Thursday, December 29, 2016

O Grupo Ivanhoé


Anúncio do Grupo Ivanhoé na Folha da Tarde


No dia 11 de setembro de 1971, a folha da Tarde anunciava: "Paulistas descobrem o Sul com a Ivanhoé". A empresa, na verdade, era paulista e capitaneada por um grupo de jovens que haviam ganho um bolão na Loteria Esportiva. Com a Ivanhoé, eles queriam criar uma espécie de holding, abarcando desde um banco de crédito imobiliário até uma agência de notícias. Aliás, anunciavam desde já uma publicação própria, a Alhos e Bugalhos, produzida pela recém fundada Ivanhopress.

No entanto, foi um necrológio, publicado na edição de 20 de outubro daquele mesmo ano que se soube mais sobre a megaempresa. Tratava-se de convite para enterro de Pedro Louzada Balaustre, que seria ocorrida na cidade de Muçum. O texto também destacava as ramificações do grupo. o Correio do Povo também deu notícia do infortúnio, pormenorizando o perfil do falecido presidente da Ivanhoé Produções "aos 84 anos".

No mesmo dia, a Folha divulgava um "comunicado" (reprodução acima) que repercutiu inclusive na Assembléia Legislativa. Um deputado da região de Muçum que, pedindo espaço na ordem do dia, comunicou o passamento do ilustre conterrâneo.

O Diário de Notícias de 22 de outubro trazia reportagem sobre Balaustre, intitulado pelo jornalista que assinava a matéria, Janer Cristaldo, de "Lincoln do oeste paranaense". O texto também destacava a importãncia do falecido em várias esferas públicas e até culturais.

Três dias depois, Pedro Louzada Balaustre Júnior divulgou ao seu público externo — acionistas, autoridades civis e eclesiásticas — relatório da Ivanhoé Produções a respeito das novas ramificações do grupo: Ivanhoaço (Aços Finos Ivanhoé), Ivanhoair, Ivanhomem (uma espécie de Mobral), Ivanholac (Laticínios) Afugi (Associação de Funcionários da Ivanhoé), Ivanhocard, Ivanhoterra, Ivanhojuris, Ivanhomed, Ivanhoquímica e Ivanhofértil.

No fim, o relatório resume biografia de Balaustre, destacando seu começo no seio da terra, seus esponsais com Carmelita Umbrella, a matriarca da família e protetora das artes. Carmelita era uma fusão de Darcy Vargas, Anita Malfatti e Lina Bo Bardi. Perplexo com o relatório, o advogado e professor de Direito Antônio Martins Costa mandou carta à Louzada Jr. dando enorme apreço ao finado patrono, "exemplo de amor e dedicação e de bem servir".

Semanas depois, a imprensa seguia repercutindo as ações da Ivanhoé. A coluna de Antônio Carlos Porto (De Alto a Baixo) dava votos de boas festas à Dona Carmelita, que iria lançar pedra fundamental do Orfanato Pedro Balaustre; Ataíde Ferreira, na Folha Esportiva retribuía mensagem de fim de ano de um certo Alberto Umbrella, do clube Fortes e Livres, da cidade de Muçum.

No dia 31 de dezembro de 71, Carlos Coelho, no Informe da Zero Hora, dava um furo: Gabril Inellas, loco-tenente geral da Ordem Hospitalar de São Lázaro, anunciava interesse em adquirir o controla acionário da Ivanhoé Produções. Fez-se a polêmica: dado o processo de translado de uma grande empresa gaúcha do cone sul, cogitou-se, à guisa de solução imediata e salvacionista, a reativação da Micronorte, empresa vetusta que fora criada quando o Bicre-Banco Ivanhoé de Crédito Republicano, sob ameaça de ser absorvido pela Unidesco, foi salvo em cima do laço por uma operação deus ex machina (ou quase excusa?) da Holding Midas, que contou com o auxílio da Ourivesaria Balaustre, Refinaria de Petróleo Dilúvio S.A e a Metalúrgica Umbrella S.A.

A coisa engrossou quando um certo grupo econômico criou campanha publicitária sobre seu respectivo presidente, posto a ombreá-lo com o desaparecido Pedro Balaustre. A resposta veio incontinente de Balaustre Jr, que respondeu à matéria, ameaçando acioná-lo na Justiça através da Ivanholex (Advocacia), dadas a farta documentação franqueada pela Ivanhoinform — Espionagem e Sigilos Industriais. Contudo, antes que a polêmica ganhasse vulto, desapareceu por completo.

