Friday, November 27, 2015

Bonfim de Ponta a Ponta


Cartaz do documentário "Filme Sobre um Bom Fim"


Antes de assistir ao "Filme Sobre um Bom Fim" eu havia lido o Esquina Maldita (1), do Paulo César Teixeira duas vezes. Por coincidência, após a primeira sessão do documentário na Sala redenção, na noite terça passada, fui coincidentemente apresentado à uma das entrevistadas da película, a Polaca, plena Lancheria do Parque. No meio da conversa, perguntei se ela havia lido o livro, e ela respondeu que não.

Pois desse encontro que eu resolvi juntar as duas pontas. A despeito de ter sido lançado há pouco mais de três anos, a obra do Paulo César — que é um dos primeiros depoimentos do filme, perfeitamente ambientado numa das mesas do Marius ainda é pouco conhecida. Minha impressão é justamente a de que o filme parece começar quando o livro termina.

Teixeira praticamente fez um belo documentário sobre a cena cultural que ocorreu no Bonfim a partir da Esquina Maldita. Aquela cena surgiu no final dos anos 60, na esquina das ruas Sarmento Leite e Qswaldo Aranha justamente porque, naquele tempo, todos os cursos de Humanas da UFRGS ficavam no Campus Centro.

Por causa disso, todo o movimento jovem culturalmente engajado passava pelos bares da região. Aquela foi a primeira cena "jovem" daquela região, porém antes do túnel — pegando o mote de um (também pouco difundido) livro do Juremir Machado da Silva que tenta, como eu aqui, juntar as pontas do Bonfim (2).

O Esquina Maldita trata primeiro da forma, o surgimento de bares como o Alaska e o Copa 70 para, num segundo momento, lidar com o conteúdo, os personagens daqueles dias políticos, suas histórias e seus dramas. Na verdade, ao contrário do que foi o movimento oitocentista, o Bonfim da Esquina Maldita tem os seus momentos de idealismo, mas é uma história triste.

Naquele momento, nasciam os festivais universitários de música e de teatro e os primeiros movimentos políticos estudantis na capital. Porém, o clima de repressão era cada vez maior. A polícia dava batidas surpresa nos bares da esquina. Se havia um clima de liberação sexual ali, ele era restrito. Como se sabe, era impensável, no começo dos anos 70, uma aglomeração de pessoas como as que eram comuns no Escaler, quinze anos depois.

Fora que muitos dos que romperam com o PCB e realmente partiram para a luta armada, não voltariam. No livro, vemos inúmeras histórias políticas daqueles que acreditavam, como ocorrera em Cura, era possível derrubar o regime através de guerra de guerrilhas. em pouco tempo, aquela esperança e aquela utopia transformou a Esquina numa espécie de reduto do desbunde porto-alegrense.

Assim como vemos no documentário do Boca Migotto, existia uma resistência à repressão. Porém, ali, ela não era apenas política, mas cultural também. O provincianismo e o bairrismo, que são questionados pelas vozes do documentário, nos anos 70, faziam as regras. O livro do Paulo César Teixeira consegue captar esses momentos felizes em que aquela juventude, à sua maneira e mesmo sendo cerceada em todos os campos, estava plantando muito do que vemos hoje, nos movimentos pelos Direitos Civis — e isso explica a atualidade de um ícone da Esquina, a Nêga Lu que, não gratuitamente, ganhou uma biografia este ano, publicada pelo mesmo Teixeira.

O provincianismo e a ditadura cultural dos anos 70 era forte o suficiente para explicar aquilo que não aconteceu ali, mas que foi florescer e explodir com toda a força "depois do túnel" (da Conceição, da construção da elevada e geograficamente também), a partir do show Deu Pra Ti, de Nei Lisboa e do Augusto Licks (1979), que desaguaria na produção cinematográfica do Giba Assis Brasil e do Nelson Nadotti.

Aliás, o leitmotiv tanto do filme quanto do documentário é, justamente, aquele traveling que junta as duas pontas do Bonfim, da Sarmento até o Trianon. O meio do caminho é justamente o Ocidente que, por sinal, é quase que o elo que une as duas pontas do Bonfim.

A Esquina Maldita teve a sua história resgatada mas, se houve um saldo positivo, foi o de abrir caminho para os anos 80. Antes do túnel, muita coisa ficou represada. Os espaços culturais eram, praticamente, espaços de resistência. Se houve um elemento que desse forma àquele substrato cultural setentista, ele foi a resistência. Com a abertura política, esse elemento latente da Esquina, aos poucos saiu do gueto e foi situar-se à esquerda do espectro ideológico partidário. Contudo, o seu palco, agora era outro.

A cena havia mudado. Talvez isso explique por que o movimento oitentista no Bonfim foi, com efeito, um movimento estético. pelo menos, pegando como eixo o documentário, houve o surgimento de um sem número de espaços culturais. A prática de fazer cultura, a explosão do rock como um fenômeno de massa (e não como coisa de magro trique-trique rolimã e tomador de panca dos 70), o surgimento das emissoras de rádio em frequência modulada (a Bandeirantes FM e, depois a Ipanema) criaram o palco natural para que todo esse movimento surgisse.

