do rock avassalando a costa leste da América e uma menina implorando aos pais para que eles a deixar ver o show. “Rock’n Roll Music” é um comentário bem humorado e irônico sobre alguém que quer colocar o rock no meio de outros gêneros musicais e conquistar o seu lugar ao sol.

Esses exemplos mostram que Berry soube ser o letrista da boa nova do rock, tematizando o novo ritmo com inteligência. Claro que isso não iria passar batido pela geração de jovens músicos britânicos que, depois que a onda americana morreu, em 1959, resolveram helenizar a boa nova de Chuck para o mundo.

Mais: invadiram a América anos depois tocando “Roll Over Beethoven”. Centenas de milhares de garotos ingleses que resolveram montar conjuntos depois de ouvir e ouvir aqueles disquinhos da Chess com clássicos imediatos como “Carol”, “Maybeline”, “Reelin’ And Rockin’”. Chuck podia soar como se suas canções fossem nada menos do que variações sobre o mesmo tema. Porém, eles sabiam que essas músicas eram feitas para eles. Berry falava a linguagem desses garotos, eis a identificação. Irresitível.

Chuck como letrista ia além daquele esquema “garoto ama garota”. Duas que eu mais aprecio dele vão além do tema. Uma é “Memphis Tenesssee”, onde ele conta as desventuras de um pai em busca da filha, cuja esposa levou-a para longe do desesperado progenitor. Essa era uma das favoritas de John Lennon, que fazia questão de ser o lead vocal nos show dos Beatles — e que a gravou várias vezes, contudo nenhuma realmente para um disco oficial.

Outra é “Promised Land”. Essa ele compôs na cadeia. E imaginou um garoto do leste americano tentando a sorte pegando a estrada para a Califórnia. A música ele criou usando um mapa rodoviário dos Estados Unidos para roteirizar a intrépida viagem do rapaz, até quando ele chega na Terra Prometida e, de brincadeira, liga para os seus, do outro lado do país. Elvis fez uma versão definitiva desse que é um clássico subestimado de Chuck.

Chuck foi o primeiro guitar hero. Pelo menos, se não em virtuososmo, certo que sim em matéria de proeminência. Ele sabia que não precisava ser mais do que ele era, porque ele tinha as qualidades suficientes para um guitar hero: inteligência, talento e, além de tocar, ele interpretava todas as suas canções. Por isso todos os meninos ingleses queriam ser como ele.

Keith Richards disse no livro Life que roubou todos os licks e riffs possíveis do Chuck. Na verdade, isso é apenas uma confissão. Afinal de contas, todo mundo sempre soube disso. Quem não sabe, então conhece os Stones mas nunca ouviu Chuck Berry na vida. Aliás, a primeira gravação dos Stones na Decca foi, justamente, um sucesso então recente de Chuck, “Come On” (de 1962, quando retomava sua carreira). Do primeiro disco, eles gravaram “Carol” e inspiraram-se na versão de Berry para “Route 66” (originalmente um tema de Nat King Cole dos seus tempos de pianista de jazz).

Falando em Keith Richards como grande admirador de Chuck, ele sabia que seu ídolo tinha um “irmão” — Johnnie Johnson. Aliás, mais do que um irmão. Foi Johnson quem catou Chuck para seu trio de jazz, assim que o solista original, um sax-tenor chamado Alvin Bennett, teve que sair do grupo por problemas médicos.

Foi Berry quem mudou o estilo da banda, ao ponto de pegar um tema deles, “Ida Red”, e transformá-la em “Maybeline”. A Chess gostou do som e assinou com eles. “Wee Wee Hours”, instrumental de Johnson também ganhou letra e a marca registrada de Chuck. Como tempo, o “trio” virou a banda de apoio de Chuck quando este tornou-se o primeiro da lista.

Berry e Johnson então firmaram uma parceria de quase duas décadas compondo e gravando juntos, além de criarem clássicos tanto da carreira de Chuck quanto da história da música ocidental do Século XX, “Reelin’ and Rockin’”, “Rock ‘n Roll Music”, “Sweet Little Sixteen”.”Carol”, “Nadine”, “Johnny B Goode” e a citada “School Days”.