Repercutindo o caso, porém, a edição de 4 de julho de 72 da Zero Hora trazia um furo, dado em primeira mão por Aspecyr Umbrella, da Ivanhopress: estavam em negociações uma possível cinebiografia de Louzada Balaustre. Enquanto isso, o Grupo Ivanhoé crescia: foram fundadasa a Ivanhodog (rede de lanchonetes fast-food, em moda na época em Porto Alegre, com o advento do cachorro-quente), Ivanhonasa (Rede de Comunicação), Ivanhoféretro (ramo funerário), Ivanhoar (refrigerações industriais e domésticas), Ivanhocar, Ivanhobrás (aproveitando a onda de civismo dos anos 70) e, por fim, a Rede Ivanhoé Sul de Comunicações. Tudo sempre ganhando relativo espaço na imprensa porto-alegrense.

Em notas e rodapés de colunas, também surgiram outros desdobramentos do Grupo Ivanhoé: da parceria comercial com o Grupo Habeas Corpore (rede de supermercados Império S.A), e o surgimento de franchises, como as Boutiques Carmelita, Empresa de Táxi Bandeira 3, Roupas Íntimas Jandira S.A, Cabanha Ivanhoé, Haras Ivanhoé, Ivanhoave (Aviário Ivanhoé), a novos braços tentaculares da Ivanhoé Produções — até a Ivanhoerva (empresa de fomento ao plantio de gererê).

A imprensa também dava conta de uma futura escuderia, o Balaustre's Racing Team, disposto a suplantar a Coopersucar. O patrocínio dos bólidos, é claro, é do Banco Ivanhoé S.A.



Tempos depois, descobriu-se a o Grupo Ivanhoé só existia na cabeça dos idealizadores da brincadeira: Rogério Mendelski, José Antônio Pinheiro Machado, depois contando com a ajuda dos demais citados (aliás, Luiz Fernando Verissimo ficava responsável pelos artigos de fundo, como o reproduzido acima). O mico ficou por conta de próceres tanto da Assembleia do estado quanto do Congresso, que entraram para os anais com seus respectivos votos de pesar, proferidos no púlpito ao passamento do patriarca da inexpugnável Ivanhoé Produções.

E do pároco da Matriz de Muçum, que realmente preparou a igreja para as exéquias do inesquecível Pedro Balaustre. ^



PS: a história sairia, com riqueza de detalhes, no livro Anedotário da Rua da Praia 2 (o melhor dos três), do renato Maciel de Sá Júnior.




Monday, December 26, 2016

Quarto Distrito, Dias e Noites


A Roosevelt nos tempos de Av. Eduardo

Andando de passe livre por uma Porto Alegre quase deserta e de lojas fechadas em busca de algum bar, desci no fim do T2 e fiz uma coisa que não fazia há tempos: percorrer toda a Avenida Presidente Franklin Roosevelt, no 4º Distrito.

Desci da João Inácio até onde ela desemboca numa pororoca de carros e ônibus no cruzamento da Farrapos, Almirante Tamandaré e Visconde do Rio Branco. Na esquina da Tamandaré, avistei o Bar Garota aberto.

Depois da segunda cerveja, perguntei ao dono do estabelecimento se ele se lembrava do bairro nos anos 70 ou 80. Ele respondeu que toca o boteco desde o começo dos anos 90.

Então eu contei que eu havia descido a Roosevelt de cabo a rabo e concluí que o Garota era o único comércio antigo que ainda resistia no São Geraldo, que é uma região da capital que, justamente a partir dali, passou a sofrer uma decadência terrível.


Na verdade, eu nasci lá. Não vivi muito tempo no bairro. Morei depois em outros lugares, mas o São Geraldo sempre será um lugar meio mitológico. Afinal, eu passei meu primeiro ano de vida ali. Depois, mais tarde, sempre retornava no Natal. No Gobbo — aquele edifício gigantesco na frente do posto Shell, além de nós, meus avós maternos habitavam o segundo andar (nós no quinto).

Claro que não tenho recordações daquele começo profundo: mais daqueles serões natalinos, quando ainda era possível juntar toda a família da parte de minha mãe. Hoje parece engraçado imaginar como aquele apartamento, apesar de gigantesco, conseguia comportar tanta gente.

Lembro do Presépio originalíssimo da minha avó. Ficava num balcão. Meu avô, que sempre fora habilidoso com as artes de marcenaria, havia montado ele. A reunião de Natal fazia parte do calendário da família. Nós éramos os "de fora". Vínhamos ou do rio ou de Curitiba especialmente para o ágape — e sempre emendávamos o Ano Novo junto.