Agora, o Bonfim, pelo menos por uma década, deixou de ser um gueto (com os negros e com os judeus primeiramente, depois com os estudantes da esquina Maldita) para tornar-se uma arena cultural. O fim da ditadura viabilizaria as aglomerações de público; as novas tecnologias (3), como o vídeo, permitiram que as pessoas tivessem acesso ao que vinha de fora. As FMs, por sua vez, iriam tribalizar esse público. Como diz o Egisto a folhas tantas, no documentário: o Bonfim não era mais o bairro dos seus moradores, mas um catalisador de todos aqueles que sintonizavam com essas boas vibrações.

No meio do filme, aparece Claudinho Pereira lendo o seu livro de memórias (4). Ali ele cita, para lá de en passant, algo que passou quase batido: o Fedor. Ou Shitink, ou Serafim, o estabelecimento tem um subcapítulo de outro livro (5) do Juremir (que é uma das vozes do documentário) e é uma das histórias que limitaram-se a rasantes no filme do Boca Migotto. Aliás, a autobiografia do Claudinho conta uma história curiosa: havia um acordo "logístico" entre o Fedor e o Zé do Passaporte (outro que passou batido) para que o primeiro só vendesse bebidas, o segundo lanches; dessa forma, um não entrava no negócio do outro e, de quebra, se complementavam: você bebia até cair no Serafim, e depois ia matar a larica no Zé...

O Serafim pegou fogo e virou aquele prédio (da esquina da Fernandes com Oswaldo) da matéria de arquivo do Peninha no Prá Começo de Conversa. A versão oficial é a de que a causa do sinistro foi o forno de uma pizzaria, que ficava nos fundos do Fedor. A não-oficial, amplamente difundida pelo saudoso Sampaulo, é a de que uma empada do Serafim explodiu, em pleno balcão. Dentro muitos ex-frequentadores (entre eles, Moacyr Scliar), essa era a causa mais provável.

Mas a repressão também batia no outro lado do túnel: o Fedor também também tinha problemas com a polícia, tanto pela venda de drogas nos arredores quanto ao carteado do Fluminense, clube que ficava no andar de cima do estabelecimento — e que também virou cinzas.

O livro Noite dos Cabarés tem a ver com o eixo "boêmio" do filme, e que salta aos olhos aos espectadores de hoje e que, naturalmente, não vivenciaram o que foi o Bonfim dos anos 80. Do Lola (João Telles) até a Fernandes, havia, contando o Mercado, pelo menos sete botecos. Isso sem contar o Escaler e os que nasciam e desapareciam à roda do HPS e do Maomé. Porém, no novo contexto da pós-modernidade, segundo Juremir, aquela discussão política bizantina dos tempos da Esquina transformou-se em hedonismo puro ou, usando um eufemismo eficiente, mero papo de boteco.

Os freaks bebem e dormem nas calçadas. Sentados nos degraus, consomem Valium e exibem sua miséria. No Bar João, eles lembram Janis Joplin e dizem que "toda política é suja". Bebem cachaça e execram os grupos que os sucederam. Tido como local de violência, o Bonfim não pode escondê-la. Mas luta para evitar a neurose da classe média. Sua guerra, antes de tudo, é visual(p.73).

O livro, no entanto, entra num eixo naturalmente não explorado pelo documentário que é, de certa formam, um corte antropológico na tipologia e análise das diversas tribos que compunham as tribos jovens do Bonfim. Intelectuais modernos na Lancheria, new romantics e a boemia bem vestida no Ocidente, freaks e rockers no João e pela Oswaldo afora. De certa forma, houve a mudança, da primeira geração, compulsoriamente reprimida e desbundada até talvez por falta de opção pelas saturnais a céu aberto do que foi os anos Berlim-Bonfim da segunda metade dos anos 80.

O fim daquilo, de certa forma, pode ser explicado por uma certa estagnação daquela ciclo. Tudo aquilo estava ligado ao contexto da abertura democrática e, com o tempo, deixou de ser novidade. O que é possível vislumbrar em perspectiva é, pegando as duas pontas da Oswaldo, como um travelling histórico um pouco maior do que o da abertura do Deu Prá Ti. A Esquina Maldita, por seu turno, foi o princípio de algo que estava manifesto e que evoluiu num tempo e espaço. Uma das leituras possíveis dentro do espectro do tema — que foi tratado de forma sublime no documentário.

É possível contestar a validade daquele movimento. De repente, todos estavam fazendo história, e não sabiam; ou, por outra, achavam que estavam escrevendo a sua trajetória para a eternidade, e que eram apenas uma versão farofa e terceiro mundista da Rive Gauche ou do Village, como disse o Peninha. na verdade, isso é o que menos importa aqui.