Johnny era o verdadeiro “Johnny B. Goode” da letra (na verdade, “be good”, como que “comporte-se”). Johnson tinha sérios problemas de bebida (só largou o trago nos anos 90, depois de quase cair duro no palco) , e isso Chuck não tolerava. Inclusive, não queria que ninguém bebesse durante suas turnês. Esse foi um dos fatores que acabou separando a grande dupla.

Johnson desapareceu com a poeira do tempo, e virou motorista de ônibus em St. Louis por anos, até que o guitarrista dos Stones conseguiu acabar com o racha entre ambos, e pôs Johnnie como pianista no documentário Hail! Hail! Rock’n Roll, de 1987. De repente, o parceiro de Berry estava de volta ao mundo do show-biz.

Keith não existiria sem Berry, John Lennon também. é possível imaginar um mundo sem Berry, Beatles e Stones? É como imaginar a evolução da música ocidental sem Bach. O que iria resultar dessas ausências?

Voltando ao começo. Um exemplo da interferência recorrente de Berry no som dos Stones é é “Star, Star”, que é uma transcriação do som do Berry. Assim como “Subterranean Homesick Blues”, de Bob Dylan, é “Too Much Monkey Bussiness”, “Surfin’ USA” é totalmente decalcada de “Sweet Little Sixteen”, “Come Togheter” é inspirada em “You Can Catch Me” e o baixo de “Talkin’ Bout You” é o começo de “I Saw Her Standing There”, dos Beatles.

Se não fosse por Chuck, todo mundo hoje estaria tocando guitarra como se toca violão. Ele foi o profeta e evangelista da guitarra, Até quem nunca ouviu ele foi influenciado por Chuck Berry e não sabe (“Cigarretes And Alcohol, do primeiro do Oasis, é inspirada em Bang a Gong, do T. Rex que, por sua vez, é decalcada de… “Little Queenie”). Assim como um pianista para considerar-se como tal deve conhecer bem pelo menos todos os prelúdios e estudos de Chopin, um guitarrista não existe sem conhecer os riffs e licks de Chuck Berry.

Friday, March 10, 2017

Chinaski

No Carnaval eu estava cuidando da casa de um amigo enquanto ele viajava.

Minha tarefa diária era mais ou menos colocar o pastor alemão dele na entrada no começo da noite e abastecê-lo de ração, que ele faria o resto, latindo para os passantes.

Porém, nesse meio tempo, notei que era comum entrar na casa 1 quase sempre sorrateiramente, pela janela, um gato amarelo malhado.

Na verdade, quando o cachorro ficava no pátio da casa, durante o dia, o gato aparecia. na verdade, ele não aparecia: ele miava. E era um miado longo e langoroso de tão triste. Era um miado triste, como um suspiro. Achei que fosse fome. E, de fato, ele era um gato bastante magro. quase não tinha culotes. Porém, ele não parecia ser um bicho de rua. Cogitei que fosse de algum vizinho.

Todo dia, ele dava o ar da graça. Passava pelo jardim da frente. quando eu ouvia o miado, corria para a janela. Mas não sabia o que fazer. eu só tinha a comida de cachorro para lhe oferecer. Ele rondava a entrada da casa, sempre com aquele miado triste. e ia embora.

Isso se dava esporadicamente, porém. eu nem podia notar, já que cuidava da casa penas durante o começo da manhã e à noite. Uma noite, eu trouxe comida da rua. Quando ele apareceu, eu ofereci. Deixei no jardim. O bichano apareceu, cheirou a comida (era batata doce picada com arroz). Porém não quis saber. Me correu a vista de baixo para cima, soltou aquele miado característico dele e foi embora.

Duas semanas depois, o sogro do meu amigo apareceu. Tirou o pastor para os fundos e foi buscá-los no aeroporto. Fiquei naquele sábado na casa. Antes, porém, saí para comprar alguma coisa no mercado. quando voltei, ouvi os miados do gatinho, do jardim. sentei-me no sofá da sala e fiquei lendo. De repente, notei que o choro do bicho estava perto demais.

Quando me dei conta, o gato estava dentro de casa! Fiquei surpreso, tentei chamá-lo, mas ele era impassível. Parecia avesso a qualquer comando. Entrou e foi andando pela casa, pelos aposentos, sala de estar, cozinha...cozinha! Lembrei que havia deixado o postigo da porta da cozinha aberto quando foi colocar as roupas para estender lá fora! O pastor podia ver o animalzinho e atacá-lo impiedosamente.

