Saturday, December 12, 2015

O Último Caudilho


Sinatra

Frank Sinatra, cujo centenário celebra-se hoje, foi uma efeméride do Século XX — se não a maior de todas.

O último caudilho da música. Nenhum artista seria capaz de sintetizar e traduzir o que foi a música americana senão ele. Vinha de uma linhagem de cantores como Rudy Valee, mas soube definir o papel do crooner a frente da orquestra, não como parte dela. Sinatra inventou o cantor solista.

Antes dele, era preciso pedir a bênção ao maestro da orquestra. E Frank tinha personalidade para tanto — nem que tivesse que meter um cavalo morto na cama de Tommy Doorsey. Aliás, salvo engano, foi seu preceptor quem disse que, se sinatra não fosse cantor, seria mafioso.

Nem tanto. Frank ficava no limite entre o mafioso e o caudilho. Para ele, não bastava ser apenas um cantor. Ele precisava de um séquito, para não dizer, uma gangue de porrada. Como todo mafioso, andava em bandos. Como todo caudilho, tinha a vocação da liderança — mesmo que, na hora da dar um soco em alguém, ele fizesse questão de dispensar ajuda.

Sinatra criou a imagem do cantor por excelência. Antes dele, um cantor era um artista da vaudeville. Agora, você tinha que calar a boca e ouvi-lo. Quando ele apareceu, em 1939, ele era esperado no Tim Pan Alley como um messias. De nada serviria aquela geração de editores e compositores de plantão se não surgisse alguém capaz de interpretá-las à altura.

Frank Sinatra teve o seu momento de beatlemania, quando virou o ídolo da juventude e das bobbysockers, nos anos 40. Como sempre acontece, foi vítima do sucesso, que sempre necessita de novidade. em pouco tempo, estava condenado ao arquivo morto da história. Foi esmagado pelo fracasso. Foi preciso reinventar-se como um artista maduro.

Nisso, alguns entrementes, a ajuda dos amigos e, principalmente, da fortuna: quis o destino que justamente o surgimento da tecnologia do long-play, a partir do começo dos anos 50, servisse de moldura aos voos musicais de Sinatra. A recém fundada Capitol precisava de catálogo e, principalmente, de cantores que preenchessem comme il faut esse papel.

Muito se escreveu sobre Sinatra a respeito de sua vida musical. Um exemplo é a recente biografia dele, escrita por Anthony Summers. Um calhamaço de 800 páginas cuja matede são as notas e, menos da metade, ou quase nada, é destinado a analisá-lo musicalmente.

Frank carece de uma bibliografia que se debruce sobre sua obra: a verdade é que muito da reputação da popularização do elepê e o desenvolvimento comercial da fonografia no século passado passou por ele. Sinatra vendia disco para um público adulto como ele e que, com o tempo, consolidaria o modelo de produção de discos. Com o tempo, descobriu-se que era um filão. Não é a toa que o primeiro dos 1001 Albuns do livro do Robert Dimery começa justamente com o In Wee Small Hours (1955).

A união entre Sinatra e a Capitol foi de uma sorte que só acontece com os grandes. Ainda teve como maestro um certo Nelson Riddle. Moderno, criativo e minimalista, Riddle definiria o "som" típico de Sinatra nos discos. Juntos, eles produziram uma série de álbuns que, quase sessenta anos depois, parecem cada vez modernos. Além de criar grandes discos, ele ainda teve o topete de dourar a pílula do formato, lançando discos conceituais, ou com um tema específico, cardinal.

Sinatra é o pai do midcult. Seus discos nos anos 50 passaram a limpo o som do Tim Pan Alley. Ele escolheria as melhores canções, os melhores compositores. Mais: ele elevaria o status do compositor. Ele transformou Sammy Cahn no Brahms de Nova Iorque. Frank não apenas cantava — ele ensinava com essas músicas deveriam ser cantadas. Todos os discos que Sinatra fez na Capitol, de 54 até 1962, quando fundou a reprise, são luminares.

O primeiro deles, Songs for Young Lovers, ainda eram em dez polegadas. Abre com "My Funny Valentine". Depois viriam Swing Easy! (54), In wee Small Hours (55), o maior de todos, Songs for Swingin' Lovers! (56), o camerístico Close to You (57), A Swingin' Affair! (57), Where Are You (57), A Swingin' Affair! (57), Come Fly With Me (58), Sings for Only the Lonely (58), Come Dance with Me! (58) No One Cares (59) Nice 'n' Easy (60), Sinatra's Swingin' Session!!! (60), All the Way (61), Come Swing with Me! (62) e Point of No Return (62). Num espaço de quase uma década, Sinatra interpretou o melhor da canção americana do primeiro quartel do século. Muitos daqueles temas ganharam versões definitivas com ele, como "Night And Day", e "I've Got You Under My Skin", que, por sua, tornou-se uma de suas signature songs.

