Wednesday, October 26, 2016

O Império Contra Ataca



Meme da época do Stop Online Piracy Act



Há pouco tempo, a a Warner Music Group firmou contrato com a SoundCloud, legalizando instantaneamente uma enorme quantidade de músicas postadas no serviço. Segundo a Forbes, o negócio foi na casa dos US$ 120 milhões só para comprar 5% da empresa, que vale hoje mais de US$ 1,2 bilhão. Ainda de acordo com a revista, essa é a ponta do iceberg do que ela chamou de revolução silenciosa da digitalização da indústria fonográfica.

Quem tem boa memória deve lembrar do acordo que a Universal fez com os sites de streaming, com vistas a franquear todo o catálogo dos Beatles. Junto com isso, veio uma espécie de salvaguarda de curadoria do conteúdo desses e de outros artistas, todos devidamente protegidos mediante contratos que prevém um considerável retorno para as respectivas gravadoras.

Desde o advento do mp3, os tubarões da indústria fonográfica ficaram a ver navios com o aparecimento de sites de download, como o Napster e seus desdobramentos, até o aparecimento de páginas de upload e compartilhamento, como o Rapidshare. Isso não faz muito tempo, porém, já é um capítulo da história da música dos anos 2000.

Ainda puxando pela memória dos leitores: muitos devem lembrar de quando apareceu o Rapidshare (ainda com o site baseado na Dinamarca). aquela tecnologia, que acenava já com os ares da Web 2.0, permitia que arquivos maiores fossem divididos entre usuários em comum — em sua maioria, baseados em redes sociais de caráter folksonômico*, como o Orkut, quanto em blogs — mais especialmente os respectivamente hospedados no Google/blogger. Foi a Era do download, o eldorado da cultura Mp3.

A isso, deu-se o crescimento do acesso a informação sobre artistas/discos/selos, através da Wikipédia — tentativamente uma forma de catalogar um tipo de informação que estava dispersa na Internet. Na mesma época, sairia o livro 1001 Albuns You Must Hear Before You Die. Ao êxito editorial da publicação, veio a classificação de uma lista de material a ser ouvido (agora, com a web, com possibilidades infinitas) também a (re) descoberta tanto de clássicos antigos quanto da 'auratização' de bom material que as próprias gravadoras, no afã de conciliar suas vendas com uma relativa atualização de seus catálogos.

A verdade é que, mesmo com o CD, a maioria dos selos não estava nem interessada e nem preparada para publicizar todo o seu respectivo catálogo. Muitos ainda se apegavam ao vinil por conta disso: muita coisa não seria digitalizada, pelo menos, a curto prazo. Com a avalanche do mp3, esse prazo foi jogado para as calendas gregas.

De certa forma, a frenética demanda de downloads liquidava com os lucros das gravadoras enquanto rapinava o catálogo mainstream. Contudo, o que boa parte dos internautas buscava era, com efeito, a cauda longa** desse processo, quer dizer, o que seria o mercado de nicho — todo o resto da música que nem a própria indústria conseguia resgatar dos seus arquivos.

A fórmula redes sociais (Orkut) mais Blogger foi uma época bem específica: de certa forma, começou com a popularização do Orkut, com a transformação do blog em páginas tematizadas de download, lá por 2005/6, e durou a polêmica do Stop Online Piracy Act***, casuísmo do Congresso americano, em defesa das empresas lesadas pelo processo, cujo corolário foi o fechamento das páginas de upload/download (Rapidshare e Megaupload), do Orkut, além do fechamento de milhares de blogs.

A verdade é que, se essa caça às bruxas deu algum resultado foi mostrar que, se as gravadoras não conseguiam combater esse fenômeno (o download), queriam pelo menos mostrar do que seriam capazes. A verdade é que até mesmo eles sabiam que é impossível conter de todo esse fluxo. E, afinal de contes, como se sabe, ainda é possível baixar música livremente pela Internet. Porém, ao invés de tentar caçar downloaders, as gravadoras resolveram dar o passo á frente. se não é possível vencer o inimigo, junte-se à eles.