Nessa pequena nesga de tempo, me era possível voltar á Porto Alegre. Porém, como não tinha idade para andar livre pela cidade, meus passeios eram nas redondezas.

Só que, naquele tempo, a Roosevelt — ou antiga Av. Eduardo, era um imenso bulevar. Tanto que a rua possuía um comércio gigantesco, era um shopping a céu aberto. A própria construção de prédios como o Gobbo, o Satélite (da Varig, na esquina da São Pedro com Farrapos) ou o King Eduardo estava no contexto de um bairro em ascensão, com lojas, cinema, clubes e associações. O Gondeleiros tinha um dos melhores carnavais de Porto Alegre.

O comércio de rua do São Geraldo naturalmente chamava gente de todas as partes da Zona Norte. Difícil comparar com algo hoje. Algo como é a Azenha, porém sem aquela populacha e trânsito frêmito de ônibus e pedestres. A Roosvelt era mais calma, até porque era uma via paralela à Farrapos, que puxava todo o tráfego norte-centro.

Lembro que a gente fazia todas as compras de natal ali. Descia do Gobbo pela penumbra porta de serviço — minha avó me levando feericamente pela rua, não sem antes parar para conversar com tudo o que era dona de boutique pelo caminho. Logo, do lado do prédio, tinha a Boutique das Noivas. Mais adiante, antes da Igreja Batista, a oficina Coruja, no fim da quadra, a gráfica Belgraf. Na Quintino Bandeira havia um restaurante que servia rã (esqueci o nome) e que também fechou faz tempo.

O comércio começava ali, na altura da lancheria Sagres; a lotérica e tabacaria, depois vinha a Livraria do Globo, Multisport, Dália (outra parada da minha avó para papear), Casas Pernambucanas, o consultório do dr. Raskin e mais uma loja que esqueci. Quase no Gondeleiros, tinha a Joilie Modas (outra parada da vó) e, ao lado, uma lanchonete (o Milka) que, até este ano, havia virado num pé sujo (onde eu primeiramente pretendia gelar a garganta mas descobri, pálido de espanto, que era um estabelecimento a menos na avenida).

Verão em Porto Alegre era um inferno. Mas, naquele tempo, a gente podia aproveitar a Roosevelt, que tinha uma belíssima iluminação noturna e uma vida idem lá para os lados do Concórdia. Sempre tinha um bar ou lanchonete onde dava para curtir até a meia-noite. época de Natal era bonito de ver tanta gente na rua: muita gente, mas com todo o tempo do mundo.

Passando a Moura Azevedo, tinha a PanVel e a Lobrás à direita de quem vai para a Sertório. A Lobrás era a minha loja preferida (euqe tinha umas sacolinhas bonitinhas quando a gente comprava balas), e principalmente porque era a que tinha a melhor seção de brinquedos do São Geraldo. Adiante, havia à esquerda a Renner (três andares, onde hoje é a Coelho Comércio de Móveis), a Soberana dos Móveis e a Imcosul. Hoje tem o Rissul na São Pedro. Naqueles tempos, o único supermercado da região era o Real, que ficava na esquina da Pernambuco. Uma pernada.

O restante do comércio se espraiava pela São Pedro, entre a Roosevelt e a Farrapos. O Marinha Magazine, do outro lado da rua, do lado de onde fica hoje a Caixa. Defronte, no 2502 da Farrapos (onde meu avô morava antes do Gobbo, depois de sair do Centro, há priscas eras), a J.H Santos, onde todo mundo ia lá aproveitar as "barbadinhas". Foi dali que eu ganhei meu Atari, no Natal de 85, sempre fingindo acreditar que eram presentes do Papai Noel.

Falando em presentes, antes da distribuição, minha avó (que, como matriarca, era a responsável pelo pregão dos presentes depois da reza inicial e agradecimentos pelo ano que passou etc etc.) pedia para que a gente não estragasse os papéis-presente. ela tinha um compartimento no armário do quarto com toneladas de papel de presente. Muitas vezes, ela comprava alguma lembrancinha para alguém em algum bazar, mas depois embrulhava o regalo com papel da Renner — aquele de Natal, que era dourado com vermelho, só para fingir que era um presente chique. eu me divertia vendo ela fazer a trampa (e depois pegava os papéis tudo de novo).