O que interessa é que essa história aconteceu. Hoje, ao desavisado e maravilhado espectador do "Filme Sobre um Bom Fim", pode parecer inacreditável que a região entre o Araújo Vianna e a volta do Mercado do bairro lotasse de gente até no lustre (na ponta de cá do Bonfim) — da mesma forma que uma malfadada utopia estudantil e meninória (como diria o Carlos Reverbel) existiu na Esquina Maldita (na ponta de lá). Talvez a mais acachapante das tantas belas imagens do documentário seja a do areal da frente do Escaler (hoje uma cafeteria, como os arautos da lei e da ordem preferiram) apinhado de gente, num domingo de tarde — aquilo aconteceu em Porto Alegre.




(1) Esquina Maldita. Libretos, 2012.
(2) Antes do Túnel - uma História Pessoal do Bom Fim. Editora da Cidade, 2007.
(3) Mauro Borba, Prezados Ouvintes. Artes e Ofícios, 1996. ele cita, no livro, exemplos como home vídeos com shows do Cure — numa época em que não existia Youtube e poucos possuíam vídeo-cassetes. Fora o sem- número de casos em que tanto lançamentos internacionais como as da Vanguarda Paulistana chegavam á Porto Alegre através de fitas-cassete, então ainda difíceis de se conseguir
(4) Na Ponta da Agulha. Editora da Cidade, 2012.
(5) A Noite dos Cabarés, Mercado Aberto, 1991.

Thursday, November 26, 2015

O Sobrado em Transe


Erico Verissimo



No último dia 18, a Associação Cultural Acervo Literário de Erico Verissimo desenvolveu o seminário “O Sobrado em O Tempo e o Vento: ascensão e queda dos Terra Cambará”. A atividade contemplava uma palestra com três professores (e membros da ALEV), Maria da Glória Bordini, Márcia Ivana e Antônio Sanseverino (todos das Letras da UFRGS) a respeito do papel do Sobrado em O Tempo e o Vento (1949) (1).

A proposta é bem interessante, pois possibilita uma leitura ampla da obra-prima do escritor cruzaltense — além daquilo que foi mitificado pelas releituras que o livro sofreu (não sei se é a palavra certa) nos últimos sessenta anos. Releituras, estas, que não permitem, de certa forma, que se entenda a proposta de Erico em sua trilogia.

A leitura que os três realizam tem como perspectiva o Sobrado do ponto de vista da "consolidação do poder dos Terra Cambará e de sua decadência, como microcosmo da constituição da territorialidade do Rio Grande do Sul – de início amparada nas virtudes tradicionais da honra e da bravura e depois corroída pela ambição e corrupção de seus próceres".

O que parece — aos desavisados! — muitas vezes uma obra de exaltação à bravura e à história rio-grandenses, no ponto de vista da formação do Continente na figura de uma certa família Terra-Cambará, o que há mesmo é esse movimento de ascensão e queda, onde muitas vezes a adaptação só dá conta de uma parte que, falsamente, acaba valendo pelo todo. Como não existe um proêmio e uma musa para que o vate possa delimitar o tema, essas adaptações caem no equívoco fácil da simplificação e da mitificação.


O que vou ensejar aqui é o resultado das minhas leituras do livro mais as opiniões do seminário, naturalmente amparado aqui e ali com alguma matriz bibliográfica.

O que Erico apresenta, num quadro geral, aquém e além de adaptações (e daquilo que as pessoas em geral acabam depreendendo como o fulcro do O Tempo e o Vento) é uma contínua dualidade, contradição e ambiguidade moral no âmago dos protagonistas. Pedro Missioneiro é oprimido, luta por sua liberdade mas a sua violência é igual à daqueles a quem busca sobrepujar. Essa violência, como diz a Maria da Glória Bordini, os insere no quadro do poder que, de 1745 a 1895, está na mão de caudilhos que, com mão de ferro, controlam a peonada. Essa é, de certa forma, a matriz que irá explicar todo o processo político no Rio Grande (e no Prata) nos próximos duzentos anos.

O Continente

Nessa perspectiva dual, vemos que os personagens têm o seu respectivo fundo falso. O tão decantado Capitão Rodrigo luta pela liberdade no plano político mas, no pessoal, não é tão digno de simpatia; Bolívar é incapaz de defender um escravo amigo seu. A culpa o corrói a alma, ao mesmo tempo em que é dominado pela mãe (Bibiana) que, por sua vez, faz de tudo para destruir a nora, e vice-versa.

No segundo tomo de O Continente, Bibiana lembra vagamente a Cremilde do segundo tomo de A Canção dos Nibelungos (3). De personagem secundária, a heroína de Erico torna-se a protagonista de uma vingança tanto àqueles que mataram seu esposo quanto à Luzia. O primeiro passo da fria e calculista megera Bibiana foi casar seu filho com a herdeira do Sobrado de Agnaldo Silva. este, por sua vez, havia tomado as terras de Pedro Terra por dívidas, acabrunhando o velho e matando-o. Ora, logo, as terras do Sobrado eram dela.

