Thursday, August 25, 2016

Vidas Paralelas


Jânio Quadros


Dia 25 é o Dia do Soldado é é também, para quem ainda se lembra, o fatídico dia da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961. Sempre eu passo por esta data e recordo dessa efeméride, me vem à mente um capítulo da autobiografia do Samuel Wainer* (que, aliás, recomendo tanto para quem faz jornalismo quanto para quem não faz jornalismo). Nunca esqueci deste livro porque meu professor de História no 2º grau, na antiga Escola Mauá (de quando ela ficava na Dr. Flores, em cima do prédio da Hudersfield, lá no começo dos anos 90. No curso, ele nos passou o xerox do capítulo 31 (mais tarde, eu leria o 32 e, mais tarde, o livro inteiro).

Os dois episódios narrados aqui — um com Jânio e o outro com o seu vice, João Goulart, mais do que subsídios para explicar a crise de 1961, servem um pouco para mostrar um retrato sem retoques da personalidade de ambos. Os dois personagens falam por si. O resto é só relacionar com os fatos.


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No começo do capítulo 31, Wainer discorre sobre como os empreiteiros começaram a tomar conta do Brasil, a partir da construção de Brasília e da relação de Juscelino Kubistchek com Marco Paulo Rabello. Em seguida, ele conta que, nas eleições de 1960, como seria natural, a Última Hora iria investir agressivamente contra o candidato da UDN. Porém, como Samuel salienta que Lott era um partido fraco, e que perdia-se em gafes — enfim, era um grande nome, porém potencialmente ruim de votos.

Quando Jânio venceu, Wainer viu-se obrigado a colocar trincheiras diante de si; afinal, Jânio iria certamente pôr Carlos Lacerda (que, por sua vez, havia sido eleito para o novíssimo Estado da Guanabara) como seu factorum. O efeito, contudo, foi nulo. Durante aqueles sete meses para ele seriam de bonança. De acordo com o diretor da Última Hora, Quadros tinha um certo 'fascínio' por ele, dos tempos em que fora prefeito de São Paulo.

Certo dia, Samuel recebeu uma ligação do secretário particular de Jânio, José Aparecido de Oliveira. Ele queria uma reunião com o dono da Última Hora, a fim de discutir a questão cambial no Brasil. O Presidente queria fazer restrições à importação de vários insumos, entre eles, o papel de jornal e, por fim, queria a opinião dele a respeito do assunto.

Pegou o primeiro voo para Brasília. Foi recebido pelo motorista oficial de Jânio, que o conduziu até a biblioteca do Palácio. Quando entrou na sala, viu o recinto vazio e uma garrafa de vinho do Porto, quase que pela metade. Wainer achou estranho: sabia que Quadros era um copioso bebedor de uísque.

Eis que, de repente, irrompe o presidente,. de slacks e robe de chambre.

— Que bom que vieste, Wainer. Estás fadado a apoiar-me — falou.

Depois de comentar sobre o apoio da Última Hora à candidatura Lott, reclamar do alto custo das importações brasileiras, entre goles e mais goles do vinho do Porto — que, por sinal, não ofereceu ao convidado ** — Jânio agarrou o braço de Samuel e disse:

— Vamos combater com essa plutocracia!

Wainer entendia o recado em parte: o presidente reclamava e acusava donos de jornais de, na opinião dele, torravam milhões de dólares em papel importado. "Ele achava que meu apoio ao governo era essencial, tanto pela influência [do jornal] quanto pelo fato de que eu sempre lhe fizera oposição", diz Samuel, em suas memórias. "Ponderei que, se aderisse incondicionalmente ao governo, meu jornal perderia peso político. Parecia mais sensato permanecer na oposição e apoiar o governo sempre que adotasse medidas corretas".

Jânio pareceu estar satisfeito com a tese. De repente — segundo Wainer — o presidente bateu na testa e, com um olhar enlouquecido, disse que contava com três forças:

— É a Santa Trindade — bradou. — Conto com a Santa Trindade para me apoiar nessa luta pela salvação da pátria!

Sem entender o rumo da conversa, o jornalista indagou:

— E com quantos generais o senhor conta?

— Não conheço sequer o nome do Chefe da Casa Militar — confessou. — Se um prelado com mandato parlamentar entra aqui como prelado, ajoelho-me e beijo-lhe o anel. Mas se me vem como político, eu o expulso porta afora — disse.

Na saída, Jânio voltou a saudar o virtual apoio da Última Hora ao seu governo e prometeu um novo convite — que não aconteceu.


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Com a renúncia (Já no capítulo 32), Wainer preferiu entrincheirar-se em São Paulo, novamente temendo qualquer represália de Lacerda. Como se sabe, quando Quadros renunciou, em 25 de agosto daquele ano, João Goulart estava na China e, enquanto fazia várias escalas em sua viagem de retorno, tentava aos poucos tomar parte da situação. Quando chegou em Paris, Goulart ligou para Samuel:

— Tu achas que devo voltar? — indagou.

Conhecendo Jango, ele preferiu despistar. Deu de ombros e respondeu:

— Não estou em condições de responder. Aliás, não sei nem o que é que vai acontecer comigo.

— Mas como? — insistiu o vice. — Então tu achas que eu não devo voltar?

O jornalista bateu na mesma tecla. Não sabia nem qual seria o seu futuro dali por diante.

— Então...tu és contra a minha volta?

— Não é nada disso — protestou Wainer. — Acho que devemos interromper essa conversa por aqui. Só que, antes, eu gostaria de lembrar ao senhor que um líder decide por si, a até mesmo contra os seus próprios impulsos, muitas vezes até contra os seus aliados. Você é o líder. Portanto, decida.