Depois da tempestade, as gravadoras remanescentes — Warner, Universal e Sony, compram participações em sites como o Spotify e em satartups de vídeos. Em troca de um valioso acervo musical (que é mais barato e logisticamente digitalizar para streaming do que vender em Cds, aliás, desnecessário conceber algo diferente disso), elas obtêm participações irrisórias para, num segundo momento, se possível, comprar partes maiores com descontos substanciais para vender.

Ainda de acordo com a Forbes, essas 'três grandes' ganharam posições nesses startups na casa dos US$ 3 bilhões. A tendência é esse capital atingir a ionosfera quando o Spotify vingar prá valer: basta lembrar que os grandes artistas estão ainda em processo de migração para as páginas de streaming. é uma questão de tempo para que, em alguns anos, tudo, ou praticamente tudo possa ser encontrado nessas ferramentas virtuais. Ou seja, demorou, mas o Império contra atacou.

Quando isso acontecer, os grandes tubarões irão finalmente comemorar. A nova lógica do lucro digital, somado à tecnologia (agora aliada à facilidade do acesso aos arquivos de áudio, através de dispositivos móveis, algo impensado no começo da web 2.0, lá por 2006, quando menos gente tinha acesso ao digital e todos ainda dependiam de desktops para ouvir e baixar música, os selos deram o passo adiante e pegaram o internauta em cheio. Hoje, quase uma década depois, algo dinossáurico como o SOPA não faz sentido algum. O download em mp3 pode correr á solta, mas a promessa de lucro somada ao fato de que elas hoje detém o mesmo conteúdo porém disponibilizado de uma forma mais atraente para um usuário/comprador que considera o mp3 quase que como coisa do passado. e as páginas de uploads cada vez mais se reciclam, agora para os mais diversos usos.

E os artistas? A pergunta é: quem ganha nesse ínterim? Certo é que os artistas/compositores ganham pouco ou nada com esse movimento mercadológico com relação ao que acontecia antes da derrocada. Por trás da recusa de gente como Neil Young em proibir sua música no streaming, mais além do que ele alegara (má qualidade de áudio, o que, em parte, ele está soterradíssimo de razão), o problema reside no fato de que os artistas extraem um valor mínimo de royalties desses novos canais, e obtém pouco ou nenhum controle. Como disse John Oates, da dupla Halll & Oates: “Essa é a história do ramo musical”.



* Folksonomia é um termo conhecido em Informação na web, porém pouco difundido. Refere-se à taxonomização de metadados executado colaborativamente pelos usuários da Internet, através de ferramentas de buscas de sites.

** Recomendo o livro A Cauda Longa, de Chris Anderson, que fala sobre os fluxos e refluxos da economia virtual.

*** Lei norte-americana de 2012, que autorizaria o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e os detentores de direitos autorais a obter ordens judiciais contra sites que estejam facilitando ou infringindo os direitos de autor ou cometendo outros delitos e estejam fora da jurisdição estadunidense.

Friday, October 21, 2016

Baladas Sangrentas


Capa do No One Cares

O In Wee Small Hours, do Frank Sinatra, sempre foi o meu disco de cabeceira. Prá mim, o maior de todos. Na verdade, nem sempre foi assim. Mas, a partir de quando eu comecei a ouvir o disco como um filme, eu pensei no álbum como se ele contasse uma história. Mais do que isso: ele é o primeiro capítulo dessa história — contada em torch songs — e que compreende outros cinco discos, culminando no Point of No Return (1962).

Quando retomou sua carreira, após ganhar o Oscar, Sinatra assinou com a Capitol, selo que estava formando um cast de cantores 'adultos'. Ou seja, para um artista maduro como ele, as possibilidades eram infinitas. Foi lá que ele concebeu a ideia de fazer albuns concetuais. Quer dizer, ao invés de ser uma rescolta de canções sem um tema definido, ele decidiu enfeixar os temas de de um long-play, o novo formato de audição fonográfica.

Depois de dois trabalhos em dez polegadas, Songs for Young Lovers (53) e Swing Easy (54), ele lança o In Wee Small Hours (55), já em formato vinil e em dois discos de 10 polegadas. O disco marcou época e atravessou gerações, chegando como o primeiro do livro 1001 Albuns You Must Hear Before You Die. Seus trabalhos mais comerciais ficariam reservados aos 78 rotações. Em compensação, Sinatra teria liberdade artística de ousar no formato vinil.