Aqueles serões de Natal eram divertidos. Até o ponto em que as famílias das famílias viravam famílias. E sempre o patriarca morria, a matriarca era o fator de coesão do grupo. Até que enfim ela partia, e todo o núcleo se desfez. Isso acontece com todas, não iria deixar de acontecer conosco.

O curioso foi que, junto com o progressivo desmanche da família Esperança, ocorreu o declínio da Roosevelt. No começo dos anos 80, surgiu o Iguatemi, seguindo uma tendência de fim de comercio de bairro pela cidade em favor de shoppings, a partir do primeiro deles, o Centro Comercial João Pessoa. Algumas lojas fecharam suas filiais no São Geraldo, como as Pernambucanas. Outras simplesmente fecharam suas portas — Imcosul, Soberana dos Móveis, Marinha Magazine e a J.H.

O comércio que ficou é pequeno, literalmente de rés do chão. E a Roosevelt congelou no tempo: o bairro está lá mas, como aconteceu comigo ao descer a avenida dos seus estertores até a Farrapos, naquela quente tarde de 25 de dezembro, estava eu na verdade em busca de outra Roosevelt, uma Roosevelt que não existe mais.






Thursday, December 08, 2016

Estação Elétrica, 40 anos



Arte do disco


O tempo passou eu me lembrei: o Estação Elétrica, único disco de estúdio do Bixo da Seda, está fazendo esse ano 40 anos. É incrível imaginar o que era para uma banda de rock do extremo sul do Brasil lançar um álbum naquela época em que rock era puro desbunde e contracultura.

Fazer rock há 40 anos atrás era como navegar pelas águas turvas e intranquilas. O mainstream era em parte aquela MPB que estava ficando cada vez mais bicho grilo, enquanto o rádio tocava somente os sucesso pré-fabricados de ocasião — basicamente os fonogramas de paus de sebo e trilhas de novelas da Rede Globo. Não que isso fosse de todo ruim; inclusive, se a gente pegar hoje aquelas trilhas, fica impressionado em ver quem como diria o André Midani, até o jabá era de qualidade.

Mas em matéria de rock, navegar pelo gênero era quase como pregar no deserto. basta lembrar que grandes clássicos que saíram na década — e que são cultuados hoje — foram retumbantes fracassos. Muitos foram lançados em selos que ou fecharam ou foram comprados por alguma grande gravadora. Por muitos anos, aquele material restou fora de catálogo.

Foi o caso do Estação Elétrica. Lembro que, quando ia a algum sebo, sempre via a capa do elepê em exposição (assim como o Por Favor Sucesso, do Liverpool). E não tinha a mínima ideia do que era aquilo. Lembro que, lá pelo começo dos anos 2000, eu comentava com um amigo a respeito de uma matéria da Bizz sobre grandes álbuns de rock esquecidos — texto, se não me engano, do Fernando Rosa, que foi um dos primeiros a inventariar todo o legado do gênero que ficou esquecido por quase três décadas e que reapareceu com a Internet.

Esse meu amigo disse que tinha os dois vinis, o Estação e o Por Favor... E me gravou ambos em CDA. Isso que, naquela época, ali por 2000, 2001, nos áureos tempos dos três-oito-meia, não havia tecnologia para baixar discos completos como hoje ou muito menos streaming (Youtube viria depois). Logo, ter acesso a esse material era ainda um privilégio.

Isso que o áudio do meu CD era, na verdade, ripado do algum vinil, totalmente artesanal. Mas estava tudo ali, exceto o Marcelo Zona Sul. Era notável observar a diferença da primeira fase Liverpool Sound — mais tropicalista, lisérgico, Mutantes, puro rock sessentista Lado B, muito melhor do que o udigrudi pasteurizado e colonizado da Jovem Guarda e a segunda, rock clássico, misturando viagens tipo Yes no lado A e um som mais básico, hard rock com uma malemolência a la Stones.

Meu choque inicial foi perceber que a Internet nos prometia essa perspectiva revolucionária: de descobrir toda uma música que ficou arquivada e que agora eu poderia usufruir. Você sempre ouvia falar do Bixo, do Fughetti e das histórias do IAPI, mas faltava ouvir o disco. Agora, não faltava nada. Virei fã na primeira audição, e é sempre uma delícia ouvir o estação, assim como tantos álbuns clássicos e que passaram batidos por tanto tempo, todo o prog nacional que havia ficado prá trás.

