Thursday, January 22, 2015

No Tempo da Mundial



Propaganda da emissora em 1970


Quando era estudante, fui fazer pesquisa sobre a rádio Guaíba de Porto Alegre. Para ilustrar meu trabalho, fui até aos estúdios a fim de conseguir algum áudio preservado de programas antigos. Qual não foi o balde d'água que eu levei quando soube que não só a Guaíba mas, em geral, nenhuma rádio, pelo menos aqui, no Brasil, tem qualquer preocupação em guardar isso.

Na ocasião, um funcionário (isso foi em 1999) me disse que o pouco que eles tinham (e era disponibilizado no site) havia sido preservado pelo Flávio Alcaraz Gomes, como o áudio da inauguração da Guaíba, em 1957. Tempos depois, achei alguma coisa não muito longe dali, no setor de Imagem e do Som do Museu Hipólito da Costa.

Muitas das fitas do acervo do Museu eram provenientes de doações de ouvintes que, por algum motivo útil, preservaram trechos de programas de rádio, como o Discorama, do Osmar Meletti. Eu mesmo sempre tive o hábito de gravar o broadcasting de emissoras de rádio. Porém, como não tinha interesse em guardar e catalogar, por falta de espaço, acabava apagando e regravando coisas em cima dos cassetes.

O estudo da memória do rádio, ainda mais do rádio brasileiro, que é um rádio de (vá lá) mentalidade terceiro mundista, é algo que se ressente da falta de preservação desse tipo de registro. Como saber como era o tipo de transmissão, o modelo de rádio de tempos passados, se não tivermos pelo menos uma amostragem? Como diria alguém, tudo o que propaga no éter, morre no ar; não fica registrado, como no caso da mídia impressa, por exemplo (o mesmo acontece com a nossa TV).

Naquele tempo eu imaginava que era possível que algum ouvinte de rádio, mesmo que sem interesse "acadêmico", teria guardado material em áudio - justamente a partir da popularização de gravadores portáteis, a partir de meados dos anos 70. Mesmo assim, seria algo improvável, empírico, sem método algum.

Fiquei surpreso quando, há pouco tempo, com o surgimento do Youtube e o consequente desenvolvimento do site com vista a disponibilizar um espaço cada vez menos limitado de streaming, muitos usuários (rádio-escutas amadores ou quase isso) passaram a postar áudio convertido de cassetes gravados e guardados por décadas a fio - na Internet.

Pego como exemplo duas gravações da rádio Mundial do Rio de Janeiro. Adquirida pelo Sistema Globo de Rádio em 1966, teve o seu auge durante os anos 70, sob o comando de Newton Duarte, o disc-jockey Big Boy. Há cerca de dois ou três anos, é possível acessar áudio de trechos de programas da emissora, registrados há mais de trinta anos, e disponíveis em streaming.

No Youtube, entre outros registros, pude encontrar dois arquivos interessantes: amos são trechos do programa Show dos Bairros (que era apresentado por Oduvaldo Silva, de segunda a sexta, das 9 da manhã até o meio-dia) respectivamente gravados em agosto de 1972 e em fevereiro de 1981.



O que é possível depreender desse áudio: a Mundial ainda tinha um o atavismo do rádio do speaker; locução empostada. A despeito de ser um programa popularesco - locução com notícias breves e bloco musical feito por votos de ouvintes, cujo pedido era associado ao seu respectivo bairro ("a música do Arpoador"), o que naturalmente explica o nome do programa.

Outra: a gravação é de agosto de 1972. Era o auge da Mundial. Líder de audiência entre o público jovem, no ano anterior a 860 foi eleita a emissora do ano pela Revista Propaganda. Também era o auge do Regime Militar, é possível, logo de largada, ouvir o spot governamental do Centenário da Independência.

Nos reclames, nota-se que a Mundial fazia parte do esquema da Globo na divulgação do (malfadado e polêmico, como se sabe hoje) VII Festival Internacional da Canção. Não seria à toa que várias músicas na programação são do certame ("22 Andar", Edison e Aloísio e "Diálogo", Cláudia Regina e Tobias), e propaganda massiva do Festival (de citação de participantes até o jabá do disco com as canções, à venda, em elepê).

Quem lembra do Oduvaldo dos anos 80 certamente vai estranhar algo que era notável: apesar da sisudez da locução, provavelmente por conta da direção artística do Big Boy, ele faça uso, como pedras-de-toque, de gíria ("é isso aí, amizade", "uma jóia"), com objetivo nítido de imprimir mais coloquialidade - era a mudança do modelo de rádio popular, cujo paroxismo eram, com efeito, os programas do Big Boy. Ao mesmo tempo, é possível notar como o AM daquele tempo lembra um pouco o que viria a ser o FM nos anos 80.