Dessa forma, de 53 até 62, ele lençaria uma série de discos 'programáticos, ora baseados em swing,(Come Dance With Me, com uma orquesta de 57 músicos, comandada por Billy May) ora em baladas (Close to You, com um formato mais camerístico). Nesse meio tempo, ele elaboraria um ciclo destinado apenas à fossa.

O que ele tem de tão especial assim? É um disco de fossa que tem a mística reforçada porque críticos em geral relacionam o trabalho com os rumos da carreira sentimental de Sinatra. Para a maioria deles — e de seus muitos fãs, as canções são endereçadas à uma pessoa em especial: Ava Gardner.

Sinatra foi casado com ela entre 51 e 53 e divorciaram-se em 57. Como se sabe, foi um romance cheio de arrufos. O casal, porém, havia anunciado a separação em 53 e o processo de divórcio começou no ano seguinte. Ele não a esqueceria jamais, e ainda ficariam amigos pelo resto da vida.

Note-se que, pela seleção de canções do 'In Wee', o desenlace ainda parece forte na interpretação dos temas. Consta que ele teria chorado após o master de "When Your Lover Has Gone". O tempo todo, parece que ele fala de um amor precocemente perdido, quase que a um passo de uma desesperada reconciliação ("I See Your Face Before Me"). Ao mesmo tempo, quando embalde racionaliza ("I'll Never Be the Same), ele cai num sentimento de prostração sem precedentes ("This Love of Mine").

O segundo disco do ciclo é o Close to You (57) e segue a mesma lenga do anterior. Porém, o arranjador, Gordon Jenkins, opta por um octeto de cordas (com eventualmente algum instrumento de sopro), dando um tom mais soturno ao álbum, que culmina com "The End of a Love Affair" (depois gravado pela Lady day no Lady In Satin).

Where Are You? é o terceiro vinil do ciclo de fossa ditch do Sinatra. Mais conhecido que o anterior, é cheio de regravações dos tempos da Columbia. Porém, todas melhores: "Laura" e "The Night We Called It a Day". Aqui ele apresenta "I'm a Fool to Want You" e "Autumn Leaves". Os arranjos, por sua vez, fazem com que os músicos basicamente acompanham Frank que, por sua vez, quase declama. Essa fase, por sinal, coincide com o fim do processo de divórcio com Ava, o que explica o paroxismo da tristeza.

Contudo, o paroxismo dos paroxismos de Sinatra é Sings for Only the Lonely. Este, a despeito de seguir a mesma fórmula, leva-a às trevas. Aqui, ele volta a trabalhar com Riddle (com a produção a cargo do seu spalla, Felix Slatkin). Nelson, que havia perdido esposa e filha recentemente, deu o tom trevoso ao disco. Frank parece que saiu do tribunal após a consumação do divórcio direto para os microfones do estúdio da Capitol em Hollywood. Um disco terrível de se ouvir, mas que vai ficando melhor depois da 600º audição.

Only The Lonely tem os seus clássicos que, se não eram antes de Sinatra, viraram com ele: "Angel Eyes", "What's New?", "Blues in the Night", "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" e, é claro, "One for My Baby (and One More for the Road)", aliás, música do "chefe", Johnny Mercer. Talvez seja o melhor de todos os álbuns do gênero "torch" mas, não é tão marcante quanto o In Wee, que tem um quê de recém traumático; o "Only" soa mais como o fundo do poço em pessoa.

O quinto elepê de fossa é o No One Cares, aquele lá de cima, onde ele aparece na capa de gabardine, olhando para o fundo do copo de uísque e alheio ao burburinho ao redor dele. Esse é quase um volume 2 (contudo com Jenkins na produção, ao invés de Riddle) do anterior, porém com um tema cardinal, "When No One Cares", do Sammy Cahn, que é seguido por mais um punhado de clássicos, onde ele parece, depois do fundo do poço, passar por um processo de elaboração da perda, com músicas como "Just Friends" ou "Here's That Rainy Day".

o sexto é último é Point of No Return (62). O título se explica: é o derradeiro trabalho de Frank com a Capitol. desde o ano anterior, ele já havia fundado o seu próprio selo, a Reprise, e já tinha alguns discos por lá. Mesmo aparentemente deslocado dos anteriores, parece ser a perfeita coda para um dos ciclos mais interessantes em toda a história da indústria fonográfica.