Rock era algo interdito por aqui. Imagine o que era fazer música em Porto Alegre nos anos 70. O estabilishment do nosso burgo açoriano não queria saber de aglomerações de jovens em lugar nenhum. Se em outras cidades, como no Rio de Janeiro, havia uma certa permissividade, por parte dos órgãos do governo, para a realização de shows, aqui era quase uma aventura para se conseguir liberação de algum evento. A coisa mudaria a partir do Musipuc e com as Rodas de Som, produzidas pelo Carlinhos Hartlieb, em 75. No Clube de Cultura, direto da Zona Norte, o Bixo da Seda começava a sair do casulo. As tardes de sábados e domingos eram povoadas pelas guitarras de Mimi, Edinho e Cláudio Levitan.

Aquelas tardes no Clube seriam o prenúncio do que iria acontecer também a partir do Musipuc, que era a revolução do Vivendo a Vida de Lee. Nessa fase, Bixo e o Prosexo tocavam muito pelo interior do estado. O turma de Fughetti chegou a lotar o auditório da rádio Cultura, de Pelotas. A ideia era tocar onde fosse possível. No entanto, muitos diretório acadêmicos estava fechada para o rock. Isso naquela época em que o movimento estudantil ainda via o gênero como algo alienante ou coisa parecida.

Ou seja, parte da juventude não via com bons olhos aquelas bandas; por outro, as gravadoras simplesmente ignoravam a produção musical do estilo naquele tempo. Casos clássicos: os Mutantes foram demitidos da Phillips porque o progressivo deles era considerado hermético demais para as rádios. Outra foi o Vímana, cujo disco de estreia — totalmente produzido pela banda, foi esnobado por todas as gravadoras brasileiras. Independente de qualidade, num outro contexto musical, os dois álbuns teriam acontecido — o que não ocorreu, naquelas tempos adversos dos anos 70.



O Bixo da Seda seria o piece de resistance das Rodas de Som no Teatro de Arena, em 1975. Eles já fazia um circuito tocando em locais nomo no Sindicato dos Metalúrgicos (na Francisco Trein), perto do IAPI e venciam a resistência de parte do público local em desdenharem artistas locais. Carlinhos Hartlieb, que já mantinha contato com eles desde o Por Favor Sucesso, conseguiu amalgamar novos talentos com seus amigos veteranos.

As Rodas foram um sucesso desde a sua estreia, em 7 de março de 1975. O apoio dado pela Continental (onde Júlio Furst já dava a largada divulgando os músicos da cidade no programa do Mr Lee) fez com que os 240 lugares do Arena fosse pouco para as quase mil pessoas que estavam no lado de fora do viaduto Otávio Rocha. Isso contrariando todas as expectativas: muitos achavam que era coisa de maluco um espetáculo na madrugada de domingo em pleno Centro.

As Rodas e a nova onda de artistas impulsionou a carreira do Bixo que, um anos depois, estava de malas prontas para o Rio. eles haviam fechado contrato para a gravação de um elepê para a Continental. Ao mesmo tempo, outros grupos, como os Almôndegas, já surfando em outras praias, também se insurgiam no mercado fonográfico. foi uma época que durou exatamente o período do auge do Mr. Lee na Continental. A banda foi reformulada para as sessões. Renato Ladeira, que havia deixado a Bolha no segundo disco (apenas compôs algumas faixas, mas estava ausente de É Proibido Fumar), toca teclados e guitarra no Estação.

Uma pena que o Brasil daqueles tempos ainda não estivesse preparado para o rock. Aquela primavera musical que floresceu em Porto Alegre perdeu-se num longo inverno. E o Bixo acabou.

Quando o rock gaúcho estourou, nos anos 80, no entanto, muitos daquela nova geração paradoxalmente ia contra o legado dos anos 70. Não que isso fosse regra. Quando o disco-manifesto saiu, em 1984, a Bandaliera, agora não mais uma banda instrumental, gravava "Rockinho" do Fughetti Luz. O Bixo havia acabado, mas ele sempre estava em espírito naquela nova dentição do rock regional.

Na verdade, o Bixo da Seda nunca acabou: só fez, como é mode se dizer hoje, uma pausa. e é provável que essa redescoberta e essa permanência nasceu porque, em algum momento, outras pessoas além de mim, conseguiram uma cópia em fita cassete ou em CDA e descobriu que o rock gaúcho não começou em 1984. Começou bem antes, e a maior banda de todos os tempos por esses pagos é o Bixo da Seda.

Friday, December 02, 2016

Emotional Rescue



Se você se lembrar, logo no começo de Keith Richards: Under the Influence, o guitarrista dos Rolling Stones toca "Blue And Lonesome", faixa de (regravada por e quem a notabilizou) Little Walter que dá nome ao novo álbum da banda. No documentário, ele conta como o blues foi o café da manhã do quarteto, destaca a importância cultural da música americana tanto para o mundo quanto para a sua própria formação musical.