A programação é basicamente de MPB e pop internacional (Oduvaldo chega a anunciar Eddie Kendricks!), e os blocos de notícias são quase inexistentes. Uma, por exemplo (aos 17:00), refere-se à Chico Buarque, sobre "pregar a MPB à universidades do interior". Na verdade, tratava-se de uma caravana patrocinada pela sua gravadora, a Phonogram.

Não entendo por que a informação saiu pela metade. Ou, de certa forma, pelo contexto, entende-se: era melhor para um canhão como a Mundial que fosse apenas um vitrolão. Numa época de uma outra realidade da indústria fonográfica, o esquema (legal ou ilegal) entre gravadoras e rádios era algo muito rentável.

Por fim, nota-se a propaganda do Baile da Pesada, do Big Boy e depois do Furacão 2000 - basicamente a peça de resistência da Mundial nos anos 70, até o seu desaparecimento, em 1977. O esquema dos bailes pelo subúrbio carioca e interior fluminense continuou, mas, com a morte do Big Boy, toda uma época desapareceu com ele.

Para tanto, basta comparar o vídeo acima com este. Outro broadcast do Show dos Bairros, dez anos depois.



Em 1981, a Mundial já havia perdido muito do seu brilho perante o público do segmento jovem, que ora crescera ou migrava progressivamente para a Frequência Modulada. Aquele tipo de programação também faria o mesmo percurso. Nesse novo contexto, nota-se que o Show dos Bairros já atendia a um segmento bem popular.

Isso se reflete tanto na programação musical, quanto na pauta de notícias, com a precípua finalidade de prestadora de serviços, e outro fator primordial, que é - como podemos "ouvir" na gravação, é o contato com o público. Agora, os ouvintes não são "citados" por seus respectivos bairros, mas agora falam no ar.

A sequência musical reflete essa mudança. A seleção vai do udigrúdi (Abba) sambão (Beth Carvalho, que fazia bastante sucesso naquele tempo) até trilha sonora das novelas da Globo ("Noturno", com Fagner). Aqui, também, nota-se a parada ligeiramente orientada pelos sucessos dos mais vendidos franqueados por lojas de discos do Rio: algo que hoje inexiste no rádio FM, o que dizer do AM?

Segue a propaganda massiva de bailões, contudo, não mais o funk americano dos finados tempos do Big Boy e Ademir, mas samba (fora a propaganda dos bailes de pré-Carnaval) e o funk romântico pós-discoteca, e que é, justamente, o que nós mais lembramos (o auge dos "melôs") - charm típico dos anos 80 e começo dos anos 90, quando a Mundial, tal qual conhecíamos, finalmente acabou.

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A contribuição pode ser pequena ainda (não se sabe o que é possível de se obter colaborativamente, a partir desses usuários), mas demonstra que, a partir desses rádio-escutas, é possível fazer uma base de dados de valor inestimável, não em termos de nostalgia - o que é válido, mas pela inefável contribuição desse material que, dia a dia, está a ser descoberto, para um maior aprofundamento dos estudos da história do rádio no Brasil.




Wednesday, January 21, 2015

Canções do Exílio *



Gonçalves Dias


Composto em 1843, na cidade de Coimbra, Portugal, o poema “Canção do Exílio” é hoje sinônimo de seu criador, o poeta maranhense Antônio de Gonçalves Dias (1823-1864). Seus versos se confundem com o “inconsciente coletivo” de nossa cultura e alguns deles aparecem na segunda parte do Hino Nacional. A importância deste célebre texto é seminal: não existe antologia escolar que não o tenha escolhido ou que não o cite, fato que demonstra o seu papel de referência dentro da tradição literária brasileira. É fruto típico do Romantismo da primeira fase, quando nossa literatura ainda engatinhava. O crítico Agripino Grieco disse: “ninguém lê os poetas, mas raros são os brasileiros que não conhecem a ‘Canção do Exílio’”.