O segundo passo da Cremilda de Santa Fé é, pois, impedir a qualquer custo que Luzia case-se novamente e tira o jovem Licurgo de suas mãos. Nisso, inicia-se um tenso jogo psicológico entre sogra e nora. Nessa guerra (título ambíguo do capítulo, que se refere também à Guerra do Paraguai) é difícil torcer para qualquer uma das duas. Para ficar com o neto do Capitão, elas dissimulam e disputam o jogo mais baixo possível.

Vence Bibiana, vence o Sobrado. Agora, contemplamos a formação de Licurgo como uma segunda geração de caudilhos: aqueles que vão instrumentalizar-se pelo poder político à moda moderna, "iluminista", semi-ilustrada (ainda para esses cantões do continente), à medida em que o republicanismo se insurge no Estado. Torna-se positivista e castilhista. Luta pela liberdade (como seu avô) e, como seu avô, entrega-se às suas ambiguidades morais. Afinal, ele tem uma amásia lá pelos lados do Angico (a estância dos Cambará) e, com o tempo, toda a cidade sabe — inclusive sua esposa, Alice.


Nessa perspectiva de asenção e queda, como se vê, nos episódios familiares dos Terra-Cambará, é quase como se na gênese dessa construção da realidade estivesse a sua própria ruína: nos subcapítulos do Sobrado, vemos o poder de Licurgo sendo contestado, como um Agamênon gaúcho, diante de sua prima, Maria Valéria, que demonstra ter mais brios do que muitos ordenanças do neto de Bibiana. Em meio ao sítio ao Sobrado, ele mal consegue administrar a famélica situação dos seus comandados, todos perdidos e entrincheirados dentro da mansão, cercada por maragatos sob o comendo dos amarais, seus vetustos inimigos políticos.


O Retrato

Em O Retrato (1951), vemos um exemplo singular dessa ambiguidade moral dos Cambará, agora cifrado na imagem de Rodrigo Cambará. Filho de Licurgo, ele é o caudilho moderno, da geração de Oswaldo Aranha, de Getúlio Vargas e de Flores da Cunha. Doutor, ilustrado, francófano, sua personalidade é delineada pelo povo de Santa Fé no capítulo que abre o segundo livro da trilogia, "Rosa-dos-Ventos". Todos t~em uma opinião a respeito de Rodrigo. Muitas são as vozes, muitas são as sentenças: entre elas, ele é um canalha, um malfeitor, ele é um benfeitor, um homem honrado e um político dissoluto e um putanheiro.

A partir dali, o livro divide-se em duas partes principais — "Chantecler" e "A Sombra do Anjo" — que mostram a trajetória do protagonista, desde a sua caracterização de jovem doutor, dândi, o seu engajamento e desejo do mudar o poder político local contra a repressão borgista em Santa Fé até a grande tragédia de sua vida. Depois de "fazer mal" a uma jovem violonista (Toni Weber) de uma trupe mambembe, ela comete suicídio — ao mesmo tempo que a morte coincide (e, de certas forma, é abafado) com o assassinato de Pinheiro Machado, em setembro de 1915.

Refugiado no Angico, Rodrigo corrói-se em culpa. Sua dor é verdadeira. Porém, não sabemos se ela é suficiente para expiar sua culpa. Até porque, veremos adiante que mesmo que Rodrigo tenha empatia e consciência suficientes paras analisar o que ele fez, isso vai acabar tonando-se uma constante em sua vida pessoal e política. O filho de Licurgo (ao contrário deste que, por sua vez, não guardamos qualquer simpatia) encarnará essa dualidade entre a revérie e a culpa abissal em vários episódios de sua vida.


O Arquipélago


O último capítulo de O Retrato, "Uma Vela para o Negrinho", é uma antecipação ao Arquipélago (1962), da mesma maneira como o primeiro (Rosa-dos-Ventos) é uma espécie de prolepse do livro seguinte. Nele vemos Floriano Cambará, filho de Rodrigo, que mal conhecemos, cantando a sua ária de apresentação. Ele reaparecerá adulto, nos capítulos "Reunião de Família" e como um jovem em formação nos capítulos que, à moda de O Continente, servem de flashbacks dos episódios de família de O Arquipélago (1962).

Rodrigo Cambará, filho de um ex-castilhista, luta pelo poder em Santa Fé. Mesmo anti-borgista, é melindrado pelo senador Pinheiro Machado com vistas à uma possível deputação pelo PRR em nível estadual. Mesmo contra Hermes e Pinheiro, após a morte deste, envereda-se pela política justamente pelo partido de Borges. A oposição era ainda muito liliputiana e, além do mais, era toda ela maragata. Isso seria de um problema intransponível à Licurgo que, por seu turno, jamais pensaria que, um dia, ele iria cair nessa esparrela e ter algo com comum com seus antípodas federalistas: ser inimigo de Borges.

Quando estoura a Revolução de 23, Rodrigo e seu irmão (e, meio a contragosto, seu pai) bandeiam-se para o lado dos rebeldes. Verissimo sempre foi discreto em cenas de guerra em O Tempo e o Vento mas, no capítulo "Lenço Encarnado", ele dá contornos épicos à bazófia que se instaurou na Campanha gaúcha, onde os veteranos maragatos queriam agora a intervenção federal contra os desmandos de Borges. Vem o fim da guerra, Toríbio parte com a Coluna.