Dada a largada, é fácil entender onde está o começo de Blue And Lonesome. se formos olhar em retrospectiva, desde que Mick e Richards começaram a compor, deram-se conta de que não conseguiam sair do pop. Ao mesmo tempo, conseguiram um primeiro lugar nas paradas com um cover de um standard de Willie Dixon, o Barry Gordy Jr do Chicago Blues, "Little Red Rooster".

Lembro quando comprei meu primeiro disco dos Stones, o Big Hits (High Tide And Green Grass) inglês. A última faixa era o Red Rooster. Aquilo me assombrou: até então, era o que mais perto eu havia escutado de blues. Depois é que fui perceber a ousadia deles em transformar um blues rural num single. Era a contramão do sunshine pop que grudava nas paradas inglesas naqueles tempos da Invasão britânica.

O paradoxal nisso é que, ao mesmo tempo em que a banda colocou aquele gênero até então segregado nas principais rádios americanas (a maioria daqueles discos de blues era, até ali, apenas sucessos regionais de rádios idem) no primeiro plano, os Stones como compositores, foram se afastando do gênero que os formara. A partir de 65, pelo menos em estúdio, Jagger e Richards surfaram em várias tendências ao longo do tempo — cultura mod, psicodelia, country-rock, funk, disco, punk, MTV, pop, até o momento em que o paroxismo de experimentações quase provocou a cisão da dupla criativa do grupo.

A reviravolta ocorreria em 95, com o Stripped. três décadas depois, os Stones voltaram ao velho repertório ao mesmo tempo que trocaram as guitarras por violões. Quando já não mais havia necessidade de navegar nas vigas do pop, Jagger e companhia começaram o longo caminho de volta. Depois de tanto Emotional Rescue, e Undercover parecia incrível ouvi-los fazendo um cover de algo como "Little Baby" ou experimentando "Love In Vain" novamente. Aliás, a versão para o clássico do Howlin' Wolf — e consequentemente o Stripped já era uma espécie de prolepse de Blue And Lonesome: e se os Stones fizessem um disco só regravando velhos clássicos esquecidos?

Nas turnês, por conta da demandas dos fãs, as velhas canções reapareciam no set list dos shows. Keith tocou Wild Horses em Copacabana, em 2006 — algo impensável nos anos 70. Em 2015, ele resolveu lançar um álbum de inéditas com os Vinos (o Crosseyed Heart). Richards, alias que, depois de Mick, nos anos 80, resolveu ser cada vez mais autoral, até na hora de mixar as próprias faixas, como aconteceu no Bridges, deixou o seu material solo para o último disco.

Como não haveria nada de novo, pelo que se depreende no resgate emocional de Under the Influence, os Stones decidiram mudar os planos. Ao invés de emplacar algum sucesso, optaram por fazer o que faziam antes de gravar o primeiro disco. Blue And Lonesome impressiona porque é o primeiro disco da carreira do quarteto que é 100% covers. Nem na época em que eles ainda não se arriscaram em compor de verdade, eles haviam feito uma produção totalmente de versões (basta lembrar que o álbum de estreia deles, de 64, tem "Tell Me" e mais duas faixas Nanker-Phledge).

Como Keith fala em Vida, o material autoral deles se distanciava das raízes da música que os uniu ao mesmo tempo em que sua respectiva produção musical foi o que os manteve como grupo. Os Rolling Stones naturalmente nunca abandonaram o blues, muito embora este tivesse ficado num plano inferior na sua música — até o momento em que não havia necessidade de buscar o novo. Ou seja, em parte é um "retorno às raízes" como diria a imprensa ou um "resgate emocional", parafraseando a canção da banda.

No documentário de Morgan Neville, Richards põe a agulha no disco e roda Blue And Lonesome com o Little walter. Aquilo cala fundo. Até porque aquelas gravações originais (até a "I'm So Lonesome I Could Cry", que toca numa juke, no meio do filme) tem um blend especial. Aquilo soa simples e puro, uma gravações simples, como o rock deve ser — em um take, sem mixagens, com instrumentos acústicos, de preferência num registro rudimentar, como Robert Johnson. De certa forma, foi o que os Stones fizeram: nesse aspecto, foi quase como o primeiro disco. Pocas tomadas, banda ensaiada, gravada numa questão de horas, sem grandes mixagens, como um disco do Coltrane. Urgente e rude como o jazz, como o blues.