Se o tempo transformou a “Canção do Exílio” num poema emblemático, o tempo cuidou de banalizá-lo pela insistência em sua repetição. Da mesma maneira, autores que vieram após Gonçalves Dias se puseram a recriá-lo ou a conceber sua própria versão do texto. Em 1860, Casimiro de Abreu, representante da segunda fase, também criou a sua canção. No século passado, tivemos Drummond (“Nova Canção do Exílio”), Oswald de Andrade (“Canção de Regresso à Pátria”), Cassiano Ricardo (“Ainda Irei a Portugal”), Murilo Mendes (“Canção do Exílio”), Vinícius de Moraes (“Não Seja Já”) e Torquato Neto (“Marginalia II”), entre outros.

Saindo um pouco da distante admiração ao poema, a “Canção do Exílio” representou a Gonçalves Dias um momento de profunda dor e nostalgia. Em 1838, o maranhense havia partido para Portugal, decidido a se matricular na Universidade de Coimbra. Estava há quase cinco anos distante do Brasil e quase adaptado à flora e à fauna européia. Quase, porque a distância começou a lhe corroer a alma. Certo dia, ao se reportar à balada Mignon, de Goethe, encontrou ali algo como “conheces o país das laranjeiras? Para lá quisera eu ir!”. Retornaria em 1846, ano em que publicaria seu poema em sua obra de estréia, Primeiros Cantos, publicado a partir do ano seguinte.

Sobre a “Canção do Exílio”, eis que, misturando saudade e nacionalismo — duas das características do Romantismo, estilo literário então vigente — de sua pena brotaram os seguintes versos:

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá

Nosso céu tem mais estrelas
Nossas várzeas têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida mais amores


Estabelecendo um paralelismo entre os versos, os dois primeiros compõem o primeiro quarteto, que retorna no terceiro quarteto, representando o tema principal. A sugestão geral do poema é estabelecer diferenças entre a terra natal e o lugar do desterro, tanto físicas (“aves”, “nossos bosques têm mais vida”) quanto psicológicas (“nossa vida mais amores”). Os quartetos se encerram com a repetição dos dois primeiros versos, como uma ladainha.

Em cismar, sozinho à noite,
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.


A canção se encaminha para o fim com dois sextetos que desenvolvem e reexpõem o material apresentado na primeira parte do poema:

Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá
Em cismar, sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá


E termina com a patética súplica:

Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para lá
Sem que desfrute dos primores
Que não encontro eu cá
Sem que inda aviste as palmeiras
Onde canta o sabiá


Note-se que o sentido de “exílio” é salientada pela repetição de versos-chaves, cuja sugestão é salientada tanto por versos-chaves quanto pelo formato do poema. Oriundo do primeiro Romantismo, Gonçalves Dias ainda mantinha certo sabor clássico em seus versos, que podem ser percebidos pelo modelo utilizado, comedido nos adjetivos, cuidadoso e emblemático nas imagens, aqui ele soube criar uma visão geral da idéia do desterro com um material poético breve porém marcante. Ou seja, ele é mais romântico na temática do que na forma. O seu texto reflete ainda o aproveitamento da disciplina clássica, diferente dos poetas do ultra-romantismo, que abusavam de imagens e da utilização de versos brancos e versificação diversa.

Há quem afirme que essa mesma contenção poética dos versos da “Canção do Exílio” tenha transformado o poema mais em um texto declamatório e de pretensa objetividade do que um instante de profunda meditação. Isso talvez explique a negligência que as pessoas costumam ter com relação à Gonçalves Dias, menos afeito ao ritmo dissoluto e apaixonado dos melhores momentos do Romantismo da segunda fase. Em última análise, à medida em que o texto foi elevado à estatura de um paradigma do Romantismo, a “canção” foi perdendo um pouco da sua aura original, fazendo com que o desavisado leitor não sinta o que o poeta buscou expressar, em sua totalidade.

Talvez quem soube recriar a tradição instaurada por Gonçalves Dias de forma magistral foi o compositor Chico Buarque de Holanda. Em 1967, ele compôs, em parceria com Tom Jobim a canção “Sabiá”, e que seria a campeã do III Festival da Canção, no ano seguinte. Aqui, a idéia de exílio, porém, tinha uma indisfarçável conotação política e Chico se refere a “uma sabiá” e a uma palmeira “que já não há”

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Para o meu lugar
Onde eu hei de ouvir
Cantar
Uma sabiá

Vou
Voltar
Sei que ainda vou
Voltar
Vou deitar à sombra
De uma Palmeira
Que já
Não há

Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites
Que eu não queria
E anunciar
O dia.