Já passados alguns anos do fim, Sinatra opta por canções que, depois de todo o desalento e de todo o sentimento de perda, ele parece ter transformado aquele silencioso desespero dos álbuns anteriores numa dolorosa e comovente nostalgia. nessa vibração, aqui ele interpreta "I'll Remember April", "I'll See You Again", "These Foolish Things" e termina como se deixando um recado, com as músicas que fecham o lado B: "I'll Be Seeing You" e provavelmente a mais bela versão de "Memories of You". Aliás, a forma como ele a canta, especialmente nos versos finais, parecem um último suspiro de tudo o que parece um longo e langoroso discurso, quase uma terapia, e que começou lá atrás, no In Wee Small Hours.
"Pont Of No Return" também é o ponto final em todo esse processo — de tal arte que, depois dali, ele não mais repetiria a fórmula. No máximo com All Alone e o Sinatra & Strings (ambos da fase Reprise, como o Watertown, mas já em outro contexto, já que ali ele entra apenas com a voz) mas que, antes de tudo, são discos de baladas, não de torch songs. Isso reforça a tese deste blogueiro, a de que o ciclo se encerra justamente ali.

O discografia de Frank Sinatra é tão variada e diversa. Porém, se tirarmos todos os álbuns como quem tira o triângulo do monte de bolas de bilhar, esse ciclo de discos de fossa compreendem um ciclo perfeito (ainda a minha tese), com começo, meio e fim. A tempestade passou, e agora ele pode partir para sempre.





Wednesday, October 19, 2016

A Comédia Humana de Dylan


O compositor

Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura e, desde quinta, eu tenho ouvido e lido muita coisa a respeito contra e a favor. Porém, acho que nem quem critica quanto quem corrobora a opinião da Academia Sueca deve ter entendido o motivo pelo qual o cantor-compositor americano foi escolhido como o premiado deste ano.

A explicação da Academia: Dylan deu “novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Mesmo a despeito dessa afirmativa, muitos têm dito que isso "abriu precedentes", etc. Outros vão mais além: acham que, daqui a pouco, qualquer youtuber ou blogueiro pode acabar concorrendo para o Nobel.

É claro que há muito exagero nessa polêmica. Até porque a maioria desses críticos não conhece Dylan. Além do mais, primeiro: a Academia estava para conceder o prêmio há quase duas décadas; segundo: a premiação se dá não por um disco, mas pelo conjunto da obra.

Creio que a única forma de entender os porquês da escolha residem aí. O agraciado não desejou escrever uma discografia que abarcasse toda a tradição da música folclórica americana. isso foi uma coisa que aconteceu. Ele não foi como um Balzac, que decidiu, a altos brados, dizer que iria escrever a crônica da burguesia francesa na sua Comédia Humana.

Dylan era uma jovem cria do renascimento do folk porém num ambiente boêmio e urbano, em Nova Iorque. Ao mesmo tempo, acabou se relacionando com uma geração que lutava pelos Direitos Civis e que tinha em Newport, uma meca esquerdista, a sua pátria. Como todos aqueles jovens, Bob ouviu de cabo a rabo o The Anthology of American Folk Music, caixa concebida pelo musicólogo Harry Smith. A partir de tudo o que ele ouviu quando jovem, Dylan começou a criar a sua obra.

Porém, ao invés de simplesmente interpretar aquelas músicas, como muitos fizeram (como Joan Baez), ele resolveu usar aquele material como uma espécie de ponto de partida para uma obra singular.

É como na história da arte: existem centenas de pinturas da madona, e cada artista, ao longo do tempo, recriou, através de engenho arte e de sua ideologia, a sua nova versão do mesmo tema. Nesse sentido, Dylan tornou-se um esteta daquele espólio cultural; além de um cantor-compositor, ele repassou todas aquelas músicas numa perspectiva autoral e, ainda assim, e mais, dialogando com a música do seu tempo — além do folk, o blues, o rock, originando daí a sua respectiva natural fusão.

Sendo mais específico: boa parte da discografia de Bob Dylan é uma paráfrase de uma tradição e de músicas que já existiam. Contudo, ele foi o primeiro a incorporar essa música e dar-lhe cara e nome.