Mais adiante, Wainer revelou emocionar-se com a decisão (ou "decisão") de Jango. Com Goulart no governo, Getúlio ainda permanecia no poder. Contudo, ao traçar um paralelo entre os dois presidentes, ele esboçou uma imagem curiosa do herdeiro político do PTB: "João Goulart era um típico moço da fronteira, que adorava cabarés e bailarinas, que divertia-se com boêmios e prostitutas, que passvaa noites inteiras conversando em mesas de bares. Não tinha prazer algum em conviver com grã-finos, detestava enfiar-se numa casaca para comparecer a alguma solenidade (...) como líder populista, jango exibia uma evidente inapetência para certas exigências do poder. Getúlio sempre demonstrou enorme prazer pelo fato de ser o número um da República; Jango, não".

Certa feita, Samuel conta que foi procurar Goulart em seu apartamento, no edifício Chopin, ao lado do Copacabana Palace. encontrou-o rodeado de capangas e bebendo uísque, todos com os pés "confortavelmente colocados sobre mesas".

— Quero cumprimentá-lo pelo dia de hoje.

Ao saber que era 6 de janeiro, sorriu:

— Ah, o aniversário do João Vicente!

Wainer confessou que não sabia que era aniversário do filho de Jango. O presidente então coçou a cabeça. Pensou:

— Hoje é Dia de Reis!

Samuel explicou que, como judeu, não conhecia muito bem o calendário cristão.

— Ué, então o que temos para comemorar hoje, afinal?

— Presidente, hoje faz um ano do Plebiscito do presidencialismo! Não é possível que você tenha esquecido dessa data em apenas um ano!

— Pois é, me esqueci — respondeu Goulart.

Meses depois desse encontro, Wainer assistiria a mais uma crise política, está alijando o herdeiro político de Vargas definitivamente do poder. Para o jornalista, não havia muito a lamentar: "eu sabia que a perspectiva de ser deposto nunca afligira Goulart da mesma forma que inquietara, por exemplo, Getúlio [...]. Não seria preciso, portanto, chorar por ele".


* Samuel Wainer, Minha Razão de Viver. Editora Record, 1987. pp 224-236.

** No Depoimento (que inspirou o Minha Razão de Viver), Carlos Lacerda, por sua vez, conta o último encontro dele com Jânio, na véspera da renúncia. Essa história eu conto da próxima vez. Mas para quem quiser ler, é só procurar o livro.

Tuesday, August 23, 2016

Longe Demais das Capitais


Varig Experience no Boulevard Laçador


No fim dos anos 20, aqui, já existiam linhas férreas que ligavam Porto Alegre até Bagé, Uruguaiana e Passo Fundo. A navegação já era eminente a partir do porto de Rio Grande. Contudo, apesar de todo aquele surto tecnológico, nosso burgo açoriano parecia estar isolado, ou melhor, ancorado às margens do estuário do Guaíba, ou seja, longe demais das capitais.

Na década de 10, o governo Carlos Barbosa já havia dado um grande passo, com a construção da primeira etapa do hoje cognominado Cais Mauá. A obra, levada a cabo pela empresa de Rudolph Ahrons* No entanto, em magnitude, esse caminho inicial estava abaixo do que a multinacional Farquar concebera para o porto de Rio Grande. Esta multinacional, até o fim da I Guerra, teria toda a operação em suas mãos.

Já (novamente) sob o comando de Borges de Medeiros, apenas em 1917 uma lei federal autorizaria o presidente do Estado a entrar em acordo com a antiga concessionária. No ano seguinte, forma-se o Convênio de Encampação, que franqueou ao governo daqui o comando de todos os portos. A partir dali, já era possível vislumbrar um caminho para o mar: agora Porto Alegre podia finalmente receber as grandes empresas de transporte marítimo, como o Lóide Brasileiro, por exemplo. Hoje é difícil imaginar, mas, embora o primeiro passo, para uma cidade isolada — e ainda por cima capital — era como sair da caverna.

Mesmo assim, os caminhos eram poucos. Ainda não se pensava na concretização de uma ponte que ligasse Porto Alegre à Guaíba — e consequentemente ao resto do cone sul. Mesmo que existissem as barcas de navegação costeira (os "vapores", como dizia minha avó materna), tudo era muito lento, quase uma aventura. Para pegar um Ita até o sul, via lagoa dos Patos, então, o turista acabava virando um Américo Vespúcio, perdido em horas e horas de solidão fluvial.

Não é possível dizer que nosso burgo fosse a capital mais isolada de todas. Mas é notável como, por muito tempo, a cidade foi escondida por tantas barreiras naturais — problema este catalizado pela ainda incipiente malha de transportes, impedindo a sua efetiva ligação com o resto do planeta.

Talvez seja por causa desse isolamento geográfico que deu-se um wit na cabeça de parte da elite porto-alegrense. Oito anos depois da "libertação" de Rio Grande, ocorreu aqui um espetáculo aéreo com pilotos veteranos da I Guerra. Foi uma efeméride: centenas de pessoas jogavam chapéus e saudavam aqueles ases. Um daqueles pilotos, Otto Ernesto Mayer, conseguiu convencer o intendente da capital, Alberto Bins — um capitão de indústria milionário, talvez o maior magnata de seu tempo por estas paragens — a conceber uma linha aérea a partir do nosso isoladíssimo burgo.

Depois de vários encontros entre Mayer e Bins, que também era o presidente da Associação Comercial de Porto Alegre, o tal projeto maluco começa a tomar forma. Juntos, eles granjeiam centenas de assinaturas de outros visionários que, com efeito, irão acompanhá-los na formação de uma sociedade anônima sem precedentes. Até então, ninguém havia concebido uma companhia aérea nesses moldes.

Com o capital nas mãos, eles compraram um hidroavião bimotor alemão, com capacidade para nove passageiros. Na Capital Federal, ele seria batizado de "Atlântico", que foi inclusive o primeiro registro do Livro Aeronáutico Brasileiro. Aqui, até o insuspeito presidente Borges de Medeiros (e seus asseclas) foram dar uma volta no "Atlântico". Segundo escreveu um cronista, na época, o "Governo sul-riograndense foi pelos ares".