Os subcapítulos "Reunião de Família" aludem ao tempo presente na narração de O Arquipélago, entremeando os capítulos do livro, da mesma forma como "O Sobrado" têm o mesmo papel em O Continente. Além da similitude com a forma, Erico mostra um outro problema familiar: se em "O Sobrado", vemos o grupo familiar em transe, porém todos como que impostos pela mão mítica e terrível de Licurgo, em "Reunião de Família" nós encontramos Rodrigo no fim da vida, em meio a uma crise cardíaca, tentando unir in extremis aquela família agora diluída e dividida. Ao contrário de Licurgo, o gongo não irá salvá-lo. O destino escapa à suas mãos.

O poder que nosso herói tem agora, tanto no plano político quanto familiar é fictício, quase uma mera delegação. Ele tem, com efeito, a procuração da experiência da vida. Por mais execrável que seja ou possa parecer, Rodrigo quer manter a família unida, mais do que tudo. Nisso, pelo menos ele dá a entender, o decano dos Terra-Cambarás é sincero.

No entanto, como vemos, na sucessão de episódios, desde 23, Rodrigo é um poço de contradições. Devastado agora pela morte da filha, Alicinha, não quer mais clinicar. Quando não sabe mais o que fazer da vida, se insurge a Aliança Liberal. Logo, filia-se às primeiras fileiras junto com Vargas (de quem, a princípio, considera um pusilânime no meio do movimento) e Oswaldo Aranha. Com a Revolução de 30, Rodrigo parte às cegas para a aventura dos gaúchos na Capital Federal.

Nisso decorrerá uma ruptura de Rodrigo com seu irmão, Toríbio. Este, apesar de ser um apolítico, é lúcido o suficiente para saber dos desmandos do governo Vargas. Mais tarde, às vésperas do golpe de 37, em plena noite de Ano Novo ("Noite de Ano Bom"), acusa o irmão de ser um comensal do Presidente, um chefete plenipotenciário de araque com fumos de cacique político, mas apenas um cambão de Getúlio, como tantos outros, e que foi para o Rio viver das benesses do poder e ficar rico às custas de um cartório, e viver a vida no café society do Cassino da Urca. Em dezembro daquele ano, Rodrigo tenta, de todas as formas e argumentos, justificar o Estado Novo.

Toríbio, como um Aquiles, briga feio com seu irmão, manda o Ano Novo às favas e arrasta Floriano para um cabaré. Este, por sua vez, seria testemunha da morte insólita do tio, perplexamente esfaqueado por um garoto no meio da festa. Morreu só sem tempo para poder reconciliar-se com Rodrigo.


Alguém falou em Floriano? Pois ele aparece, lá no final de O Retrato para ser caracterizado plenamente apenas a partir de O Arquipélago. Agora, temos uma quarta geração dos Cambará que, na figura dele, contesta o poder do pai (como não poderia deixar de ser) ao mesmo tempo que, à sombra dele, tenta juntar todos os pedaços de vida mal resolvidos: sua relação com o pai e com os irmãos, seu amor por Sílvia, uma enteada da família que acabaria por casar-se com Jango, irmão mais novo de Floriano).


Encruzilhada



Floriano é o jovem que vê o Sobrado, busca entender a essência dele, a história da sua família. Ele é quem tenta, como Édipo, ser o detetive de si mesmo, e de tudo o que se passa por ali. Para tanto, ele tem o seu Tirésias (pegando impiedosamente o mote da professora Márcia Ivana no seminário), que é Roque Bandeira. Talvez os melhores momentos de O Arquipélago estejam com eles. Como dois filósofos peripatéticos, eles parecem ser a consciência apolíneo-dionisíaca na história. Num plano, eles analisam a própria situação a respeito daquilo que os acerca. Por outro, Bandeira, mais conhecido como o Tio Bicho) desempenha esse papel de profeta, ou melhor, de preceptor, diante de Floriano que, pegando o mote de Érico, está nessa encruzilhada.

Tio Bicho é aquele que vai empreender a maiêutica sobre Floriano. De certa forma, nesse plano, é como se, ao mesmo tempo em que O Arquipélago é um desdobramento e conclusão da personalidade de Rodrigo, ele também pode funcionar como um romance de formação de Floriano, questionando-se como escritor, como filho, como irmão. Essa aventura ele empreende no embate com seus iguais, sempre entremeados pela análise ferina de Bandeira, quase um personagem queirosiano.

É no momento em que ele encerra o diálogo com Tio Bicho é que Floriano já está prestes a fazer um "ajuste de contas" com Rodrigo. O pai, entrevado, à beira da morte, o filho, o procura, como se lhe questionasse, como se lhe pedisse conselho, como se lhe pedisse perdão. No fim, ambos saem engrandecidos desse encontro. Tio Bicho pode partir, pois já desempenhou seu papel 'pedagógico'. Rodrigo já pode morrer, pois está em paz com todos os traumas e mal-entendidos com Floriano — seu filho mais velho e o mais parecido com ele.