Fui correndo tentar impedir o encontro fatal. Quando chego, o gato e o cachorro estão se olhando — um de cada lado do postigo. O pastor abanava o rabo. O gato deu outro daqueles miados, e o cachorro sorria com o rabo. Isso durou cerca de um minuto. Então o gato voltou calmamente para a sala; de lá, para a janela e, dali, para o jardim, ganhando a rua.

Depois que meu amigo chegou, eu perguntei: "por acaso você conhece um gato assim, assim?". Ele respondeu: "ah, ele é o Chinaski". Diante da minha cara de espanto, ele explicou:

— Quando minha cachorra morreu, há algum tempo atrás, lembro que ela sempre me esperava na entrada da garagem, um pouco antes da escada que sobe para os fundos. Ela sempre me esperava ali. Quando ela partiu, eu fiquei pensando: sempre que eu chegar, não mais a verei ali. E, sempre que eu passar por ali, eu vou me recordar dela. Pois não é que, uma semana depois que minha cachorra morreu, esse gato apareceu do nada. E, do nada, ele me esperava sempre no mesmo lugar onde ele costumava me esperar — sempre no pé das escadas.

Eu ouvia. Então ele prosseguiu:

— Há coisa de um ano e meio atrás, meu sogro salvou de um incêndio esse pastor que eu tenho agora. Ele era um dos filhotes numa casa onde a proprietária morreu a o imóvel ficou á própria sorte, com os animais todos trancados, passando fome. Os bichos acabaram sendo salvos, todos foram doados, e eu fiquei com esse pastor. Ele era bem pequenininho. Então eu o deixei aqui no pátio. Porém, nessa época, eu tinha o gato. O Chinaski praticamente adotou o filhotinho. e, por meses, os dois viveram juntos, aqui. Até que o cão cresceu, e o gato deixou a casa. Vejo que ele sempre aparece por aqui, mas é muito raro. Na verdade, há meses que eu não tinha notícias dele — até que você me falou dele.

Depois ele foi até o quarto e me mostrou uma foto. Era o Chinaski com o pastor, ainda filhotes: os dois brincavam como dois irmãozinhos. Fiquei pensando que devia haver algo de espiritual nisso tudo. O gato parecia um espírito que abençoava alguma coisa, e ele meio que representou um ciclo na vida de todos ali.


Fui embora pensando em perdas e em grandes amizades.

Tuesday, March 07, 2017

100 anos de "Livery Stable Blues"



O começo do jazz há um século

Se o ponto de partida do samba foi a primeira gravação de “Pelo Telefone”, lançado nas festas de Momo de 1917, o Jazz como gênero também possui a sua respectiva certidão de nascimento, exatamente na mesma época: o lançamento de “Livery Stable Blues”, interpretada pela Original Dixieland Jass Band, há exatos 100 anos, no dia 7 de março de 1917. 
 
é curioso ver que muitas são as semelhanças entre os dois gêneros. Claro que, como no caso de “Pelo Telefone”, a importância da data de lançamento de “Livery Stable Blues” serve mais como uma referência. Assim como ocorreu com o samba, o jazz foi um processo que começou ainda no final do Século XIX. Como no caso brasileiro, quando Bahiano registrou o samba coletivo, porém atribuído à Donga e Mauro de Almeida (gravado por Bahiano) coube à Original Dixieland Jass Band a primazia de pontificar no primeiro disco do gênero.
 
 A Original Dixieland Jass (ainda com dois esses) Band tava a chance de gravar um disco porque, à época, eles faziam muito sucesso divulgando a música de Nova Orleãs em Chicago e principalmente em Nova Iorque. Por conta disso, eles foram responsáveis pela popularização do gênero dixieland pelo país afora, mesmo que muito antes de podermos falar em Indústria Cultural.
 
 Aproveitando a grande chance em Nova Iorque, depois de uma audição frustrada na Columbia, a Original Dixieland Jass Band fechou contrato para um 78 rotações pela Victor, que interessou-se pelo progressivo interesse do público pelo jazz. Em 26 de fevereiro de 17, eles gravaram “Livery Stable Blues” no lado A, com “Dixieland Jass Band One-Step”. O disco fez grande sucesso. É possível que a disco tenha sido a primeira gravação comercial a atingir o marco de 20 mil cópias vendidas, a sete centavos de dólar cada. Nem Enrico Caruso, com toda sua glória e reputação, conseguira vender tanto com apenas um disco. 
 
