Monday, July 11, 2016

Memórias Involuntárias


Erico Verissimo


Tentei lembrar de um episódio, que aconteceu com o maestro Bruno Walter, quando ele foi exilado durante a Anschluss, em 1939. Ele estava ensaiando com a Filarmônica de Viena uma sinfonia do Guastav Mahler, quando foi preso. A cena ficou congelada na memória do velho mestre de tal arte que, anos depois, sempre que ele passava pelo mesmo trecho da música em que foi preso, ele não conseguia segurar as lágrimas.

Não consigo confirmar se o tal maestro em questão é mesmo o Bruno Walter. Porém, enquanto eu embalde pesquisava para confirmar de fonte segura (wikipédia (?))certeza tenho que a filha dele, Lotte, foi presa pelos nazistas e, por conseguinte, solta logo depois por intermédio dele), lembrei de um outro caso, que aconteceu com o Erico Verissimo.

No fim de 61, enquanto concluía o último volume da Trilogia O Tempo e o Vento (1), ele entrou num processo de criação que, á medida em que tornou-se catártico, já que, no final da história, ele criava um acerto de contas entre Floriano e o doutor Rodrigo Cambará. Depois de uma relação difícil durante toda a vida, pai e filho confrontam-se e aparam todas as arestas, num final surpreendente.

Como é sabido, muita coisa do Tempo e o Vento — e principalmente do O Arquipélago está cifrado na própria história de Erico, onde podemos encontrar traços de tios, tias, avós e avôs nos personagens do livro (Babalo, o simpático pai de Flora, por exemplo, é quase um decalque de seu avô materno), todo o processo criativo da terceira parte da obra exigiu-lhe um esforço emocional gigantesco.

Como podemos ver nas suas memórias, especialmente no segundo tomo do Solo de Clarineta (2), quando ele se perde na produção textual, e sequer toma consciência de que estava sofrendo um sorrateiro estado de insulto cardíaco.

Com o livro ainda inconcluso, e depois de alguma consulta médica, ele decidiu retomar o trabalho, mesmo contra as indicações se seu cardiologista, Eduardo Faraco. Eis que, num dia, de noite, ele liga sua capelinha na rádio da Universidade, quando o locutor anunciava o Concerto para Violoncelo e Orquestra, do Dvorak.

Naquele momento, Erico começa a sentir-se cada vez mais indisposto. "Por alguns segundos, ainda procurei prestar atenção à música, tentando provar a mim mesmo, na minha aversão á normalidade, que tudo estava bem ou, pelo menos, não estava muito mal. Por fim, apaguei o rádio.O violoncelo ainda ficou gemendo obsessivamente o tema do concerto dentro de mim, na cabeça e no peito, ao ritmo desordenado de meu sangue em pânico

A última coisa que ele se lembrou foi de ver Mafalda perplexa com sua cara de peixe fora d'água, correndo para o telefone. de repente, deram-lhe sedativos, e ele ficou numa vigília parva, sem conseguir entender o que as vozes ao redor dele diziam. Já internado, recebeu a visita de seu primo, Franklin Verissimo, que também era doutor. Foi quando Verissimo começou a recobrar a consciência. faraco orientou D. Bega e Mafalda para que não dessem a entender que seu estado era relativamente grave. Porém, sua mãe disse aos repórteres: "o Tibicuera não se entrega assim no mais!". Ele de fato não queria se entregar; além do mais — sabia — precisava terminar o Arquipélago.

Faraco foi ter com ele:

— Como te sentes, índio?

— Bem, e tu?

Sentado no catre improvisado á guisa de cama de hospital, em sua casa do Petrópolis, Erico perguntou se, agora que já estava relativamente estabelecido, poderia retomar a produção do livro. "Se podes trabalhar? eu te diria que deves. Mas, devagar; nada de exageros". Foi quando mafalda pôs ao seu lado as quase 2 mil páginas originais da terceira parte da trilogia. "Retomei contato com as minhas personagens. Achei que estavam ainda vivas, como eu".


Eis que, enquanto voltava a escrever, do seu rádio saiu aquela mesma voz anunciando justamente o Concerto para Violoncelo e Orquestra, em si Menor, Op. 104, do compositor tcheco Antonín Dvorák.

"Meu primeiro ímpeto foi o de desligar o aparelho, pois aquela música me evocava um momento de dor, angústia e perigo", diz Verissimo, no Solo de Clarineta. "Contive-me, porém, e ouvi o concerto até o fim. Tinha que me habituar a conviver tão pacificamente quanto possível com todas as memórias daqueles últimos meses, por mais desagradáveis que fossem".

Com a experiência, Erico resolveu mudar a história: ao invés de edema pulmonar, como havia antes concebido, Rodrigo Cambará passaria pelo mesmo traume de Verissimo no livro: um enfarto.

Quando o livro ficou finalmente pronto, em julho de 62, ele deu um exemplar ao médico: "ao querido amigo Faraco, sem cuja oportuna colaboração eu jamais teria podido terminar este livro".


Porém, como ele mesmo conta, quando costumava escrever, o autor de Clarissa preferia os discos de Barroco. em especial, um deles, e que foi a sua trilha sonora para, depois de sobreviver ao insulto cardíaco, ter que, a despeito de muita pena, matar o pai de Floriano, no último capítulo. A música era a sinfonia do segundo movimento da Cantata de Páscoa, do Bach.



1) Erico Verissimo. O Arquipélago. Editora do Globo, 1962
2) A lembrança dessa história está no segundo volume (póstumo, organizado por Flávio Loureiro Chaves) do Solo de Clarineta, que saiu em 1976.