Floriano está preparado? Poderíamos dizer que, analisando sob essa perspectiva de ascensão e queda, o que existe de contraditório do ponto de vista de gerações é que, do começo até o fim, é como se o clã dos Terra-Cambará vivesse essa dualidade e essa contradição intestina através dos tempos por carência de uma consciência, de uma empatia, de uma visão existencial que seus descendentes, por algum motivo, não possuíam, e isso serviria como uma maldição. Assim como Sílvia, no capítulo "Diário de Sílvia", onde ela ganha a primeira pessoa para colocar-se numa posição onde, pela primeira vez na trilogia, uma mulher do clã parece ganhar voz própria.

Da mesma forma, Floriano "obtém" essa voz própria. A análise com Tio Bicho e o último diálogo com Rodrigo foram catárticos para ele. Ele e Sílvia, por conseguinte, são os descendentes do clã que libertam-se dessa "maldição", assumem juntos — cada um a sua maneira — a sua voz própria e, como Electra e Orestes, libertam Santa Fé da maldição dos Atridas.

Por isso, Floriano está preparado. No final no livro, nas últimas linhas, ele entra na mansão dos Cambará às escuras, plena madrugada. Caminha pé ante pé e diz: "o Sobrado está vivo!". Sobe até a água-furtada, coloca o papel na máquina de escrever e começa: "era uma noite de lua cheia, as estrelas cintilavam, sobre a cidade de Santa Fé..."




(1) Érico Verissimo, O Tempo e o Vento. Globo, 1949/76.
(2) Maria da Glória Bordini,Regina Zilberman. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. EDIPUCRS, 2003.
(3) Anônimo. A Canção dos Nibelungos; Colação Ghandara, Martins Fontes, 1996. Na história, Cremilda é mulher de Sigfried e este é morto por traição por Hagen, vassalo de Brunilda. Após a morte de Sigfried, Cremilda tenta reaver o tesouro perdido e assassinar todos os responsáveis pela morte de seu esposo.

Saturday, November 21, 2015

Querida mamãe



Eu sei que você nem vai ler essas palavras. Já estou imaginando a senhora jogando essa carta no chão, e pisoteando ela como se fosse um inseto repelente, depois catando ela, rasgando em pedacinhos e comendo ela. Mas eu sei que, depois, a senhora vai voltar a si, vai catar os pedaços, colar com durex e ler o que eu quero lhe dizer. Mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu fui-me embora. O que mais eu posso lhe dizer, se eu fui-me embora? Eu sei que a senhora já abriu um berreiro por aí. Falou que é teoria da conspiração, que vovô é um velho safado e é ele quem está por trás de toda essa história, que ele não respeita nada, e que acha que tem sempre a razão, e quem devia estar acorrentado numa pedreira com o fígado de janta de abutres era ele. Mas não é verdade, mamãe. A culpa não é dele e nem de ninguém. A culpa é toda minha. Aliás, a culpa não é minha, porque eu não tenho culpa nenhuma. Eu fiz apenas o que eu quis. Não é verdade o que andam dizendo por aí. Eu não fui forçada a nada. Foi o meu coração quem me disse. Se eu não fosse sua filha, eu iria dizer: me esqueça, me esqueça, porque vai ser melhor prá você. Você não tem a menor ideia de quanto esse amor materno me tolhe, me incomoda, como isso me sufoca! As mães não são felizes. Não sei quem foi quem disse isso, mas a verdade é vocês nunca serão felizes enquanto não resolverem esse amor que devora pelos filhos, um amor que não deixa vocês em paz, não nos deixa em paz, não te deixa em paz e não me deixa em paz! Mas é lógico que eu não posso dizer isso prá você, porque eu sou sua filha e porque eu amo você e porque eu também tenho saudades de você, mamãe. Eu tenho saudades da forma como você gostava de mim. Acredite, eu também estou chorando, aqui. Desculpe. Do jeito que vocês contam a minha história, parece que eu sou a vilã da história, uma réproba, uma desalmada, a ovelha negra da família. Mamãe, acorda, você tem que desconstruir esse paradigma. Eu sei que dói em você, porque dói em mim também. Mas essas coisas já estavam no colo dos deuses. Isso já estava escrito. Um dia, os filhos crescem e partem da casa dos pais. No fim das contas, passam as estações, a gente cresce e depois vira o pai e mãe de gente mesmo e vocês é que regridem, vocês viram as crianças. É engraçado como, no fim das contas, os filhos viram os pais dos pais. A mana Tritogênia disse que a senhora não sai de dentro de casa, fica trancada no quarto o dia inteiro, não cuida mais dos afazeres de casa, que a senhor nem se cuida mais. mamãe, você tem uma reputação! O mundo espera pela senhora. E eu falo assim porque eu conheço a senhora de outros carnavais, digo, de outras saturnais. Mamãe, mais dia, menos dia, a senhora vai ter que encarar a realidade, vai sair do seu quarto, vai sair do seu orgulho, vai sair dessa sua birrinha aí e ver a bagunça que a senhora deixou, que a senhor tem responsabilidades e que a gente tem muita vida para viver. Pare com esse mimimi. Eu não tinha dedos para dirigir-me à senhora depois de tudo, mas parece que vejo a senhora diante de mim. Eu prometo que, se as coisas mudarem, eu passo as férias de verão aí com a senhora. Então as coisas serão como nos velhos tempos. E a gente vai ver que a espera valeu a pena e, no fim, não doeu nada, não é, mamãe? Não se preocupe. Se as coisas parecem estar de cabeça para baixo, é porque a nossa história ainda não chegou ao fim. Não é isso o que a senhora sempre me dizia? O melhor ainda está por vir.
Beijos da sua eterna

