Tuesday, December 23, 2014

Outros Dezembros




A Rua da Praia



Eu nunca tinha ido na Fnac aqui antes. Me disseram que era uma livraria. Eu tinha que comprar presente e me vi obrigado a entrar num shopping em véspera de Natal. Pois eu fui lá segunda e fiquei impressionado; achei que fosse uma livraria, como me mentiram, mas me senti no Lojão Oba-Oba, nos altos do Mercado Público.

Loja ruim, só vende bugigangas eletrônicas, livros em pilhas, cestas, gente trêfega transitando feito formigas hipsters doidaças ligadas em benzedrina, um lugar cheiro de gente que te desumaniza, desumaniza os clientes, desumaniza os funcionários, mas ninguém liga. Essa sádica resilência resume bem o espírito de Natal, um altruísmo meio idiota em homenagear aqueles que nem merecem tanto (isso é outra história, prefiro deixar as indiretas para o Facebook, que é o lugar mais apropriado). Enfim, achei uma bela droga.

Mas isso me provocou um efeito curioso. O fantasma do Natal passado roçou minha fronte. De repente, fui raptado à outros dezembros. Me lembrou do tempo das Lojas Americanas da Andradas lá pelos anos 80. Naquele tempo, as Americanas eram, com efeito, o paraíso das gadosas. Minha avó usava muito esse termo, que achava tratar-se de um divertido eufemismo, mais do que um arcaísmo quase obsceno em seu uso e costume.

Naquelas priscas eras, não havia venda pela Internet, Então, essas lojas de departamentos eram gigantescas. A melhor devia ser a que tivesse tudo, e as Lojas Americanas se propuseram a tal artes de Marcúrio, tanto que ela era a maior da cidade, com quatro andares. Você não ia no Centro senão para ir nas Americanas.

O legal das Americanas naquele tempo era isso, um atacadão de quatro andares, com uma baita lancheria nos fundos do piso da Andrade Neves. Isso no o tempo em que o chic no footing da Rua da Praia era conhecer a primeira escada rolante da cidade, imagina, a gente ia nas Americanas para provar aquele sundae proustiano de três andares. Olhava todos os produtos, andava por todos os corredores da loja, mas só tinha o dinheiro contado do sorvete. A Americana nova (como a gente chamava, já que tinha a velha, quase na esquina da Borges) era o frenesi de andar na Rua da Praia no final dos 70 e pelos anos 80 afora.

O calçadão já não tinha aquela poesia de aquarela da commedia del arte das crônicas do Nilo Ruschel, mas reservava lugar para seus derradeiros tipos folclóricos, como o ex-bancário conhecido pelo nome de "gurizada medonha", que era o seu pregão ao vender bilhetes de loteria. Não havia mais nada de bonito no calçadão, mas não era insuportável como hoje, onde metade da flanêrie da esquina da Uruguai se resume a panfleteiros (e a intrépida turma do shake emagrecedor instantãneo).

Porto Alegre era uma cidade provinciana. A rigor todas são. O problema é quando são e querem bancar o status de cosmopolitas, coisa que a capital do estado aqui não é e nunca vai ser. Por exemplo. O programa do porto-alegrense nos 80 era 1) fazer piquenique para ver os aviões decolarem e pousarem no Salgado Filho velho; 2) andar na escada rolante das Lojas Americanas.

A história recente deste triste burgo açoriano pode ser resumido em antes da escada rolante das Lojas Americanas e depois da escada rolante das Lojas Americanas. Aquilo foi um acontecimento socio-antropológico-cultural na vida do habitante da capital dos gaúchos. Era um frenesi, a Era do jazz aplicado ao capitalismo de consumo onde as flappers eram, como dizia minha avó, as gadosas. Ou, empregadinhas, como se diz, de forma corrente (sem preconceitos, embora houvesse 100% de preconceito nisso).

Não havia shopping. A vida era na calçada. Hoje existe um movimento de "ocupação" de espaços urbanos, provavelmente por conta de um atavismo que assiste a cada cidadão, justamente porque nós esvaziamos a calçada. Parece bobagem, mas (nem filosofávamos muito nisso, tão distraídos que estávamos em nossa triste juventude) Juntava a grana da mesada (semanada, no tempo do overnight), mas a grande aventura era o Centro. Chegar até lá só para provar o sundae do Rib's no Largo dos Medeiros (ainda diz isso? Ninguém mais usa esse nome, embora seja oficial) ou das Americanas. A desculpa era sempre alguma fita de cinema (também de calçada (não rende outro post porque é assunto batido, desculpem)).

O porém e que o Rib's (que hoje só existe na memória e na marca de mostarda do tipo "gás lacrimogêneo") da Andradas era povão. Era prá A La Minuta. Não era fast-food como são os fast-foods. Acabou sendo distorcido como um restaurante popular chic, que você almoçava apressado comendo numa mesinha embutida, com a cara virada para a parede.

E não tinha shopping, o Iguatemi é de 82. Havia o João Pessoa, mas ninguém nunca levou ele a sério. O point da azaração antes disso, por incrível que pareça, era a Galeria Malcon, Imagina. Afinal, ficava na parte (um pouco) mais elegante da Andradas, que era entre a Marechal e a Dr. Flores. E tinha a Krahe, naquela altura da Andradas (perto da Ajax) que também tinha uma lanchonete dentro. A moda era loja com snack bar dentro. Aliás, foi concebido como uma mímese de um snack ianque, mesmo. Parecia original e exótico naquelas priscas eras, algo que hoje está arraigado no modelo instituído de lanchonete, inspirada nas suas respectivas matrizes estrangeiras.

A ideia era excelente. Até porque não era só eu que frequentava lojas só com o dinheiro contado do sorvete. Uma lanchonete era a desculpa para chamar clientes. A Renner da Dr. Flores também tinha uma lanchonete no subsolo (antes do incêndio tinha um restaurante no último andar, também). Hoje, se você reparar, isso não faria o menor sentido.

Naquele tempo, estávamos longe do advento dos fast foods na cidade. Alguém chegava de fora e dizia: "bicho, eu fui no Mc Donald's!". Alguém que dissesse que esteve no Rio ou São Paulo e contasse que esteve num Mc Donald's era automaticamente guindado à estatura de uma celebridade, sendo capaz, inclusive, de influenciar opiniões de grupos sociais diversos, principalmente os mais provincianos (brincadeira).

Lembra da Sloper? Só tinha coisa de mulher. Minha mãe me levava amarrado, eu era piá, imagine, uma criança numa loja que não vende brinquedo. Loja de departamentos sem seção de brinquedos é um saco (convenhamos). Quantos filhos foram torturados por suas respectivas mães ao terem que acompanhá-las em suas incursões pelas dependências da Sloper? Ficar horas lá dentro emburrados enquanto elas ficavam experimentando roupa ou maquiagem? Ou aguentá-las em estado catatônico diante da vitrina da Sloper?

Voltando, o chic era ir no Rib's da Indepê, lá na praça Júlio de Castilhos, ou no Joe's, na Ramiro, mas que era e sempre foi um snack meio careiro. O Rib's do Moinhos era mais para frequentar aos finais de semana, quando o titio ou o papai nos levava para passear de carro pela cidade. A gente sempre terminava o domingo no Rib's da praça Júlio. Inclusive, ninguém mais chama a Independência de Indepê, isso é do tempo da Cantina, da Tia Dulce e do Butikin, da Mariam Makeba, do Rui Sommer, do Laurício e do Scala na zaga do Internacional (a ser desenvolvido, fica para o próximo post). Este já está ficando saudosista e, por tanto, ligeiramente chato.