Em 1914, Freddie Keppard viajou à Los Angeles para tocar jazz na Costa Oeste, com um sexteto chamado The Original Creole Orchestra. Em pouco tempo, o trompetista iria tornar-se uma lenda, tocando em espetáculos de vaudeville por todo o país. Contudo, ele tinha medo que outros músicos o copiassam. Tanto que, a fim de ‘esconder’ seu estilo, ele cobria as mãos com um lenço durante as apresentações no palco. 
 
Na mesma Victor que, três anos depois gravaria “Livery Stable Blues”, em dezembro de 1915, quando a Creole estava em Nova Iorque, ele declinou de um convite para gravar um disco. Keppard tinha tanto medo que roubassem seu estilo ouvindo os discos que ele deixou passar a grande chance. 
 
Por ironia do destino, coube a um grupo branco a tal primazia de gravar o primeiro disco de jazz. Ao contrário de Keppard, o filho de italianos Nicky LaRocca, líder da Original Dixieland Jass Band era obstinado, excêntrico e ambicioso o suficiente para fazer qualquer coisa para não desperdiçar uma chance dessas. As duas faixas escolhidas para a sessão de fevereiro de 1917, “Livery Stable Blues” e “Dixieland Jass Band One-Step”, já eram bastante conhecidas em Nova Orleãs.

Boa parte do sucesso de “Livery Stable Blues” está no caráter cômico da gravação, onde os instrumentos de sopro imitam sons de animais: LaRocca fazia a corneta parecer uma galinha e Larry Shields fazia a clarineta soar como um galo. Foi a primeira vez que grande parte dos americanos travaram conhecimento com o jazz. O sucesso foi tão grande que o quinteto acabou realizando uma grande turnê pela Inglaterra. 
 
Mas como acontece com as melhores famílias, todo o estrondoso e surpreendente sucesso da Original Dixieland Jass Band não foi suficiente para que a banda resistisse por muito tempo. Quatro anos depois, ela estava oficialmente desfeita. 
 
Ainda em paralelo com “Pelo Telefone”. Assim como aconteceu com o samba amaxixado que nasceu na casa da Tia Ciata, a gravação de“Livery Stable Blues” também está metida em polêmicas. Inclusive, a sua importância na história do jazz está na querela em torno da opinião de Nicky LaRocca a respeito de sua música. 
 
Até o fim, de forma disparatada o líder do quinteto auto-proclamava-se o criador do jazz. Até aí, tudo bem; afinal, Jelly Roll Morton também morreu jurando que ele era o inventor do estilo.
Mas, como se não bastasse, LaRocca asseverava que o gênero era uma “criação exclusiva de brancos”. “Os negros”, dizia ele, “não tinham nada a ver com o processo”. Pelo contrário, Nicky ainda por cima defendia que os negros, segundo ele, aprenderam o jazz com os brancos. “Os negros não fizeram nenhum tipo de músicas que se assemelharam ao que os brancos fizeram em nenhum momento”, afirmou.

Outro paralelo com a primeira gravação do samba: O lado B de “Livery Stable Blues” foi acusada de ser plágio de “That Teasin’ Rag”, de Joe Jordan. Para escapar de processo, LaRocca publicou a partitura com outro nome, e aí então descaradamente com o seu nome como autor.

Já a Columbia, que não se interessou pela Original Dixieland Jass Band com medo que o disco encalhasse, com o êxito sem precedentes de “Livery Stable Blues”, resolveu chamá-los de volta, para que gravassem mais um disco. Dessa vez, para livrar-se problemas com direito autoral, o selo pegou duas músicas do Tim Pan Alley, a rua das editoras musicas de Nova Iorque: “Home Again in Indiana” e “At the Darktown Strutters Ball”.

Mesmo assim, o disco faz com que o estilo se tornasse popular o suficiente para que Nova Iorque e Chicago virassem celeiros de conjuntos oriundos de Nova Orleãs, provocando uma diáspora — justamente num momento crucial: No final dos anos 10, o mercado do jazz por lá estava totalmente saturado.