Em 7 de maio de 1927, então, foi fundada a Varig — eterna pioneira ** que, depois de tantos anos de operação e de seu fim, é uma marca imortal, sempre lembrada por quem viveu aqueles anos. De longe, é difícil imaginar outro caso de marca com um perfil com tanta vocação para a eternidade como ela. Tanto é que basta ver o enorme fluxo de pessoas que, em todos os fins de semana, vão ver (ou rever) o Douglinhas que está à exposição lá no Boulevard Laçador, perto do Aeroporto.


O "Atlântico"

Todo o aparato, que inclui até uma equipe vintage de comissários de bordo e aeromoças, provocam um refluxo ao passado e, ao mesmo tempo, ao presente. diante do cena, a visão do intrépido douglinhas — que parece pronto para decolar — cala fundo. Perplexos, todos fazem sempre as mesmas indagações: "Por que a Varig morreu?" "Por que toda aquela era de ouro da aviação nacional morreu?" "e se a Varig ainda existisse?".

Enfim, o que é admirável é que, além de ter feito história no Brasil e no mundo, e de ter sido um dos maiores empreendimentos comerciais brasileiros em todos os tempos, a Varig foi uma página importante na própria formação do nosso estado — justamente no intento de ligar o isolado burgo açoriano de Porto Alegre com o país e o com mundo. A verdade é que, a partir daquele longínquo 7 de maio de 1927, o Rio Grande do Sul passou a aparecer no mapa.


* Ahrons foi responsável, por sinal, pela quase totalidade de obras públicas de vulto na capital naquele começo de século), tendo como testa de ferro o arquiteto alemão Theodor Wiederspahn. Entre elas, podemos citar o prédio do MARGS, dos Correios (hoje o Memorial do Rio Grande do Sul), além de empreendimentos particulares, como a Cervejaria Brahma e o Edifício Ely (Tumelero).

** sobre isso, confira o belíssimo livro do Gianfranco Beting sobre a Varig, lançado pela EDIPUCRS e ainda em catálogo.



Monday, August 15, 2016

Habitat Natural


Capa do disco

Apesar de parecer apenas mais um caça-níquel, o CD duplo Way Down In The Jungle Room, de Elvis Presley, revela mais do que boa parte da sua discografia esconde.

Como se sabe, o cantor norte-americano nunca se notabilizou por sr um artista de álbum, mesmo que tenha lançado vários discos memoráveis, como o Elvis Is Back e o Back to Memphis. Quer dizer, diferente da maioria dos roqueiros daquele tempo, o rei não tinha interesse em gravar o disco — ainda mais quando sua rotina com a gravadora e empresário solapava aos poucos toda a sua ambição como artista.

Elvis era um cantor memorável, e ainda o é, o maior de todos. Porém, por conta dessas relações, sua produção ficou à mercê do seu próprio desinteresse pelo material disponível. Nos anos 70, quando finalmente passou a ter relativa autonomia em suas produções, ele acabava limitando-se à realizar grandes sessões de gravação. Nesses momentos, ele recebia toneladas de acetatos e, de acordo com suas proposições, ia enchendo as latas com canções suficientes para discos futuros.

Somado isso à pressão da RCA para que seus compactos-simples e discos tivessem sempre que pontear as paradas de sucesso — isso num momento em que o hard rock e o progressivo imperavam nas estações de rádio e nas revistas, essas coisas fizeram com que Presley se fechasse em sua bolha, junto com o produtor Felton Jarvis, para o acabamento final dos álbuns que saíam pelos anos 70 afora. O trabalho era sempre contestado pela gravadora que, além de exigir um número 1 a cada lançamento, ainda impunha o regime de dois discos por ano — algo inimaginável hoje em dia, mas que era muito comum, com qualquer ídolo do rock, naquele tempo.

O mais triste olhando em retrospectiva é que Elvis, mesmo aos trancos e barrancos, produzia música de alta qualidade. Seu estilo, mais downtempo e cada vez mais cifrado pelo country, era severamente contestado pela RCA, que várias vezes tentou intervir em seu trabalho. Os executivos tentavam então demitir Jarvis que, no fim das contas, era o seu curador e o único produtor que ele confiava. Como Elvis era a galinha dos ovos de ouro, sua palavra pesava no fim e ele acabava vencendo o cabo de guerra.

Mesmo assim, com cada vez menos vontade de produzir. Se formos ver bem, o papel de Felton esses últimos anos, dado o grau de intimidade em ambos, era conseguir tirar do Rei algo que ele não queria mais dar, que era o seu talento.

Muitas vezes, Jarvis fazia uma maquiagem de defunto para as pós-produções dos discos de Elvis. Ao mesmo tempo, elepês com relançamentos de coisas do tempo da Sun acabavam vendendo mais do que o novo material. Era possível que, mareados numa perspectiva meramente mercadológica, a direção artística da RCA não conseguisse mais entender que seu cantor já tinha o seu público e que, mesmo vendendo bem, não iria mais superar algo como "Suspicious Minds" quase dez anos depois, quando a indústria e o gosto musical havia mudado tanto, e dado tantas voltas.

É difícil entender a "decadência" de um artista sem entender tais circunstâncias — ainda mais se vermos que hoje, qualquer coisa que leve o seu nome, como esse mais novo lançamento, Way Down In The Jungle Room, supere qualquer expectativa negativa logo de largada. Fácil é não entender até que ponto essa "decadência" não era uma entrega total de pontos de um músico frustrado e encoleirado por contratos de trabalho, derramando o resto de sua virtude num trabalho que seria francamente subestimado.

Em Vida na Música", Ernst Jorgesen mostra bem como foram as sessões de Presley com relação aos lançamentos e todo o drama que se seguia a cada pós-produção. No fim, cada novo trabalho do Rei era praticamente uma coletânea de músicas inéditas e, além disso, mais uma rescolta de músicas do que uma produção bem enfeixada. Aliás, era justamente esse o trabalho de Felton. Dar a impressão que aquela colcha de retalhos tinha algum sentido, que fosse um disco com começo, meio e fim.