Dylan é original em parte. Se o é, o é sendo um compilador esperto e inteligente. Porém, quando transforma esses motivos em material autoral, ele mistura visões artísticas, citações literárias, paráfrases, incidentes linguísticos, mistura Chuck Berry com Allen Ginsberg (Subterranean Homesick Blues), reinventa músicas tradicionais (Maggie's farm, Blowin' in the Wind, Ballad of Hollis Brown). Elmore James (Pledging my Time). Como Bach nas suas cantatas, ele recriou uma música preexistente mas, de forma obstinada, ao invés de copiar, resolveu colocar em tudo o seu toque pessoal.

Esse processo criativo Dylan usou em praticamente todos os seus discos, em 50 anos de carreira, e essa intertextualidade em sua paleta é algo que ainda está em processo de ser decifrado. O próprio Garth Hudson, quando ensaiava com Bob em Woodstock, não sabia bem ao certo o que era cover e o que era música dele.

Poderia fazer uma comparação com Sinatra. Este, porém, não poderia ganhar um Nobel, é claro, já que era, antes de tudo, um intérprete. Mas Frank foi o artista que pegou todas as grandes canções do Great American Songbook e tornou-se o seu cantor seminal. Sinatra colocou as canções do Tim Pan Alley no topo do mundo*. Da mesma forma, porém sendo menos popular e mais autoral, Dylan pegou a música americana folclórica e atualizou-a, dando-lhe a devida importância e, mesmo não sendo um grande cantor, deu-lhes uma voz. A grande música americana tem essa dívida respectivamente com Sinatra e com Dylan: Sinatra por ser o intérprete do grande sonho americano; Dylan por ser a voz telúrica, maternal e mercurial da música norte-americana do século XX.

Isso não é pouca coisa. e talvez seja muito para apenas um Nobel de Literatura.




* E curioso e ligeiramente sintomático que, nos últimos discos, Dylan tenha optado justamente por virar intérprete de canções do Tim Pan Alley, uma geração que, de certa forma, ele ajudou a liquidar...



Saturday, October 01, 2016

A Cidade do Chope


O Chalé

Tem uma propaganda da Guaíba sobre o Chalé da Praça XV que anuncia buffet de feijoada ao som da banda da Lapa, com o “melhor do chorinho e do samba de raiz”.
Parece ser uma boa pedida para um sábado. Porém, vivemos um tempo não só de gentrificação de espaços públicos históricos quanto de anacronismos culturais.

Não que eu queira aqui estar bancando o conservador ou o defensor do patrimônio público. Não. Mas é interessante observar como os usos e costumes — se não descaracterizam o local, criam um outro tipo de ritual.
Em alguns casos, esses lugares resistem: é o caso do Mercado Público, que fica ao lado do Chalé, e é o seu irmão mais velho: data ainda do Segundo Reinado, quando a Praça quinze chamava-se Conde D’Eu.

Hoje nós vivemos a era dos supermercados. Agora imagine o leitor como era adquirir mantimentos há um século. No tempo de nossas avós, as casas não tinham geladeiras e os mercadinhos rareavam. Logo, o Mercado era a Meca dos secos e molhados.

Até meados do século passado, o Mercadão era literalmente o mercado público. O advento das grandes redes e os mercados de bairro quase mataram ele. Nos anos 80, naquela onda de demolições, ele quase virou estacionamento.

Hoje nós ainda podemos contar com o Marcado. Contudo, com o tempo, a gentrificação foi o preço da sua sobrevivência. Para não morrer, o local teve que dançar conforme a música: de Meca dos secos e molhados, o prédio virou um ponto turístico e um ambiente de culto à memória e às tradições da vida urbana da cidade. Quem não gosta de levar um visitante a provar um sorvete na Banca 40?

Antes que procurem no dicionário: “gentrificação” é, via de regra, a gourmetização do espeço público. No caso do Mercado, até os anos 80, ou seja, até a reforma e a sua reinauguração, em 1997, era um ponto de comida barata, produtos de preço de ocasião, e antro de pés sujos. Com a reforma, o espaço se modernizou.

Um exemplo são os tradicionais restaurantes dali. Há meio século, era o ponto onde o sem-culotes que habitava nosso pequeno burgo açoriano bebia a sua primeira e santa cerveja da tarde.