Em 1918, King Oliver era um dos emigrantes que deixava o sul para a Cidade dos Ventos, para fazer história, com sua Creole Jazz (já sem os dois esses) Band — tanto no meio-oeste quando em Los Angeles com sua corneta. Quatro anos depois, ele levaria para Chicago um protegido seu, um certo Louis Armstrong. E o resto é história.

Monday, March 06, 2017

O Segredo do Segredo de Joe Gould


Joe Gould


Joe Gould, o famoso boêmio do Village dos anos 40, que convenceu o Joseph Mitchell de que ele teria escrito uma História Oral "de nossos tempos" — que era maior do que a Suma Teológica, ganhou uma biografia há menos de um ano. Jill Lepore, colunista do New York Times e historiadora, resolveu ir além do "segredo" do mais famoso biografado de Mitchell. No passado de Gould, ela descobriu que ele esteve envolvido em casos de assédio sexual e racismo.

Joe Gould's Teeth narra toda a trajetória do boêmio do Bowery antes do encontro com Joseph — desde sua descendência, oriundo de uma família rica da Nova Inglaterra, até seu ingresso em Harvard. Porém, quando o repórter da New Yorker travou conhecimento com ele, Joe não passava de um mero pedinte, transitando pelas ruas e bares do Village, mendigando desde pontas de cigarro até uma mísera refeição — em geral, um salgado empestado de vidros de ketchup.

O que o diferenciava Gould dos demais milhares de mendigos de Manhattan é que ele era um ex-estudante de Harvard, um intelectual que estava interessando em escrever uma obra-prima, a História Oral. Foi justamente essa lenda por trás dele que atraiu Mitchell a fim de procurá-lo para um perfil para a revista.

O primeiro texto de Joseph, "O Professor Gaivota" (1942), consolidou a reputação do biografado. O segundo e derradeiro, "O segredo de Joe Gould" (1965), conta a história por trás da produção da matéria e o que aconteceu entre ambos a partir de então.

Ali, o jornalista revela que, um dia, conseguiu contato com um editor para publicar a tal História Oral (que Joe dizia ter escrito e deixado esboços com vários amigos. O editor insistiu que o ajudaria a recuperar todos os originais. Contudo, ele usou de uma surpreendente desculpa esfarrapada de que queria deixar o manuscrito "para ser publicado após sua morte".

Aí Mitchell enfureceu-se. quando ficaram a sós, o repórter insinuou que ele, na verdade, não tinha escrito coisa alguma, só alguns ensaios subliterários sobre o "efeito do tomate nos americanos", sobre índios do Dakota do Norte e coisas sobre seus pais. Para Joseph, o mais frustrante foi notar pelo menos duas coisas: ou Joe tinha ambição e não tinha talento, e sabia disso, ou tinha talento mas era um preguiçoso. "Não sou preguiçoso", respondeu o notório boêmio.

O perplexo Gould não disse nada sobre a alada acusação, nem confirmou nem negou. Mitchell, que havia feito um perfil dele na New Yorker, logo depois sentiu remorso por ter acusado sua fonte. Com o tempo, procurou demonstrar que não se importava com o segredo (a inexistência da História Oral) que, para ele, ora diabos, seria bem para a máscara de Joe para ter alguma reputação entre seus amigos e entre as pessoas que passaram a admirá-lo e cortejá-lo a parir da repercussão do perfil entre os leitores da revista.



Gould morreu gagá em 57 e Mitchell só contou o 'segredo' numa matéria antológica, também para a Yorker, mais de vinte anos depois da publicação da primeira matéria, que havia entronizado Gould, como o maior escritor subterrêneo das ruas do Village que jamais existiu e lenda viva do Bowery. O segredo era que, infelizmente, na verdade, ele não passava de uma farsa, embora ele, Joseph, tenha se identificado um pouco com o perfil procastinador de sua intrépida fonte de talvez ter, ele também, procastinado a sua obra-prima, já que ele, Mitchell, quando era jovem, também queria escrever ter a sua glória literária contado a história de um Ulisses de Manhattan, que nunca escreveu.

Jill Lepore vai além do mito criado ao redor dele, e além da própria mitologia consolidada pelos textos da New Yorker. Primeiro: ela sustenta que, depois de "O segredo", muitos leitores alegaram que Joe teria realmente deixado material referente ao que seria a História Oral, além dos ensaios que Mitchell conheceu.