O projeto que ele empreendeu nesses discos era curioso: usando o mote do álbum conceitual, ele dividia lançamentos de baladas com elepês de música de dança. Mais do que isso, nos discos de baladas, soube elaborar ciclos de discos de fossa de qualidade insuperável, como o fúnebre (e supracitado) Where Are You e o clássico dos clássicos In Wee Small Hours. O melhor da música americana e de um tempo do que foi o espírito de época de um país que, como diria Hobsbawn, ou se era americano ou periferia, no "breve século", Sinatra foi, por conta disso, o pináculo, o paroxismo da canção popular, quer queira ou não.


Como Balzac sintetizou na sua Comédia Humana um Zeitgeist e uma forma de arte particular e eterna, Sinatra tem a sua La comédie humaine: muito além do cantor de "New York, New York", um Caruso já decadente e quase paráfrase do artista que um dia foi, a fase da Capitol pega Frank no seu auge, como a voz guia do sonho americano. Tudo está lá. A grande novidade ainda se chama Frank Sinatra.

Thursday, December 10, 2015

Quase Famosos


O Vímana



Em 1977, o Vímana fazia relativo sucesso no circuito comercial do Rio de Janeiro, chegando a lotar o Museu de Arte Moderna em algumas apresentações, no começo de 1977. O grande problema da banda, capitaneada por Lulu Santos (guitarra), Ritchie (guitarra), Luiz Paulo Simas (teclados) e Lobão (bateria) era que eles não tinham um álbum.

A banda chegou a gravar um protótipo de um disco de estreia por conta própria, em 1976. No entanto, nenhuma gravadora queria bancar o lançamento. Nisso havia dois problemas: o primeiro é que a condição do Vímana era a não interferência na produção. O segundo, além da característica musical do quarteto — essencialmente uma versão ininteligível de progressivo — era essencialmente anticomercial.


A última cartada desse impasse se deu numa curiosa entrevista (1) que os rapazes concederam ao DJ Big Boy, na rádio Eldorado (ou Eldopop (2) do Rio de Janeiro em fevereiro de 1977. A entrevista — uma relíquia e que pode ser encontrada na Internet funciona como um elo perdido que explica muita coisa a respeito tanto do que era o Vímana naquela geléia musical brasileira do final dos anos 70 e do problema das práticas do fazer/compor rock num período tão adverso como aquele.


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Naquele ano, o Vímana teve carta branca para gravar uma fita demo num estúdio de 24 canais da Som Livre através do Guto Graça Mello. A produção fora franqueada pelo dono do equipamento, como processo de teste, (a instalação do primeiro estúdio Level de 24 canais do Brasil, fora feita por Don Lewis, que foi justamente quem franqueou toda a produção e gravação da demo da banda. Depois de pronta, o quarteto tentou "vender" o disco pronto para várias gravadoras, mas nenhuma se interessou pelo projeto.

Tempos depois, eles conseguiriam espaço na programação dominical da Eldopop para serem entrevistados. A pauta era, justamente, o relativo sucesso do conjunto e a dificuldade em concretizar o trabalho em vinil.


No começo da entrevista, Big Boy pergunta: por que vocês não têm um disco, o público não quer comprar o disco?

— Eles querem ouvir, eu não sei se eles querem comprar essa briga — responde Lulu. Ele cita Hermeto Paschoal para dizer que eles são artistas, não vendedores de discos. E entendem que se não conseguem pegar o público pelo "grande pé" ou pelo grande "olho" (a mídia?), eles preferem pegar pela grande estrada — as turnês.

Big Boy pergunta à Lulu por que eles foram preteridos. "Acho que tem muito ciúme de quem tem a coisa pronta", ele responde. "acho difícil os produtores pegarem um produto pronto e dizer honestamente se está bom ou ruim. Porque o que vende independe muito pouco do produto, depende mais da veiculação dele — então, é um problema de comprar briga".

Big Boy pergunta se eles acham que existe algum boicote. "Sim", diz Lulu. "Eles vêem isso como uma coisa boba, que eles compram esse produto, eles tão ingerindo essa coisa".

Mais adiante, eles explicam as mudanças na banda e a dificuldade em conceituar e rotular o trabalho do Vímana. Ritchie fala que "On the Rocks" é sobre quando ele entrou no quarteto (junto com a saída de Candinho) e Lulu resolveu reformular o projeto, agora com um cantor. Lulu diz que, antes da chegada de Ritchie, o público não sabia muito bem o que eles tocavam — se era arranjo, jazz ou rock progressivo: "era uma coisa utópica, perfeita, orquestral, que a gente não chegou a atingir, porque aquilo apodreceu antes de ficar maduro".