Alguns desses bolachões dos anos 70, por exemplo, como o Separate Ways, que a rigor vale como disco de carreira, na verdade, é apenas um extended play com o compacto, lados A e B. O resto são sobras de material já conhecido dos fãs. Isso a RCA fazia às catadupas, como Lps da série Camden, como Almost In Love. Para os fãs, era OK, Contudo, com relação à evolução de Elvis como artista, era um passo rumo á lugar nenhum.

Por isso que, ao escutarmos o Way Down In The Jungle Room (como acontece com o lançamento anterior, no mesmo formato, com as sessões da Stax), podemos ouvir Presley dentro de um contexto possível, isto é: todos os temas pertencem à mesma matriz, ou seja, às mesmas sessões de gravação. Por isso que, se analisarmos Presley pelos discos dos 70 por fora, corremos o risco de não entendê-lo em seu habitat — aqui, no caso, com o perdão do trocadilho, a Jungle Room.

Esse era o recinto de Graceland que, depois de muita negociação, a RCA resolveu fincar um estúdio de gravações (que, por sinal, era uma sucata: o motor estava enguiçado e a unidade chegou à mansão dos Presley de guincho) para o Rei. Naquele ponto da vida, ele não tinha mais interesse em virar bicho grilo de estúdio e, depois das malfadadas sessões do Raised On Rock, as dependências da citada Stax estavam fora de cogitação.

Como se pode notar, o material do Way Down In The Jungle Room compreende os últimos trabalhos de Elvis, From Elvis Presley Boulevard, Memphis, Tennessee e o Moody Blues, sendo que, deste, originalmente não havia material suficiente para um long-play — o que obrigou Jarvis a espremer os arquivos e incluir material fresco ao vivo de 77, ainda que carregado de camadas e mais camadas de remixagens de emergência — esta uma das especialidades do falecido produtor do Rei.

enfim, a despeito de caça-níquel, Way Down In The Jungle Room revela mais do que boa parte da sua discografia esconde. Mostra que, dentro de um contexto singular, o desempenho dessa coleção de músicas (conhecidas) de Presley agora, pela primeira vez, juntas, mostra o que ele tinha a mostrar, em sua real dimensão — a real dimensão de um artista singular.


Em tempo: tem no Spotify.

Friday, August 12, 2016

Século do Samba *


Selo do disco



No princípio era a batucada. Como era comum no cotidiano dos morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, no começo do século passado, era comum o hábito informal de criar serões musicais, ou rodas de samba. Volta e meia, essas rodas ganhavam o Centro, ou ocorriam na

Festa da Penha ou no Centro, na rua da Alfândega.
No entanto, essas rodas eram duramente reprimidas pela polícia da época. As autoridades reprovavam o que entendiam tratar-se de “prática de candomblé”.

Como forma de resistência, eles encontravam-se, às escondidas, nos quintais das casas de baianas na Cidade Nova — em geral, mais abastadas, ou donas de casas de pensão.

Uma delas, Tia Ciata, entrou para a história, não só por manter uma das primitivas casas de samba, na antiga Visconde de Itaúna, nº 119, nos arredores da Praça Onze.

Mais do que isso: foi a partir desses e de tantos outros encontros informais de bambas e filhos de baianas ali que surgiria o gênero musical mais popular no Brasil: o samba.

Se a origem e a etimologia do samba até hoje são motivos de disputa entre pesquisadores e músicos, a história da gravação do primeiro tema do gênero é fonte de discussões intermináveis.

Contudo, se o ritmo foi gestado quase como anônimo basicamente e fruto de criação coletiva, o samba teve a sua certidão de nascimento com “Pelo Telefone”, em novembro de 1916.

Gravado por Baiano e a banda da Casa Edison, em 1916, “Pelo Telefone” não foi o primeiro samba gravado na história.

Antes de ser registrada na Biblioteca Nacional, naquele ano, por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (um dos frequentadores da casa da Tia Ciata) com o nome de "samba", pelo menos dois discos do estilo já haviam sido prensados: um é "Em Casa de Baiana" (1913) e "A Viola Está Magoada" (Baiano, 1914).

"Pelo Telefone", porém, trazia duas novidades: a primeira é que, ao contrário das gravações anteriores, era cantada (os registros anteriores eram instrumentais); a segunda é que, gravada para o Carnaval de 1917, a música se tornaria o sucesso dos festejos de Momo daquele ano na Capital Federal. Todos os clubes carnavalescos, cordões e sociedades cariocas pela primeira vez entoavam os mesmos versos: "o chefe da folia/pelo telefone/mandou me avisar/que com alegria não se questione para se brincar".

“Pelo Telefone foi a certidão de nascimento do samba”, diz Paulo Joeli Ramos, musicólogo e jornalista. Para ele, mesmo que de forma inconsciente ou meramente mercantil, o que também é um passo importante para a época, Donga foi pioneiro em registrar uma canção. “enquanto criação coletiva, o samba era anônimo. “Pelo Telefone” institui pela primeira vez a figura do compositor popular, já com um caráter eminentemente urbano, até pelo próprio nome”, salienta.

Fábio Gomes, também pesquisador e mantenedor do site Brasileirinho, entende que Donga tinha a intenção de registrá-la sem propriamente a intenção de roubo, já que o samba era, na verdade, uma variação sobre outro tema pernambucano, chamado “Roceiro”.
— O registro possivelmente se devesse à questão de direitos autorais (afinal, é para este fim que o registro na Biblioteca Nacional existe), mas não lembro de uma declaração específica do Donga a respeito.

A partir dali, como explica Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro A Canção no Tempo, o samba, já como um gênero urbano, iria fixar-se no imaginário social.

Além de Donga, outros compositores surgiriam, entre eles, J. B da Silva, o Sinhô, nos anos 20, e Noel Rosa, nos anos 30. Jairo e Zuza entendem que o caso de Noel, por sua vez, libertaria o samba de seu passado ligado ao velho maxixe e emprestaria maior densidade poética às letras, até então muito presas à temática das primitivas cantigas de roda.