Segundo: Joe chegou a trabalhar como jornalista e pesquisador quando jovem. Autista, ele passou por eletrochoques e sofreu lobotomia em 1949. No começo dos anos 20, ele fez estudos sobre Determinismo Social para o Laboratório Cold Spring Harbor. Para Jill, seu contato com os índios do meio oeste veio desse trabalho que, segundo ela, Joseph tratou apenas como se fosse uma passagem excêntrica na vida de Gould que, para ela, foi influenciado pelo eugenismo típico da época, e que isso influenciou profundamente sua visão racial.

Isso não o impediu de nutrir uma relação com a famosa escultora Augusta Savage. De acordo com Lepore, Joe a assediava de tal forma que ela foi obrigada a deixar Nova Iorque. Ela liga a relação maníaca de Joe com Mitchell que´, depois da repercussão do perfil, não conseguiu livrar-se de sua fonte (até que o jornalista o desmascarasse, embora não publicamente). Ela também entende que enquanto seus amigos o idealizavam como um homem que sofria pela sua arte, na verdade, ele era uma pessoa atormentada pela sua fúria e frustração. "Para mim, seu sofrimento não era nada romântico e seu ódio não era nada inofensivo", diz.

No fim, de sua folclórica figura de bufão do perfil de 1942, ele decaiu para a farsa literária de "O Segredo" e, agora, para o quasímodo de Jill Lepore. Ela nota que muito do que serviu para a entronização de Gould nos meios literários da época foi o apoio e a amizade que ele travou com gente como Malcolm Crowley, e.e cummings e até mesmo Ezra Pound.

Jill entende que a forma de entender essa "lenda" reside no fato de que eles (e muitos outros) queriam ajudá-lo a sair de uma situação de irreversível invulnerabilidade social(de certa forma, quando Joseph arranjou um editor para a sua História Oral, não estava querendo nada mais do que isso: que Joe encarasse o livro como um desafio e uma forma de poder pelo menos viver de uma possível renda proveniente dos direitos autorais, salvando-o de acabar em 'flophouses').

Por outro lado, ela também entende esse movimento como uma "conspiração literária" a fim de esconder a personalidade instável, selvagem e agressiva de Mr. Hyde-Gould em uma pessoa socialmente integrada. No entanto, se a autora destrói o mito da personalidade do lendário boêmio do Village, ela faz o caminho inverso ao de Mitchell ao tentar provar que, mesmo não tendo algum manuscrito que comprove isso, ele realmente escreveu um livro.

Lepore explica que, após a publicação de "O Segredo", muitos leitores enviaram cartas à redação da New Yorker, afirmando que possuíam esboços da História Oral. O próprio repórter, à época, respondeu dizendo que, se tivesse o material em mãos, iria finalmente fazer a retificação e comer o próprio chapéu.

No entanto, a história ficou como estava. A questão hoje, porém, é que não importa a qualidade ou a excelência do que restou nesses cadernos; mas, mais do que isso, o fato de que existe um legado — mesmo que, se, no fim das contas, fossem pastas e mais pastas de laudas escritas à mão com as mesmas digressões sobre índios e tomates que Mitchell encontrou (e a "história oral" que Joe relatou em séries de entrevistas em mesas de bar para provar que, sim, havia um texto, mesmo que apenas na sua cabeça).

Enfim, o que vale seria uma edição crítica do "algo" que corresponde à totalidade de seus manuscritos, para que a posteridade possa conhecer exatamente o que ele deixou quem sabe não como escritor, mas, como grafomaníaco. Afinal, Joseph mesmo relatou que havia sim manuscritos, mas quanto mais ele lia, mais ele descobria que ele versava sempre sobre os mesmos temas (Gould defendia-se, alegando que era a parte "ensaística" da História. Porém, de tão enfastiado das supostas mentiras de sua fonte, ele resolveu dar cabo do perfil antes que desistisse dela em favor de outra pauta).










Saturday, March 04, 2017

URSS no Divã


Capa do livro

Terminei o livro da Svetilana Aleskevich, Vozes de Tchérnobyl (ou Chernobyl, como prefiro usar aqui). Que coisa impressionante você ouvir a voz interior do povo russo da forma como ela fez. Não sei o que dizer. ela colocou a URSS no divã. A história da viúva do liquidador eu chorei acho que uns 40 minutos. é muita coisa para dizer e para se pensar.