Dylan disse à Rolling Stone que sua postura singer-songwriter de certa forma matou o folk porque a essência do estilo é a versão. Ele se dizia "culpado" por ter virado autor, mas o folk não morreu; ele simplesmente se transformou à medida em que a música precisava mudar. Quer dizer, o passo não foi dado em falso. Porém, como diria o Gombrich na sua História da Arte: nem sempre o moderno ou o contemporâneo é o melhor em matéria de estética. O retorno não é um movimento único e típico da pós modernidade. Há muito coisa a aprender e a descobrir com o antigo. Desta forma, o retorno não é necessariamente nostalgia mas, sim, a busca do essencial.



Thursday, December 01, 2016

Desapegos



No começo deste ano, por motivo de força maior, tive que me desfazer da minha coleção de discos. Não sei quantos eram, mas era uma estante inteira. Isso que eu recentemente havia ganho mais vinis de amigos, embora não tenha tido sequer a oportunidade de escutá-los. O problema é que, com o passar do tempo em que fui me mudando para lugares cada vez menores, cheguei a um ponto em que sequer tinha condições de fretá-los.

No entanto, foi uma decisão que vinha sendo pensada há algum tempo. Pelo menos, desde que meu DDS 99 da Gradiente estragou de vez. O rádio estava com a luz digital apagada, os tapedecks estragados e o prato tocava sem retorno. Até que, numa última mudança, a correia estragou de vez.

Menos mal. Acho que teria sido muito mais difícil para mim se o toca-discos ainda funcionasse. Então, em março, eu dividi minha coleção entre aquilo que podia ser bricado, e aquilo que talvez rendesse algum dinheiro, e mais alguma coisa que pudesse ser vendida a curto prazo. Meu plano não deu muito certo. Eu dispunha de duas semanas para livrar-me de tudo. Um lote eu vendi, e me garantiu alguma sobrevivência. Aliás, eu sequer imaginava que os elepês rendessem dinheiro. Na verdade, nem tudo. A maior parte — e paradoxalmente a que eu mais me aferrava — não tinha valor nenhum.

Nenhum comprador demonstrou interesse nos meus discos de música clássica, que compreendia acho que 90% do meu acervo. ia desde aqueles títulos da Deutsche Grammophon até fascículos da Abril, como o Grande Compositores da Música Universal.

Lembro do meu primeiro disco de música clássica. Eu comprei num brechó, que ficava na Cristóvão Colombo, na frente da antiga Brahma. era um fascículo do Chopin. de tanto ouvir aquele velho disco riscado do Roberto Zidon na Rádio da Universidade tocando Ernesto Nazareth, eu fiquei com vontade de comprar um disco de clássico. Acabei me viciando.

O curioso é que, nesse brechó, a dona havia adquirido um lote gigantesco que certamente pertenceu a uma pessoa que colecionava discos de clássico. Imagino que fosse um senhor que morreu, a família se desfez daqueles 'trambolhos' e a dona comprou o lote. Eu passava todo dia ali. Ela nem era entendida do assunto, o negócio do brechó era roupas.

Eu notei que os discos eram escolhidos a dedo, e isso numa época em que o gênero erudito realmente fez época na história da indústria fonográfica, vamos dizer assim, brasileira. Até porque, hoje, na era digital, num nível internacional (e virtual) souberam lidar com os novos formatos e o mercado de nicho, ao passo que as novas gerações vão descobrindo esse tipo de música, e tem tudo nos fones ao passo de um clique.

Mas lembro de quando eu descia no subsolo da Casa Coelho: tudo lá embaixo era só jazz e erudito, e tinha um balconista que entendia das duas coisas. Imagino que o antigo dono dos discos costumava ir na Victor, na Krahe ou na Coelho, e saía de lá com toneladas de Karajan, Bohm, Richter, Previn, Rubenstein e Brailovski, tudo em lançamentos RCA, Columbia, DG.



Era esse tipo de material que eu encontrava ali. Acho que o básico para uma discoteca de clássico eu comprei ali, com meus morlacos de estagiário. Tanto foi que os meus discos de rock começaram a ocupar menos espaço na minha estante. E era algo curioso de se ver. Esses eruditos, em brechós e sebos da cidade, sempre eram vendidos a preço de banana. Ainda são.