Na década de 30, o samba ganharia o rádio e ganharia projeção nacional”, diz Ramos. Ele explica que o gênero iria se subdividir: enquanto ele dividia o reinado de Momo com a marcinha, toda a produção chamada de “meio-de-ano” passou a ser chamada de samba-canção”, revela.

Para Paulo Ramos, à medida que se massificava, o samba-canção foi se misturando com outros estilos, como o bolero, em favor de uma temática de dor-de-cotovelo. “enquanto era criticado por pesquisadores ‘nacionalistas’, como José Ramos Tinhorão, o samba se renovava com a Bossa Nova, nos anos 50” diz. Ele explica que, após um ostracismo de décadas, o estilo voltou à baila com iniciativas, como as edições da Bienal do Samba, já na época dos festivais da Record, nos anos 60, e o Clube do Samba, nos anos 70.
Protagonizado por João Nogueira, o Clube aproximou velhos expoentes, como Nelson Sargento, Cartola, Nelson Cavaquinho e outros para uma geração de intérpretes, como Alcione, Beth Carvalho e Roberto Ribeiro. “Ao mesmo tempo em que busca das raízes, o samba ganha novos ouvintes e, num sopro de renovação, chega novamente às paradas de sucesso, como “Todo Menino é um Rei”, em plena era da discoteca”, ressalta Ramos.

Os anos 70 foram cruciais para essa renascença do samba: enquanto velhos bambas vinham pela primeira vez ao disco, como Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Cartola e Nelson Sargento, de Ramos aparecia o Fundo de Quintal.
“Numa abordagem mais ‘camerística’, quase como que como influência do choro, com a criação de novos instrumentos de percussão, como o repique, eles amalgamavam a Velha Guarda numa visão, ao mesmo tempo antiga, moderna e atemporal do samba”, diz Paulo Ramos. De acordo com o pesquisador, esse modelo de conjunto espalhou-se e serve de modelo até hoje.


Os quatro minutos que mudaram tudo

“Pelo Telefone, samba carnavalesco, gravado por Baiano e Corpo de Coro, para a Casa Edison, Rio de Janeiro”. Quem ouvir o disco hoje, ficará confuso. A qualidade da gravação é precária — embora de enorme valor histórico. Ao mesmo tempo, perceberá que o tal samba mais parece uma toada amaxixada, sem nenhuma percussão.

A verdade é que estamos falando de um século atrás: naquele tempo, não existe a tecnologia de hoje. O processo de gravação era rudimentar: todos cantavam espremidos diante do microfone. Seria impossível colocar um pandeiro ou prato-e-faca e arriscar cobrir todo o resto, por exemplo.

Apesar de aparentemente simples, a gravação de “Pelo Telefone” não apenas mais um disco. Seu intérprete, Baiano (nome artístico de Manuel Pedro dos Santos), era um dos maiores dos primeiros tempos da música no Brasil.

Basta lembrar que foi ele mesmo quem registrou, em 1902, a primeira gravação no Brasil, com o lundu “Isto é Bom”, de Xisto Bahia.
Baiano também era parceiro musical de Donga. Eles escreveram juntos o clássico “Seu Mané Luiz”, que foi sucesso no tempo do teatro de revista, que era a opereta fluminense.

Falando em Donga, “Pelo Telefone” lhe rendeu muita dor de cabeça. Ao mesmo tempo em que assinou a certidão de nascimento do samba, foi acusado de plágio. Sinhô reclamou a autoria. Mesmo tendo adaptado versos do cronista Mauro de Almeida (o tal “Peru” que aparece na letra), não o citou no selo do disco.

Pesquisadores como Jota Efegê descobriram uma nota sobre a execução de "Pelo Telefone" num artigo de fundo do Jornal do Brasil de 1917, indicando a co-autoria de João da Mata, Germano, Tia Ciata e Hilário Jovino. Outro deles, Almirante) defendia a tese de que Donga era, no máximo, co-autor do tema, e que Sinhô havia criado o estribilho. Já ele, por sua vez, respondeu dizendo que Almirante apenas queria acusá-lo de usurpador ao invés de esclarecer a questão.

Outros musicólogos preferem salientar a importância de Mauro de Almeida na composição tanto da letra quanto da música, explicando que o resto era inspirado nas históricas rodas de samba.





* Matéria que escrevi para a revista Passaredo mês passado (adaptada).

Thursday, August 11, 2016

Nostalgia


Metrô

Fico aqui comentando sobre histórias dos anos 80 e esqueço que já se passaram três décadas! Achava engraçado quando algum parente me falava dos anos 60. Parecia algo de priscas eras, como a própria expressão "priscas eras". Sentia uma certa inveja dos meus velhos. eles tomavam Grapette, liam a TV Intervalo, assistiam ao Bonanza na tevê e ainda viveram para comprar o disco mais recente dos Beatles.

Hoje eu me descubro convivendo com uma geração nova. A maioria deles nasceu pelo menos naquele tempo ou, mais tardar, nos anos 90. Logo, quando eu comento alguma coisa sobre os anos 80, nem percebo o quanto estou parecendo velhos para eles. Afinal de contas, o que são os 80 para essa gurizada de agora?

Às vezes, eu sou assomado por refluxos ao passado que me assustam. Outro dia, uma AM da capital começou a tocar o "Leão Ferido" do Biafra. Outras exatamente dessa época: "Time", com o Alan Parsons e "Na Hora da Raiva", com a Wanderléa. Mas nessa época, eu meio que estava descobrindo o que era ouvir rádio e música. E, nossa, eu ouvia isso no primeiro radinho de pilhas que eu tive. Não lembro a marca. Lembro que era azul. Esse é o tipo de música que você, quer goste ou não, se escutou-a quando era criança, mesmo séculos depois, sempre retorna à sua infância profunda.

Depois, a gente fica inventariando fatos e eventos. E tenta dar sentido algo que o tempo foi apagando na nossa memória — ou, pelo menos, jogou em alguma gaveta esquecida do nosso distraído esquecimento. Depois, a gente compara o tempo de nossos pais, o nosso tempo e hoje. E eu fico pensando: muita coisa que eu vivi está perdida para sempre, como um filme que eu assisti e esqueci da história — lembro apenas que o assisti um dia.