Mas, como ela disse no discurso do Nobel, na verdade os livros dela no fim das contas, pelo método que ela emprega e o tema, são discursos sobre o mesmo tema. A relação do povo com o estado, com o passado soviético, o homem soviético, esse sentimento fatalista, essa coisa de ter que esconder essas histórias em favor do estado, do orgulho russo.

A loucura da forma como as pessoas foram tratadas como lixo na evacuação, aquilo é um quadro apocalítico. Antes de tudo eram pessoas, pessoas enterradas vivas, uma nação de seres humanos jogado na vala.

Uma história de guerra, da enfermeira que arrastou um soldado alemão, pôs o homem numa tala, e salvou um russo, eis que os dois acordam e, mesmo mortalmente feridos, começaram a matar-se, ela afastava os dois, no chão, se esvaindo em sangue, e o sangue deles se misturava e cobria a enfermeira que, em desespero queria apartar aquela briga absurda.

Os russos encaram a II Guerra como a Guerra Patriótica. Aquilo para eles é tudo, é mais que o 7 de setembro. Mas Chernobyl foi uma guerra que eles não entenderam. Na II Guerra, as pessoas queriam ir para o front, queriam defender de peito aberto a Rússia. Em Chernobyl eles foram tratados como gado.

Foi criminoso: ainda mais porque politizaram o episódio. Quem expusesse as contradições da forma como o Estado tratava o assunto era inimigo infiltrado. E queriam, como disse alguém, usar pás para lutar contra o átomo. Outro diz: o problema é que os russos sabiam conpreender o que era uma luta patriótica contra o inimigo. Eles souberam lutar contra Napoleão, contra Hitler, mas não estavam preparados para Chernobyl.

Não queriam dar máscaras antigás para "não causar pânico". Medo do pânico, desinformação, mentiras de que estava tudo bem, que era coisa da CIA fez com que a tragédia fosse muito maior. Hoje, na Ucrânia na Bielorússusia, de 14 homens que morrem só um morre de velho.

O resto são hibakushas russos, como no Japão. são os filhos de Chernobyl. Como eles, por décadas os hibakushas foram segregados. Viviam como em colônias penais agrícolas.. São pequenos reatores ambulantes. Até os mortos 'sadios' não queriam saber dos mortos radioativos, fala uma mulher, quando foi enterrar o marido. A chaga exposta, a angústia, o desespero daquelas pessoas marcadas para sempre é uma coisa que, para ver! Eu via aquelas fotos absurdas de Prípat e não entendia nada.

O que aconteceu. Uma imagem vale por mais de mil palavras. Mas aquelas fotos não são nada comparado com os relatos. Os relatos explicam tudo. É avassalador, desesperador. Assim como eu via aquelas meninas bonitas em fotos do front russo, como aquela atiradora de elite, Roza Chanina. Uma menina linda. O que ela estava fazendo no front? O que aquelas mulheres fizeram na II Guerra é inacreditável.

A História Oral que ela faz é banido da academia soviética. Era como no 1984. Quem controla o passado, controla o futuro. Não queriam saber de história oral. Queriam apenas propagar a versão oficial. Achavam que ela queria ser um Erich Remarque da vida. Não tem como não lembrar o John Hershey, Ele chocou o mundo quando deu voz àquelas pessoas e recontou a história delas no Hiroshima. Aquele livro já é desesperador, imagine o Vozes de Chernobyl. Quem paga o preço dessas famílias partidas e destruídas?

O fim de Vozes de Chernobyl prepara-nos para o seu mais recente lançamento no Brasil: o Fim do Homem Soviético. Como Svetilana Aleskevich fala, por conta da técnica e dos temas, os três livros se completam. Em algum momento, um homem fala: nós, diferentemente de outros povos, como o alemão, não aprendeu a lidar com a técnica, com a tecnologia. Nós sempre tratamo o trator como se fosse um cavalo empacado ou coisa parecida. Outros vão mais longe. Apontam o atavismo rural medieval de um país que se fez potência sem passar por um processo histórico como os demais. É der se pensar: esse é só o começo do degelo da União Soviética.