Porém, Gonçalves Dias, o rapsodo das saudades de sua terra natal, o eterno autor da “Canção do Exílio”, por incrível que pareça, teve um triste fim: como um Moisés, morreu sem chegar à sua Terra Prometida. Vindo da Europa, o navio Ville de Boulogne naufragou ao cruzar a costa brasileira, num 3 de novembro de 1864. O velho poeta, coberto de glórias como o Timbira, desapareceu sem pisar na terra das palmeiras.



* Texto publicado originalmente no extinto site Rabisco, há coisa de dez anos atrás.

Tuesday, January 20, 2015

A Rhapsody in Blue carioca



Tom Jobim


Verão de 1954. Billy Blanco pegou a condução no Centro e descia placidamente a Princesa Isabel quando, ao dobrar a esquina com a Avenida Atlântica, teve uma epifania. Como um trovão, veio {a sua mente os seguintes versos:

Rio de Janeiro, a montanha, o céu e o mar
Rio de Janeiro, que prá sempre eu hei de amar!


Ficou cantarolando os versos, como um mantra, a fim de não esquecer. Em desespero, acabou descendo do ônibus quadras adiante, já em Copacabana, e correu em busca de um telefone. Achou um, num pé sujo na República do Peru. Ligou imediatamente para Tom Jobim, seu recente parceiro musical em "Teresa da Praia" que, em julho daquele ano, seria sucesso na voz de Lúcio Alves e Dick Farney.

Quando Jobim atendeu, Billy pediu que ele decorasse os versos e anotasse a melodia. Com o bulício dentro do bar, temendo que Tom não o ouvisse direito, tapou o outro ouvido e ficou cantando aqueles mesmos versos, o mais alto que pôde:

Rio de Janeiro, a montanha, o céu e o mar
Rio de Janeiro, que prá sempre eu hei de amar!


- Anote aí, Tom, eu já estou indo para aí! - e bateu o telefone.

Na casa do compositor de "Garota de Ipanema", não muito longe dali, na Nascimento e Silva 107, Billy explicou sua epifania. Há anos que ele não realizava aquela percurso e, ao vislumbrar aquela cena vespertina a se descortinar diante de seus olhos, os versos explodiram em sua mente, e ele imaginou uma suíte histórica, um hino de louvor à então Capital Federal. O disco, intitulado Sinfonia do Rio de Janeiro, foi lançado Lançado no começo de 1955 - há sessenta anos atrás.

Tom Jobim pegou o mote como uma canção sobre a cidade. Porém, concebeu aquilo que seria a Sinfonia do Rio de Janeiro justamente como se fosse uma peça erudita, mas não como uma suíte instrumental. Seu modelo inspirador seria Gershwin, mas não o Gershwin de opereta, mas o da Rhapsody in Blue.

Assim como a peça do autor de "Porgy And Bess", Jobim imaginou, a partir da letra desenvolvida por Blanco, algo como se fosse um dia na vida de um carioca. Da Rhapsody in Blue, ele teve a ideia do tema cardinal - no caso da versão "brasileira", o motivo criado por Billy dentro do ônibus. Tanto cantado quanto em versão instrumental, ele percorre todas as partes da "sinfonia". Porém, ao contrário de Gershwin, a pretensão de Jobim é clássica, mas a intenção, não.

Tom e Billy não levaram muito tempo na composição da "sinfonia". Contudo, do papel para o disco, a composição passou por um parto complicadíssimo. Ambos tinham um bom contrato com a gravadora deles, a Sinter. O problema era o formato da música quem questão. Não havia outra forma de lançar aquilo em outro jeito que não fosse em long-play (ainda antes do vinil, naquelas priscas eras, o LP era um disco de 10 polegadas). No entanto, em 1954, o LP ainda engatinhava no Brasil: poucos tinham aparelhos na rotação adequada e, além disso, ainda era uma tecnologia pouco comercial.

Tanto que, na sua maioria, para lançamentos em LP, as gravadoras faziam uso apenas de sucessos de grandes astistas, como se os discos fossem seleções de sucessos de 78 rotações em formato long-playing. Por conta disso, seria um disparate qualquer selo, em 1954, apostar nesse formato para lançar um disco "conceitual" (?) assinado por dois compositores, e com pouco ou nenhum apelo comercial.

Paulo Serrano, diretor da Sinter, gostou da sinfonia, mas deixou-a na gaveta por meses a fio, até que esquecesse por completo daqueles pentagramas. Quem resolveu exumá-la, em fins de 54, foi Braguinha. Diretor artístico da Continental, ele ouviu partes da sinfonia através de Jobim (que, nessa época, era produtor na sua gravadora), e teve interesse em obter as partituras.