Perséfone

Saturday, November 07, 2015

Kafka e o Narrador falso 9


Kafka


A Metamorfose, do Franz Kafka, tá fazendo 100 anos. Kafka me lembra do meu primeiro semestre na faculdade. O professor de Língua Portuguesa era o Tatata Pimentel, e ele mandou a gente fazer uma resenha do livro.

Primeiro semestre era uma loucura. A maior peça que pregaram na gente não foi trote de bixo, mas foi a perda da inocência de deixar o Ensino Médio e cair no colo da vida acadêmica.

O Tatata estava acostumado certamente com a nova leva de aprendizes que apareciam todo semestre. Como quase sempre, as turmas noturnas na Famecos eram egressas de supletivos. Assim, ele nos chamava carinhosamente de "Monteiro Lobato (conhecido supletivo da cidade, para os desavisados). Por exemplo, ele escrevia no quadro-negro e, depois perguntava: "o Monteiro Lobato já copiou? Posso apagar?".

O grande trote era esse: depois de uma vida inteira perdido em apostilas de cursinho, deparar-se com Escola de Frankfurt, Saussire e coisas do tipo não eram bem aquilo que a gente queria saber. Aliás, como ocorre na maioria dos cursos de graduação, o que os alunos mais querem e passar de ano. Num começo de curso, ou você sabe o que quer da vida ou não sabe. Se não sabe, pelo menos, sabe o que não quer da vida, e aquilo não era o que a gente esperava.

Havia um professor que era da pós, e estava substituindo uma professora. Ele, naturalmente acostumado com o perfil do aluno-pesquisados do mestrado e do doutorado, não tinha lá muita paciência com bixos. O divertido é que a aula dele (analisando hoje), era uma aula de pós. Mas ele sabiamente queria incutir aos incautos calouros que aquele tempo da inocência acabou. Não tem mais redação "minhas férias". Agora, o negócio é fichar livros, citar fontes e fazer uma conta no xerox.

Da ementa de Língua Portuguesa, uma das avaliações era ler o Kafka. O Tatata ainda exigiu que lêssemos a edição da Brasiliense, que recém havia publicado toda a obra do escritor praguense com tradução direta do alemão feita pelo Modesto Carone. A gente naturalmente não entendia muito o porquê dessa exigência. Era uma questão típica de Literatura Comparada. Como era comum, muitas traduções brasileiras eram "retraduções". Ou seja, a tradução de Kafka, antes, era vertida do francês, por exemplo

Parecia mero purismo, mas essas traduções canhestras (de acordo com o Tatata) transformavam "canapé" em "sofá", ao passo que, se formos pensar bem, existe uma diferença enorme entre um sofá e um canapé (nenhum dos alunos sabia o que era um canapé"). Logo, sua explicação parecia um tanto razoável. A tal tradução a que ele se referia, obviamente, deveria ser a do Syomara Cajado, que era a mais popular e fácil de achar (comprei na Feira do Livro daquele ano, por sinal).

Não me lembro em qual trecho, mas a tradução do "canapé" por "sofá" foi no Syomara Cajado. Desobedeci às ordens do Tatata e não li a versão do Carone, que iria ler muito tempo depois, já liberto dos grilhões da Famecos. A tradução dele, da Nova Época, do começo dos anos 70, era vertida do inglês, como se sabe. A do Carone, dos anos 90, foi a primeira feita direto dos originais.

De qualquer maneira, esse papo de excelência de tradução era mais para o pessoal da Literatura Comparada do que para nós, calouros "Monteiro Lobato" (eu não fiz Monteiro Lobato). (Aliás, eu achava a maior graça do apelido, muito embora notasse que muitos dos meus colegas da 389 ficassem ligeiramente irritados com isso).

No final do curso, depois que entregássemos as resenhas da novela do Kafka, o Tatata então, como nos havia prometido, iria interpretar A Metamorfose para a psicanálise e do ponto de vista da teoria marxista. Eu lembro que ele explicou, contudo, mas aquilo não impressionou ninguém. Pelo menos, a mim, o que eu não esqueci dessas aulas foi que ele disse que havia uma interpretação errônea em associar o inseto da história como "barata". Me recordo que ele salientava o tempo todo: "não é uma barata!".

Durante anos eu fiquei assombrado com isso: a barata do Kafka não era barata, era um inseto. Porém, o mistério é que isso ele não explicou.