Hoje, ao correr a vista no cardápio, é difícil encarar. Virou arapuca para turista. Ao mesmo tempo, com a mudança do caráter dos estabelecimentos e o aumento da oferta de serviços de mesma monta, o Mercado tem um outro público. A rigor, hoje, aqueles que teimosamente ainda frequentam o centro de Porto Alegre.

Restaurantes extintos dali, como o Treviso, eram locais que não fechavam nunca — e possuíam uma frequência considerável durante as madrugadas, principalmente porque o comércio e as redações de jornais ficavam todas no Centro. Ou seja, o Mercado era never sleeps.
Hoje, ele dorme com as corujas.

Falei tudo isso para chegar no Chalé. Por exemplo, para o tipo de cardápio que ele hoje vocifera aos sábados (feijoada e samba) é algo totalmente diferente do que era ou foi o estabelecimento, quando surgiu, no começo do Século XX.

Reitero: não quero ser o chato da história. Mas, para ver como os usos e costumes mudam com o tempo, o Chalé surgiu num tempo em que a colônia alemã (ou teutônica, como diria o Nilo Ruschel) na capital era gigantesca, e tomava conta de agremiações esportivas, lojas, cervejarias (até a época da Guerra, a Ritter, a Sassen e a Bopp, depois comprada pela Continental e depois a Brahma, mas essa é também outra história), o diabo.

Aliás, como o Chalé, a maior parte dos chopes de Porto Alegre nasceram de raiz germânica: o Gambrinus, o Zeppelin, o Zither Franz, o Lilliput, o Bretstubel, o Rhinengold (nome wagneriano), o Berger e inclusive o antológico dona Maria, que ficava na José Montaury, ao lado da Globo (outro antigo ponto-de-encontro da boemia jornalística de Porto Alegre, mas isto é uma outra história), pertencia a Maria Hopf, que começara trabalhando no citado Gambrinus.

Havia outros bares de raiz teutônica: o Hubertus, na Otávio Rocha, a Confeitaria Jahn, a Coroa, da Frayu Krantz, ao lado da Galeria Chaves e a antiga Woltmann que, como a Colombo, funcionava inclusive como um café-cantante.

O Chalé, segundo o Ruschel, foi construído em estilo bávaro, e o ferro foi todo importado da Alemanha. Naquelas priscas eras, não se trabalhava com esse material por aqui, tudo vinha de lá. O engenheiro ou arquiteto mandava o projeto e eles mandavam os insumos.
Naturalmente que esses chopes, e inclusive o Chalé, fosse um local onde toda a comunidade alemã da cidade se encontrassem. E, para acentuar a cor local (como diz Ruschel), o quiosque tinha (e prá quem for lá ainda hoje, está lá) um pequeno palco, quase no teto, onde ficava um pequeno conjunto regional, que se empoleirava e tocava dobrados ou até a carga da Cavalaria Ligeira, do Von Suppé.

Ou então, tocava ali um trio clássico, com violino, piano e violoncelo, e tocavam desde Chopin até Beethoven. Ou então, como diz Ruschel, o regional puxava algumas marchinhas marciais, e a estudantada cantava junto, mesmo brasileiros — entre eles, Paulo de Gouvêa, Teodomiro Tostes, Athos Damasceno e muitos outros, que se tornariam intelectuais do começo da Revista do Globo e da imprensa do começo do século passado.

Ruschel conta do espanto do ensaísta R. Magalhães Júnior ao presenciar, aqui em Porto Alegre, no Hubertus ou no Chalé, o desfile de cantores e cantoras entoando lieder de Schubert ou valsas do Strauss filho nos germânicos saraus noturnos de então: “meu Deus, isso aqui não é o Brasil, eu estou em Viena ou no Prater”.

Resumindo: o Chalé pertence a uma época de ascendência da comunidade germânica na cidade, época que morreu depois da I Guerra e foi varrida depois da Segunda. Aliás, a biografia do arquiteto Theo Wiederspahn fala muito da injustiça que ele (e muitos outros) sofreu por ser de origem teutônica a partir de então (mas isso também é assunto para um próximo post). época essa cujo mais simbólico atavismo é, justamente, o famoso quiosque que existe ali até hoje — e que parece estar tão longe de suas origens culturais. Pelo menos o chope ainda resiste!