Entusiasmado com a possibilidade de lançar a sinfonia de Tom em disco, negociou os direitos da peça com Serrano. Este daria os originais à Continental, desde que João de Barro lhe "emprestasse" Lúcio Alves para a Sinter. O negócio foi fechado e, em dezembro daquele ano, começaram os ensaios e a gravaçãopara a Sinfonia do Rio de Janeiro.

A cartada de Braguinha era montar o disco usando o cast da gravadora: Lúcio Alves, Dick Farney, os Cariocas, Gilberto Milfont, Nora Ney, e grande elenco. A estimativa era que, com eles e mais os arranjos de Radamés Gnattali, o disco iria emplacar. Era o duelo da intenção contra a pretensão.

A pretensão fez com que a primeira parte, "A Montanha, o Céu e o Mar" extrapolasse o tamanho de um lado de disco de 78 r.p.m. Ao longo de quinze minutos, a faixa, que abre com o leitmotiv de Billy Blanco, em coro ("hino ao sol"), interpretado em pianíssimo por Dick Farney. Em seguida, a música sugere uma marcha que é o day in a life no Centro do Rio ("coisas do dia"), Gilberto Milfont canta o trecho "Matei-me no Trabalho", até que a música vai ganhando fumos de batucada, com Dóris Monteiro, Elizeth Cardoso e Emilinha Borba ("zona sul") e, em tempo de samba-canção ("Arpoador"), sugere uma esticada ao fim de tarde para os lados de Copacabana, já em tom idílico. O tema inicial retorna, de forma ligeiramente pastoral, é retomado por Dick Farney (noites no Rio"), depois por Nora Ney ("O Morro").

Prá não ficar na Zona Sul, a sinfonia sobe e desce o morro (Gilberto Milfont), até o finale, com Dick Farney e o retorno do Hino ao Sol, até a coda, em grande estilo. As demais faixas do disco, são versçoes instrumentais de temas recorrentes (o leitmotiv divertidamente percorre todas as faixas restantes, também) na primeira parte da Sinfonia, todos de Tom Jobim, com o Quinteto Continental (Chiquinho no acordeão, Zé Menezes na guitarra, Vidal no contrabaixo, Luciano Perrone na percussão e Gnattali no piano).

O disco, como era de se esperar, era tão bom que foi um fracasso comercial. Pior do que isso, nenhuma das canções fez sucesso. Nem o grande sucesso de Dick e Lúcio com "Teresa da Praia" conseguiu catapultar o disco.

Já em formato vinil, o disco foi relançado algumas vezes. Porém, ele está fora de catálogo há anos e permaneceria no ostracismo musical por décadas a fio, até ser relembrado no livro Chega de Saudade, de Ruy Castro, no começo dos anos 90. Só seria resgatado do completo esquecimento com o advento da Internet. A primeira parte da Sinfonia, por exemplo, pode ser acessada no Youtube:






Friday, January 16, 2015

Vamos voltar à Pilantragem?



Wilson Simonal

Confesso que li o livro-tese Simonal Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, do historiador Gustavo Alonso, e fiquei assoberbado com o resultado do trabalho empreendido por ele.

Mais do que uma biografia, o que a obra não é, o que me surpreendeu foi a coragem do autor em questionar o mito da resistência ao regime militar brasileiro nos anos 70. No caso específico de Wilson Simonal, como ele se tornou um bode expiatório de uma esquerda que, não podendo contestar frontalmente o governo, optou por bater em seus baluartes.

Sem querer vitimizar o cantor, Alonso contextualiza todo o panorama musical da época e demonstra como o tempo serviu para decantar uma imagem de resistência cultural ao regime que, no fim das contas, serviu para criar arquétipos de heróis e vilões, não se importando com suas consequências.

Também mostra que, não apenas Simonal mas, todo e qualquer artista que não estivese em qualquer trincheira de "resistência" era taxado de "colaboracionista". Muito pagaram na época simplesmente por não serem engajados - ou por serem castiçamente nacionalistas (eis o pecado mortal) naqueles anos de repressão.

Alonso com efeito tem influência de Paulo César Araújo, um dos primeiros autores a tentar reabilitar toda a produção musical do período que, com o tempo, ao não ser alinhado ao pensamento de resistência, foi rotulada de desengajada, alienada, como se não tivesse qualquer valor estético. No caso de Araújo, ele ressalta a forma como a música chamada de "brega" foi rotulada de produção inferior e consequentemente marginalizada do panteão da MPB.