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Até que eu li essa edição recente do Kafka que saiu pela Companhia das Letras, o Essencial Franz Kafka. O livro é uma antologia de novelas do escritor praguense, mas com o texto completo de "A Metamorfose". A tradução é, pois, a do Carone.

À guisa de introdução à centenária novela, há a transcrição de uma palestra do tradutor "contra interpretações psicanalíticas, teológicas e existencialistas".

Dois pontos interessantes na análise do Modesto me chamaram a atenção: a primeira se refere à questão do narrador no conto. A sua tese (se não estiver deturpando ela) é a de que o narrador kafkiano é singular. Ao escrever em terceira pessoa, ele parece ser onisciente. No entanto, ele não é; o narrador não vai muito além do que o próprio Gregor pode ver ou perceber, ao longo da história. Algo como se este narrador fosse como uma câmera instalada na cabeça do inseto.

Carone compara o narrador da Metamorfose com a de Dom Quixote. Este é ciente da loucura infrene do protagonista e, com efeito, faz caso dessa situação. Já o de A Metamorfose parece não estar certo do que está acontecendo: não há uma distância estética entre a confusão de Gregor e a armação daquilo que está sendo narrado. Ao contrário, o único elemento de concisão é o texto conciso, quase cartorial, de Kafka, em narrar de forma escorreita algo que parece mais um mundo mal descrito e jogado elegantemente no colo do leitor.

em outras palavras, é como se o narrador em Kafka é o falso 9. Ele falseia os fundamentos do narrador tradicional no plano da linguagem mas ele só descreve o que vê. Walter Benjamin (outra grande lembrança do primeiro semestre da Famecos) é quem iria além ao paroxismo de desenvolver uma teoria de que Kafka é o exemplo definitivo daquilo que ele explicava como o "fim da narrativa". O romance kafkiano, para ele, não sintetiza o problema da narrativa, mas é o seu mais perfeito sintoma: é uma dialética morta, uma síntese que não acontece, é a comédia humana que bateu num iceberg e afundou.

Carone explica: "é nesse passo que o leitor se sente tão impotente quanto o herói para perceber com discernimento as coordenados do mundo que ambos tateiam". O narrador é falso 9 porque é impessoal". Contudo, a confusão de Gregor é legitimada por essa impessoalidade. A ruptura acontece no fim, quando Gregor morre e o narrador permanece. Isso fez com que Kafka considerasse o final "falso" (ele chama de "ilegível", ou fora do contexto do falso 9, já que a perda da perspectiva no inseto "quebra" a unidade da narração até aquele ponto.

O outro ponto reside no fato de que Carone entende a metamorfose em dois planos. A do arrimo da família transformado em inválido e a "metamorfose" da família. Para ele, os Samsa deixam de ser os parasitas para tornarem-se auto-suficientes e autônomos. Todo esse processo está aquém da narrativa, embora Gregor, à maneira de Édipo em Sófocles (como explica Modesto Carone) já num processo de inversão, tenta relembrar e enfeixar todo o seu passado.

Todavia, ao contrário do marido-filho de Jocasta, o nosso caixeiro não consegue racionalizar os fatos da mesma maneira. Ao mesmo tempo, na mesma perspectiva de inversão, a invalidez de Gregor em A Metamorfose resulta na sua liberdade. Porém, essa liberdade acaba se metamorfoseando em problema aos olhos dos agora pró-ativos Samsa. Eles não magoavam o protagonista em serem parasitas; agora, eles não aceitam a condição inversa.

A partir dali, como diria o (terrível, mítico, românico) patriarca da família: o dilema reside em considerar Gregor como alguém da família: "nossa infelicidade é justamente até agora termos acreditado nisso". O pobre caixeiro não era mais o jovem varão da família era havia se metamorfoseado num "inseto".

Aqui chegamos àquilo que o Tatata havia falado a respeito do porquê nosso herói não deveria ser confundido com um uma barata. Kafka, como se sabe, era um conhecedor de etimologia. No original em alemão, ele desperta como um "inseto monstruoso" (ungeheures ungeziefer). Carone explica que a expressão não foi colocada ao acaso: "ungeheuer" ou "monstro", etimologicamente quer dizer, "aquilo que não é familiar, aquilo que está fora da família" e se opõe a "geheuer", aquilo que é manso, familiar. Já "ungeziefer" significa (etimologicamente) "animal impuro, ou, que não se presta ao sacrifício". Com o tempo - diz Carone, a expressão foi ressemantizada, designando animais nocivos, como a barata, em oposição aos não-nocivos, os domésticos.

Essa explicação, revela Carone, dá a matriz verbal para explicar a metamorfose do parasitado em parasita - ou daquele que se prestava ao animal servil (como um burro de carga, como Gregor era) para outro, que não "se presta mais ao sacrifício (culto ou, emfim, utilidade)". Esse animal que era servil agora é um inseto, etimologicamente falando. É por isso que Gregor é um inseto, e não uma barata.

Matei a charada, vinte anos depois.