Lulu Santos diz que, a partir dali, eles decidiram buscar novamente o conceito de "canção", "uma coisa mais concisa, o cosmético, o arranjo, vem depois; o conceito principal é a melodia. Nesse sentido, eles entendiam que era preciso dar adeus à temas com músicas longas, em favor de canções curtas. Ritchie, por sua vez, acha que o rock é cíclico: ele diz que, na Inglaterra, estavam voltando a tocar em clubs. "Esse negócio de canção pequena está fazendo uma volta", diz.

Big Boy entende que a estagnação do progressivo se deu, em parte, por conta do que ele chama de "maus instrumentistas". Cita o exemplo de temas que ele executa na programação da Eldopop, como o Krautrock (3) — não execrando todo o movimento; contudo, entendendo que o gênero chegou num ponto onde era difícil distinguir o que era bom do que era excrescente.

Sem esconder o topete, porém, Lulu rechaça totalmente o Krautrock, dizendo que, como pastiche, ele diluiu a fórmula do rock de uma forma que o rock dividiu-se entre o hard e o kraut. E emenda: "A gente procura não se veicular tanto como rock porque a gente sente um pouco de vergonha, principalmente vendo isso, mesmo respeitando o trabalho de pessoas que fazem coisas maravilhosas, e a gente vê coisas no rock nacional que a gente não têm a mínima vontade de se filiar".

Na sequência, eles citam Lobão (que está ausente no estúdio) e comentam que todos são compositores. A mais recente gravação, "Zebra"(4), um funk, é de autoria dele, porém a letra, do Ritchie, é inglês. A respeito disso, este faz uma auto-crítica em nome do grupo, porquanto sendo de origem britânica, a língua é uma barreira pelo fato de ser a forma como ele melhor pode compor — ao mesmo tempo entendendo que, no rock, o inglês é uma língua universalizante.

Meio que chutando o balde, Lulu diz que o inglês é a alternativa possível para poder divulgar o disco do Vímana no exterior já que — de acordo com ele — o projeto de lançamento do disco está emperrado há quase meio ano. "Você pensa que a gente vai chegar lá fora cantando em Português, com Bossa Nova, e vai acontecer alguma coisa? Não acontece! Eles foram lá com a fita! A gente precisa estar vinculado da forma como eles estão acostumados".

Então Ritchie responde (a Lulu): "a gente nem tem como chegar lá fora, porque a gente nem começou aqui". Lulu: "a gente tá se atendo muito à realidade da gente. A gente não toca prá 17 mil pessoas, a gente toca prá mil. A gente não tem que botar equipamento para 17 mil pessoas; a gente tem que botar prá 300, 500, 600..."

Então Ritchie faz a seguinte revelação: "foi para isso que nós um poeta amigo da gente, chamado Bernardo Vilhena, que entrou, com a maior empolgação, fazendo letras para a gente, e em Português. Ele é uma pessoa que fala a mesma linguagem que a gente. A presença dele é vital no novo som do Vímana". Lulu: "principalmente que, quando ele trouxe a letra em Português, ele trouxe toda uma malandragem carioca que ele tem, e eu não tenho, claro, e que influenciou até o som do conjunto. Vira e mexe, você tem ali uma expressão".

Big Boy pergunta à Luiz Paulo: já se vive de rock no Brasil? "Tá começando, com esses shows no MAM, a gente vislumbrou a possibilidade de se viver de rock". Lulu: "se a situação empresarial ainda tá engatinhante demais para o tempo que tá, pelo menos tá bom (...)". Eles citam o fluxo de público em apresentações recentes do Made In Brazil, Rita Lee, Novos Baianos e os Mutantes e dizem que "todos os shows encheram". Para todos, existe um mercado (deduzindo-se a partir dessa cena rock).

Lulu emenda: "se existe uma discrepância entre o disco e a plateia, é porque não consegue se nacionalizar o produto — uma coisa que acontece na praça de São Paulo e que não repercute aqui e vice-versa, mesma coisa em Santa Catarina, ou em Salvador. A gente fica ilhado, ou então, fica dependente".

— Quer dizer que se vocês foram tocar no interior, vocês vão ter público? — pergunta Big Boy.

— Vamos! — responde Lulu. — Eu fui montar equipamento para o Alceu Valença na feira dos nordestinos, às seis da manhã, no pavilhão do São Cristóvão (...) e foi tudo bem. Os Mutantes, há um tempo atrás, com a formação antiga, com a Rita, eles pegaram um ônibus e viajava pelas cidades do interior de São Paulo e era um barato, as pessoas curtiam demais (...). A solução do rock aqui é a auto-suficiência.

— E é necessário o cartão de visitas, que é disco — conclui Big Boy.