Alonso pega o mote e, mesmo que não desenvolva a fundo, por sua vez, quer reabilitar a "pilantragem", movimento deflagrado por Simonal, a partir dos seus discos "Alegria, Alegria", nos anos 60. Pode parecer um disparate, mas o debate é interessante. A questão é que o autor tenta entender por que o Tropicalismo ganhou fumos de arte conceitual e a Pilantragem não.

Em depoimentos, como do próprio Simonal, à época, ele entende tudo como "a mesma coisa". Outros, como Sérgio Cabral (citado no livro), acha que a Pilantragem é uma grande besteira. Fato é que, desde o começo, a tropicália foi assessorada por uma expertise sem precedentes - muito antes que alguém decidisse levar esse tipo de assunto ao status de tese - como os Campos Brothers ou Décio Pignatari. Eles é que popularizariam a frase "linha evolutiva da MPB" sendo o Tropicalismo a síntese da problemática da música nativa em tempos de Indústria Cultural.

Creio que, além de Simonal Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga, a análise da Pilantragem renderia mais um livro, muito embora não creia que a tese de Alonso seja aceita. Acho, ao contrário do Cabral, que a Pilantragem foi um episódio estético-musical importante nos anos 60, mas não penso que tropicália e pilantragem sejam a mesma coisa, muito embora ache que, da maneira sintética, a Pilantragem soube se comunicar com o público de forma excepcional.

Aliás, anes de mais nada, Simonal era um grande entretainer, como jamais houve e jamais existirá, em todos os tempos. Mas como movimento, mesmo com toda a má vontade que existe com relação à qualquer coisa que envolvesse Carlos Imperial (nesse sentido, ele será eternamente subestimado), se existe um cérebro por detrás disos, ele é o seu criador.

O que difere os dois movimentos é que o Tropicalismo se valia totalmente pelo carnavalesco, pela paródia, pela intertextualidade, isso é o que atraiu Pignatari e companhia. A Pilantragem era um fenômeno de massa. A tropicália certamente queria deglutir ou parafrasear Simonal mas, pelo seu caráter paródico, ela estivesse mais na linha da metalinguística da pororoca cultural da época do que um gênero musical comercialmente consolidado, como a Pilantragem.

No fim, a Tropicália parece que foi banida por carnavalizar o elemento político (a estampa de Hélio Oticica na Boate Sucata, em 68) e a Pilantragem, por parte de Simonal, ao tentar defender esse mesmo elemento político (canções como "Brasil, eu fico" ou "País Tropical"). Restou aos tropicalistas o exílio político e à Simonal, a crítica das "patrulhas" e o exílio musical.

Simonal acertou quando, em entrevista ao Pasquim, em 69, disse que a Pilantragem estava próxima da produção de gente como Chris Montez e Herb Alpert. Isso numa época em que ou se era contra ou a favor, ou se era pelo imperialismo da guitarra ou pelo nativismo da queixada de burro, um outro entretainer como Sérgio Mendes abandonara o hard bop da Bossa do tempo do Beco das Garrafas para fazer música brasileira prá gringo ouvir. Se formos analisar, não como movimento estético, mas como fenômeno musical, a Pilantragem está no Brasil 66. E, de forma sintomática, não era gratuito que Sérgio Mendes fosse artista da A&M, do próprio Herb Alpert.

Simonal tinha restrições quanto à americanização das crooners do Brasil 66. Porém, o som de ambos se complementa. Simonal potencialmente era um artista de projeção internacional. Poderia ter feito com Mendes nos Estados Unidos o que fez no Maracanazinho. O problema, provavelmente,foi de foco.

A fórmula era simples: pegar toda a modernidade do samba de Bossa Nova e misturar com pop: transformar Day Tripper em sambalanço e vender milhões. Porém, um pop brasileiro com um resultado original, ao contrário do que Imperial fazia com a Jovem Guarda. "Vem Quente que estou Fervendo" é pilantragem. "O Bom" era pilantragem. Só que, como pastiche de iê iê iê, parecia mais do mesmo. Como pilantragem (não apenas por conta da temática, mas nos arranjos a la Cesar Camargo Mariano) soaria como algo "moderno".

Inclusive, apesar dos ruy castros, é possível entender a Pilantragem como o movimento que Gustavo Alonso entende, nem que seja para defender gente como Simonal, Erlon Chaves ou Sergio Mendes da acusação de estelionato musical contra o inefável cânone da Bossa Nova.