Um deles, e que me marcou já a pré-adolescência foi o "Conta Comigo" que, esta semana, comemora 30 anos do lançamento. Assistindo a um clipe dessa película no Youtube me fez proustianamente voltar à 87. Eu acabei assistindo ao "Conta Comigo" por causa da trilha sonora (desculpem se minha cabeça só funciona com música junto). Eu gostava de do wop e rock dos anos 50 (e não me perguntem o porquê, não foi por influência de ninguém) e detestava quase tudo o que tocava no rádio.

O curioso é que, justamente, as músicas que mais nos trazem essa nostalgia são coisas que não tinham quase nada a ver com o que eu ouvia ou gostava na época. O que eu realmente ouvia nos anos 80 passava longe do rádio. Porém, minha memória opera quando ouço aleatoriamente algum sucesso daquele tempo.

Magazine, Metrô, Herva Doce, Grafite, Kid Abelha, Dr.Silvana & Cia., Gang 90, Radio Taxi. Tudo aquilo que a gente zombava hoje tem um outro valor.

Quando ouço o "Leão Ferido" do Biafra ou o "Mamma Mia", do Grafitte, ou as canções da Blitz e aquele sunshine pop do começo dos anos 80 me lembram de quando eu estava no 1º grau no Positivo em Curitiba. Já quando voltei à Porto Alegre, em 84, o que mais tocava no rádio era a "Milonga para as Missões, do Borghetti que, inexplicavelmente, tocava em todas as emissoras de FM. Uma música instrumental no topo das paradas. Junto com ela, lembro de "Chuva de Prata" com a Gal ou o "I Just Call to Say I Love You" do Stevie Wonder.

Já quando eu estava nas Dores, eu quebrava lanças contra o que o pessoal gostava de tocar na hora do recreio. Tinha um garoto do 2? Grau que arrumava um jeito de fazer tocar OMD ("Enola Gay") quase todo dia. Até que veio a febre de RPM e Ultraje a Rigor.

Não tinha como fugir. O jeito era aguentar. Até que, no meu 2º Grau foi a febre de Guns e Roxette. Como disse o Verissimo a nostalgia consiste em sermos atraídos irressistivelmente em lembrar como fomos ridículos um dia.

Diria que o tempo faz maravilhas. De repente, por causa de uma música aleatória que toca no rádio, como a supracitada "Leão Ferido", nós acabamos voltando à nossa infância proustiana. E, de repente, eu me vejo diante do espelho, com o abrigo das Dores, passando a escova no cabelo e com o olho no relógio — como sempre, atrasado para o primeiro período. Vou ficar de molho na sala do Prof. Garcia mas pelo menos tem futebol no último período.

Lembro que eu passei pela febre da Ritchemania. Depois, reneguei que tinha aquele disco. Doei para uma tia. Hoje eu acho que quero o disco de volta. O tempo opera milagres.

Os anos 80 foram tão bons? Foram melhores do que os anos 60, ou é tudo bravata? De repente, nem os anos 60 foram tão bons assim. A nossa memória pode pregar peças na gente. Se a gente esqueceu, é porque viveu? Quem costura todo o tempo perdido viveu aquele passado?

O que ficou? O meu segundo movimento depois do movimento involuntariamente regressivo e tentar salvar o que ainda recordo. Anotar alguma coisa que uma música nós devolve, como se fosse um rescaldo de um grande incêndio. Uma década que durou vinte anos e, de repente, não tenho conta de tudo o que aconteceu.

Minha memória entra no cinema e o filme era "La Bamba", no Cacique (quando a gente comprava um pacote de bala de hortelâ da Neugebauer e ficava três sessões seguidas no Cacique ou no Scala, que era perto da minha casa). E lá estava eu, no Surf Balroom, olhando o Buddy Holly fazendo mudanças de acordes na sua Fender. No "Conta Comigo" tem uma música dele, é "Everyday" (foi quando eu comecei a colecionar discos e a me interessar por rock, algo ultimamente tão fora de moda). E eu era um dos Crickets. Mas, na verdade, eu tinha ciúme das meninas fazendo escândalo com o RPM.

Não aguento mais estudar, quero ser um rockstar. Eu achava os Replicantes repelente. Hoje eu corro atrás daqueles discos, nem que seja em Mp3. O tempo empena milhares. E o Metrô? Acho que me apaixonei retroativalemte pela Virginie. Aliás, o Metrô está de volta! É bom saber que o tempo passou e esse retorno não tem nada de doloroso, até nos dá uma sensação de segurança. Quem sabe se a gente pudesse ter a cabeça de hoje e viver tudo aquilo de novo? Acho que esse é o desgraçamento mental que bate em todo ser humano que bate na porta dos 40. Sinceramente, hoje eu posso falar. Não vivi os 60, mas os anos 80 foram melhores.

Friday, August 05, 2016

Maneirismo no rock


Mike Leander levou um exemplar do
Aftermath para os Beatles durante os
ensaios de Revolver (1966)



Tenho um amigo que acompanhou os Beatles na época em que eles fizeram sucesso, nos anos 60. Ele tem uma tese peculiar sobre o quarteto. Ele diz que a banda realmente revolucionou a música quando reelaborou o rock americano, atualizando o seu som, amalgamando com elementos de Do Wop, Motown e elementos da cultura Mod, principalmente no segundo disco deles. Ou seja, os Beatles revolucionários eram, com efeito, os do tempo da ingênua e delirante beatlemania.

Para ele, aquela foi a síntese que, ao mesmo tempo em que atualizou a música e mudou o modo de ver da cultura jovem — até então enquadrada pelo estabilishment num formato domesticado, eles deram um novo direcionamento para o próprio mercado da música.