No fim, ele faz um apelo para que os produtores e donos de gravadoras se interessem e liguem para o programa. E conclui: "tomara que eles vejam todo o potencial de vocês".



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Tempos depois, com ou sem o empurrãozinho do Big Boy (que morreria pouco tempo depois dessa entrevista, em março daquele ano), o Vímana acabou lançando "Zebra" pela Som Livre.

Porém, mesmo com a expectativa da tal esperada consolidação de uma cena rock no Brasil, pelo visto, se era pouco viável para aquela geração dos anos 70, a coisa estava por mudar. Aliás, esse é o ponto onde o Arthur Dapieve (5) começa a alinhavar a revolução do que seria chamado de BRock no Brasil, a partir do estouro da Blitz, em meados de 1981.

Para isso, seria necessário que, com efeito, a própria mídia passasse a encampar o que seria chamado de rock, já na sua extração oitentista. Quanto aos anos 70, ainda resta entender (e de certa forma, Dapieve explica esses poréns no livro)

O que ficou dessa entrevista é o Vímana na própria imagem de época, um proto-projeto de algo que, pelo substrato das vozes, e olhando em retrospectiva, era algo que ainda estava em gestação — tanto o projeto de absorção definitiva do rock brasileiro pela indústria cultural quanto a concepção de pop dos músicos do conjunto.

Por conta disso, é notável que, em dado momento, eles citem Bernardo Vilhena como a pedra de toque das composições do grupo a partir dali. Como se sabe, respectivamente em carreiras solo, se o Vímana não (abre aspas) aconteceu (fecha aspas) como banda de rock, é possível entendê-los como um projeto que, a despeito de todos os dramas e defecções ao longo do caminho, desaguou justamente no que foi o paroxismo do rock dos anos 80.

Sobre isso, não há aqui a menor necessidade de explicar ou expor o êxito da carreira tanto de Ritchie, de Lulu Santos e do Lobão, sem contar com o papel fundamental de Bernardo Vilhena nesse processo. O curioso nisso tudo é poder observar, nessa entrevista, esse movimento "em falso" do Vímana querendo, de certa forma, acreditar no seu potencial e tentar entender (sem entender) o motivo pelo qual a banda não logrou êxito na época. Claro que, no retrovisor, nenhum deles seria auto-indulgente em tentar julgar sua música em formação como subestimada.

Para tanto, basta comparar o projeto do conjunto na sua fase pós-progressiva com a escalada de sucessos que todos perpretaram cerca de cinco anos depois do impasse do disco que nunca foi gravado. Claro que com a internet — e ela é pródiga nisso — agora é possível conhecer o Vímana e tentar analisar o que foi o rock nos anos 70. De certa forma, até então, vítima do próprio esquema de rádio e trilhas de novela, que eram os agendadores de sucesso naquela década que, por conta disso, não era nada roqueira.


(1) http://www.mediafire.com/listen/25pehexfv00ts25/Eldo+Pop+entrevista+Vimana.mp3# Acessado em 10/12/2015

(2) A Eldorado FM foi uma emissora experimental na frequência modulada nos anos 70. à moda das FMs americanas, à moda de comunicadores como Tom Donahue, passaram a usar esse formato para tocar rock progressivo. Aqui, no Brasil, coube à Big Boy franquear a Eldopop entre 71 e 77 como um canal experimental para esse tipo de música, que era anticomercial e não competia com o pop executado nas AMs, que eram mais fortes na época. O Rock dos anos 80, de certa forma, seria referendado pela progressiva profissionalização do FM como formato musical jovem. Quando o FM profissionalizou-se, o próprio progressivo já havia caído de moda.

(3) Krautrock é o rock progressivo alemão. A despeito das críticas à excrescência típica do progressivo desse jaez, o gênero tinha grande execução na Eldopop, ou seja, ainda falaríamos a respeito de um proto mercado de nicho, já que estava ausente da grande mídia.

(4) "Zebra" saiu em single em 1977 com "Masquerade" de lado B (do Ritchie). O disco nunca foi lançado oficialmente. Apesar do que a banda acreditava, nenhuma gravadora iria endossar um trabalho tão autoral. Não seria nem pela barreira de língua (muitos brasileiros à época vendiam milhões em inglês, como Morris Abert) mas, mais (e eles deve ter percebido depois) que o esquema AM-novela era muito bem enfeixado (aqui infelizmente sem entrar em pressupostos teóricos levando em conta meios de produção, modos de produção, estética ou contexto histórico) para comprar, a fundo perdido, um projeto de músicos que queriam derrubar um esquema que nem o rock oitentista logrou implodir. De certa forma, como aconteceu com a Jovem Guarda, apenas foi ligeiramente enquadrado pelo sistema.

(5) Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Editora 34, 1995.