A gente vivia um tempo distante da revolução do mp3 e da Wikipedia. Então, a importância que aqueles fascículos e contracapas (as contracapas, meu Deus, as contracapas!) tinham para a formação de cada um de nós era incomensurável. Os fascículos da Abril foram o meu começo. As 9 Sinfonias (caixa da Abril, com a Sinfônica de Leipzig) do Beethoven. Ao mesmo tempo em que me guiava pela rádio da UFRGS, aquilo tudo criou em mim uma obsessão por música clássica que perdura até hoje.

De vez em quando, passo em algum sebo ou no Brique da Redenção, e vejo algum disco do tipo e lembro da minha coleção. Lembro do dia em que, não podendo mais ficar com meus elepês e, tendo que entregar o apartamento, apelei para o Mensageiro da Caridade. liguei para lá e agendei que passassem para levar os discos.

Enquanto os carregadores encaixotavam tudo aquilo, eu lembrava do meu primeiro disco, de tantas madrugadas de audições, das leituras das contracapas. aquilo tudo representava uma curva de vida, de uma vida que se fez por tantos anos, álbum a álbum, adquirido e guardado com tanto carinho. Recordava do dia que aquele Hammerklavier com o Emil Gilels foi comprado, aquela caixa com a Zauberflôte também, aquele Puccini da Victrola com árias com a Lícia Albanese, as valsas do Chopin com o Arrau, a Sinfonia em Ré Menor do Beethoven com o Toscanini, o meu sonho de ter toda a Bach Edition da Telefunken (aqueles de capa azul com fotos em relevo) com todas as cantatas sacras do mestre de Eisenach, os discos do I Musici, todas aquelas capas lindas da Deutsche Grammophon, que sempre foi aquela gravadora que a gente comprava o disco pelo selo, e se não fosse por isso, era pela capa. Aquela Eroica com o Karajan que eu garimpei na Augusta, quando fui para São Paulo que, aliás, era importado e o dono da loja me cobrou uma nota por ele. Aquele fascículo do padre José Maurício que, na época, tinha a única gravação do Réquiem dele.

Em poucos minutos, o pessoal do Mensageiro colocou quase duas décadas de discos do meu acervo em sacos e caixas e desceu com tudo para o caminhão. Não podia mais mantê-los. Me senti vazio. Ainda me senti, sempre que passo na frente de um brechó com discos antigos. Fiquei órfão de meus elepês. Os de rock eu passei adiante sem remorsos. Nem eram tantos. Menos mal que, desde que eu descobri o mp3, eu fui me desapegando dos bolachões.

Não tenho fetiche por vinil, algo muito comum hoje. Mas é impossível livrar-me de toda a cultura de formação que gira em torno da minha geração de ouvinte, quando o long-play era relevante. Eu me apegava mais porque aquele acervo, com aqueles solistas, e aquelas gravações (Georgy Cziffra interpretando os estudos do Chopin), era material de uma época em que o cast dos grandes selos mantinham nomes como um Karajan, cuja imagem se misturava com suas interpretações de Beethoven, como Richter com Bach. Enfim, toda uma época de ouro do vinil de clássicos que acho que renderia um belo livro sobre o assunto.

Como eu disse, as lojas davam um destaque enorme para uma seção como a de erudito, ao mesmo tempo que as gravadoras lançavam muita coisa do gênero. Foi um boom que começou nos 60 (muitos dos meus eram daquela época, a maioria 60/70, o auge do vinil). A RCA tinha até a série Victrola, que eram edições populares de clássico, a preços módicos. Para quem se detiver, vai perceber o valor de uma contracapa de disco era como hoje eu ouvir o Piano Concerto do Schumann (tinha o disco com o Van Cliburn e o Fritz Rainer) no Youtube lendo a Wikipedia.

Por essas e outras que meus discos farão falta, mas não tanto. Eu até que ainda tenho acesso àquele manaicial de informação. O que fica é a mesma curiosidade enciclopédica que querer aprender sempre. Ou seja, não me apegava pela forma (vinil) mas pelo conteúdo.

Ele hoje está no mundo virtual. Não sei se é um apanágio zodiacal, mas eu pressinto as coisas lentamente. Então, desde muito tempo, eu já me preparava para o fatal desenlace. Lá se foi meu acervo para a caridade. E a única pessoa que daria valor aos pobres discos era este que vos escreve.

Às vezes eu aleatoriamente ouço, aqui ou ali, algum trecho da Sinfonia do Novo Mundo, do Dvorak, ou a suíte da Coppélia, ou o final do primeiro ato da La Traviata, e me perco em divagações. Fico imaginando que, em algum lugar fora do tempo, meus discos estão incorruptos, naquela mesma estante, esperando por mim.