No entanto, para ele, o álbum Revolver — que faz 50 anos hoje, foi o começo do fim. Ou, na verdade, o fim. Lembrei dessa teoria quando recentemente li uma entrevista do Keith Richards criticando a forma como os Fab Four apresentavam-se ao vivo. Para ele, e lembro que ele havia dito isso ao próprio John, como ele diz na sua autobiografia Life, eles tinham "muito rock e nenhum roll". Por fim, para o guitarrista dos Rolling Stones, o fim do grupo de Liverpool foi quando eles resolveram fazer a tal Meditação Transcendental.

Por seu turno, isso me lembrou dos Beach Boys. Acho que, pegando essas teses, as duas bandas realmente tiveram uma gigantesca influência no sentido de revolução na música dos anos 60 mas, como entende meu amigo, os Beatles começaram a falsificar-se sob a persona do rock psicodélico. Para ele (e coincidentemente para Richards), o Pepper's é uma bela porcaria.

É claro que esse tipo de manifestação impressiona e revolta tanto os fãs quanto até mesmo a crítica (especializada ou não). Afinal, é ponto pacífico entre todos que a fase mais criativa dos Beatles começa justamente a partir de Revolver. E, comparadas as duas fases, parece comum afirmar que aquele rock dos tempos do Cavern era imberbe, pueril e, como disse anos mais tarde Paul McCartney, era muitas vezes propositalmente endereçado ao público feminino deles.

Infelizmente eu não teria como explicar com minhas palavras o que ele quer dizer com isso. É mais ou me nos isso. Ao contrário da maioria dos músicos, os Cavaleiros de sua Majestade esconderam-se em montagens de estúdio, experimentações, loops, overdubs, principalmente no Sgt Pepper's que, a rigor, é um divertido simulacro travestido de suíte musical, misturando desde vaudeville até raga rock, enfeixado com a alcunha de álbum conceitual. para onde o rock estava indo?

Como diz um professor é complicado, para não dizer impossível, investir contra os mitos. O passo seguinte é o ostracismo. E, de fato, eu rejeitei por anos essa teoria desse meu amigo. Ao mesmo tempo, lembrei de um tio. Ele tinha todos os elepês dos Beatles até o Rubber Soul. Dali em diante ele, que na verdade é fã da Jovem Guarda e arredores, é provavelmente um daqueles fãs dos anos 60 que não entenderam a banda depois de 1966.

Aliás, é curioso perceber que, á medida em que o grupo sofisticava-se em estúdio, parindo coisas como "Tomorrow Never Knows" e "A Day In the Life", era evidente que aquilo era um ponto sem retorno. Até porque, se olharmos em retrospectiva, toda a música de John, Paul George e Ringo dos primeiros discos era coverizada no Brasil. Quando Revolver surgiu, todos devem ter ficado beastificados. Não havia como fazer versões de "Eleanor Rigby" ou "I'm Only Sleeping". E o resto do disco é incoverizável em termos de Jovem Guarda — tanto que, a partir dali, a maioria dos artistas aqui teve que valer-se de outras fontes genéricas para abastecer o seus discos.

Em termos, eu achava que essa tese (ou "tese") de meu amigo fosse mero ressentimento. Afinal, ele também era um daqueles que curtia a banda do tempo dos Reis do Iê Iê Iê. Mas o conhecimento do assunto é maior do que esse mero reducionismo. Até que, para ele, quem realmente pegou a tocha e poderia ser chamado de revolucionário no rock era o Frank Zappa que, por sinal, como ele diz: "não se escondia atrás de wall of sound ou ouverdubs, Aditional Double Tracking e todas essas coisas que os Beatles digeriam junto com LSD quando fizeram o Revolver".

No fim, como ele diz, todo o pernosticismo retórico do rock psicodélico acabou virando uma corrida do ouro em busca do álbum perfeito, e todo esse perfeccionismo em torno de artistas, produtores e de bandas provocou o advento do progressivo que, mal comparando, foi o gênero mais incensado no começo dos 70 e que hoje poderia ser chamado de maneirismo do rock. Ou, por outra, foi o tempo em que todo guitarrista/tecladista de progressivo achava que era um Hector Berlioz.


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Mas eu não sei por que mas, detratores dessa (pretensa) segunda fase dos Beatles oferecem essa segunda visão. A partir delas, eu não consegui ouvir os Beatles da mesma maneira. E talvez ouça-os de forma melhor do que antes. Acho inclusive até que ela faz todo o sentido. Até mesmo quando, para alimentar essa polêmica, eu descobri na Internet uma resenha do Revolver feita pelo líder dos Kinks, Ray Davies, na revista Disc and Music Echo.

Extinta em 1972, a revista havia começado naquele ano. No lançamento do disco, os editores convidaram Davies a comentar o sétimo disco dos Beatles faixa a faixa. As respostas dele são de fazer qualquer fã roxo da banda montar num porco e pedir a cabeça de Ray. No entanto, mesmo hoje, pensando no que o disco representou na época, o que ele viria a representar depois e sobre como tentar entender, dentro daquele contexto, tudo o que estava acontecendo dentro do universo da música pop nesse momento. O momento mais sintomático é quando Davies comenta que "Love Yo To" é um raga e era algo que ele fazia dois anos antes (provavelmente referindo-se a "See My Friends") e que naquele momento, ele estava compondo mais ou menos como os Beatles faziam "há dois anos atrás".


"Taxman": Parece uma mistura de música do Batman com The Who. É um pouquinho limitada, mas os Beatles parecem superar isso pelo vocal dobrado sexy. É incrível como vocais dobrados fazem a voz ficar melhor".

"Eleanor Rigby": "Eu comprei um disco do Haydn outro dia e isso parece como aquilo. É aquele tipo de coisa de quarteto de câmara que soa como se eles quisessem agradar professores de música clássica em escola primária. Posso imaginar John dizendo: "vou compor esta para minha velha professora de música. Parece bem comercial, mesmo assim"

"I'm Only Sleeping" é a mais bonita. Mais legal que 'Eleanor Rigby'. Parece algo alegre a antigo, realmente, e definitivamente a melhor do disco".

"Love You To": George parece agora ter uma influência muito grande sobre a banda, agora. Essa é o tipo de canção que estava fazendo há dois anos atrás. Agora eu estou fazendo o que os Beatles faziam há dois anos atrás. Não é uma música ruim. é bem interpretada e é realmente uma faixa dos Beatles".

"Here There and Everywhere": "Esta mostra que os Beatles tem boas lembranças....porque há aqui um monte de acordes complexos. É ótima, como um instrumento com a voz e, de repente, a guitarra aparece. A terceira melhor do disco.


"Yellow Submarine"; "Isso é uma bosta. eu pego o microfone e faço no piano coisas melhores do que isso. Eu acho que eles sabem que isso não é bom.

"She Said She Said" "Essa tem algo que restaura a velha crença nas antigas canções dos Beatles, apenas isso".

"Good Day Sunshine": Essa parece ser épica. Não te força a nada, mas está no estilo de 'I'm Only Sleeping'. Essa faz a gente voltar aos Beatles da antiga. Só não acredito muito que os fãs irão topar essas novas coisas eletrônicas deles. Os Bestles sempre pareceram ser algo como o garoto do lado, porém melhor".

"And Your Bird Can Sing": "Não gostei. A música parece muito óbvia. Não parece uma canção dos Beatles".

"For No One": "Esta vai ser bastante regravada. É bem melhor do que 'Eleanor Rigby', e o trompete francês tem um efeito bacana".

"Dr. Robert" É boa, tem um efeito bacana de 12 compassos e algumas coisas são bem inteligentes nela. Não é do meu tipo, porém".

"I Want To Tell You": "Essa é uma que salva o disco. Não parece ser o tipo de cânone dos Beatles".

"Got To Get You Into My Life" : "Um fundo de jazz e isso parece mostrar que músicos de jazz ingleses não sabem suingar. Paul parece cantar muito melhor do que os músicos costumam fazer e isso faz parecer absurdo quando dizem que jazz e pop são diferentes. Paul parece o Little Richard cantando. De longe, parece a mais velha das faixas do disco">


"Tomorrow Never Knows": Ouça esses sons estranhos! Isso vai ser coqueluche em discotecas. Posso imaginar que eles amarraram George Martin em algum poste quando eles fizeram isso".

O fecho da matéria do Disc and Music Echo

"Assim, após ouvir a cada uma das faixas três ou quatro vezes, o veredito de Ray Davies é: "esse é o primeiro disco dos Beatles que eu escutei inteiro mas devo dizer que há músicas melhores no "Rubber Soul". Mesmo assim, acho 'I'm Only Sleeping' ótima, 'Good Day Sunshine' é a segunda e 'Here, There and Everywhere.' a terceira. Mas não quero depreciar as demais. O equilíbrio da técina de gravação do disco é o melhor possível".

Wednesday, August 03, 2016

O Baú de D. Francisca


Simões Lopes Neto


Mês passado ocorreu a lembrança do centenário da morte do Simões Lopes Neto. Eu, para variar, lembrei do Carlos Reverbel (que, aliás, sempre assombra as postagens daqui) que foi um dos primeiros biógrafos do autor de "Contos Gauchescos".

O Dom Carlos dizia que, em vida, o escritor pelotense frequentemente anunciava obras das quais revelavam apenas o título. Entre elas, o criador do Blau Nunes disse ter escrito dois romances regionalistas, "Peona e Dona" e "Jango Jorge". Se ele os escreveu, ou destruiu os originais ou, na hipótese de Reverbel, jamais os escreveu.

Em 1945, Carlos esteve em Pelotas comissionado pela Editora Globo justamente para fazer uma varredura sobre Simões. Para tanto, o grande desafio era conseguir entrevistar a viúva do autor, Francisca Meireles Simões Lopes (ou D. Velha, para os íntimos). Porém, cedo ele descobriu que não seria tarefa simples. Quando ele foi procurá-la em casa, ela foi esquiva e, de acordo com ele, só faltou bater a porta na cara.

Então ele soube que D. Francisca usava de precaução porque já havia sido vítima de gente que, se declarando como pesquisadores ou admiradores, sumiram com originais do marido. Com a recusa, ele não teve outra alternativa a não ser seguir á procura de informações em outras fontes.

Foi quando ele encontrou um certo Francisco Cardoso. Amigo de Simões Lopes, o levou ao sótão de um casarão abandonado. Ali, no meio de farto material, ele teve a sorte de encontrar um volume encadernado do extinto Correio Mercantil. Na coleção ele reconheceu um folhetim em 21 capítulos, publicado a partir de junho de 1914, o texto completo dos "Casos do Romualdo".

Conforma Francisca havia dito à Carlos, os originais haviam sido extraviados por um tal Pinto da Rocha, que incumbira-se de prefaciar a obra. Rocha havia prometido levar o material até a Capital Federal, a fim de prefaciar os "Casos", encaminhar a um editor. Desde então, nunca mais se teve notícia do homem.

Reverbel passou todo o romance à limpo à máquina e voltou à casa de D. Velha. Perguntou se ela não tinha notícia de um certo folhetim de Simões Lopes que fora publicado no Correio há uns 30 anos atrás, etc e tal. Ela respondeu que não existia nenhum "Casos do Romualdo", e voltou a reclamar para ele de gente que a espoliava querendo material do marido. Ele puxou o texto datilografado e mostrou a ela. E disse:


— Talvez então a senhora tenha deixado de acompanhar a vida literária de seu marido por, talvez, não reconhecer seu talento como escritor durante o tempo em que viveram juntos.

Perplexa, ela folheava o material. Voltando-se para os fundos da sala, ela disse:


— Firmina, traga o baú!

Assim, foi confiado à Reverbel um velho e preciosíssimo baú em que Dona Francisca guardara literalmente a sete chaves tudo que havia restado do escritor pelotense — inclusive as suas "Recordações de Infância" que parecia o esboço de um livro de memórias mas, na verdade, eram as primeiras páginas de um romance.

Já quanto aos Causos, eles seriam publicados em 1952, pela Editora Globo.