Friday, November 21, 2014

Jornalismo Meme


Portal classificou rapaz da foto de "chinês maluco"


Não sei se vocês têm reparado mas, nos últimos tempos, com a consolidação do jornalismo na internet como plataforma vital para o futuro da área, a web acabou transformando a matéria-prima de uma publicação, que é a notícia, em um bem de consumo esdrúxulo e de informação zero.

É o jornaiismo de portal, mimetizado pela imprensa, cujo mote é o fato insólito, o fait-divers. A notícia que apela para as emoções do leitor. Sites como o G1 têm se especializado em encher a timeline de quem tem a dignidade de segui-los em notícias do tipo "Cachorro adota ninhada de gatos". Ou "Gato salva criança de ataque de pitbull". Ou "Casal em lua-de-mel é surpreendido por 'visita' de guepardo em carro".

A nota sensacionalista do fait-divers sempre foi pauta. Mas com a imprensa pela web e a facilidade de atingir cada vez mais leitores de forma instantânea fez com que se perdesse qualquer critério de informação útil. É uma tendência: é a pauta típica da nova função no jornalismo, o produtor de conteúdo.

Ele não faz nada mais do que uma clipagem de notícias (com ou sem gilete-press, já que muitos jornais hoje preferem contratar agências do que contratar profissionais). O objetivo é viralizar a informação viral. É o jornalismo meme.

O caso mais recente do jornalismo meme foi a insólita proposta do jovem chinês que pediu a mão da namorada em casamento - proposta que foi recusada, mesmo com a oferta de 99 telefones celulares. Ao longo do dia 11 deste mês, quase toda a imprensa brasileira deu destaque para algo que é mais comum do que parece.

Todo mundo leva fora na vida, mas o caso da China foi manchete em todos os portais, já que a filosofia do jornalismo meme é simples: não podemos perder cliques no Facebook para a concorrência. No fim, todos publicaram a mesma nota, com a mesma foto, e ninguém soube apurar todo o lead da notícia. Até hoje, ninguém soube me dizer qual é o nome do casal.

Matéria publicada pelo R7 chamou o rapaz da proposta de "chinês maluco" no título. Até entendo que 99 telefones não é lá um dote negócio muito romântico. Mas lembrei-me do Manual de Redação (da Folha?) onde, com uma certa dose de humor, o texto falava para evitarmos fazer qualquer referência a habitantes de outros países de forma pejorativa (e todos em geral, ainda mais num título). Mas quem lê manuais de redação hoje em dia?

Se vocês procurarem no Google, vão encontrar várias páginas dando destaque ao caso do malfadado e intrépido rapaz. Todas as informações vieram das redes socais, ninguém apurou nada (nem poderia e nem deveria, afinal, é notícia hoje é diversão) Mas todos publicaram. Como se chama isso?

Jornalismo meme. Se viraliza, é bom. Se é bom, viraliza o jornal.

Hoje e de agora em diante, não existe mais lugar para um repórter como o Carlos Wagner, ou José Hamilton Ribeiro, por exemplo. Um executivo de empresa vai explicar: jornalismo investigativo é caro e não dá retorno. Um repórter de verdade não publicaria uma matéria baseada numa foto tirada da internet. Hoje, ao ler notícia de portal, eu estou trocando faisão por mortadela.

Lembrei do Wagner porque, no mesmo dia que soube dessa história, descobri que o repórter "puta velha" de tantos anos militando por aí, se aposentou.

Os dois fatos não tem muita relação, mas parece sintomático ver que, em seu desespero, a imprensa está demitindo a torto e a direito prá salvar o barco, desmantelando sucursais pelo país afora e livrando-se do seu capital cultural, os velhos repórteres e está municiando "produtores de conteúdo" que ficam o dia inteiro na frente do computador replicando informação, um tipo e uma qualidade de informação. que é a água da salsicha da imprensa.



Wednesday, November 19, 2014

Porto Alegre Contra o Agente do IBGE*



Existe um pequeníssimo beco na esquina da Protásio Alves com o muro do Sesc Campestre, na altura do bairro Bom Jesus com Jardim Carvalho, em Porto Alegre. A ruazinha, de chão batido, vai se afunilando, afunilando, afunilando, afunilando, afunilando, afunilando à medida em que avançamos e termina num emaranhado de casas e um varal com um repertório de roupas secando ao sol, franqueando (desculpem o excesso de gerúndios) uma nota ligeiramente pastoral ao ambiente. O logradouro parece não ter saída; porém, à esquerda de quem adentra, há uma pequena servidão, que passa por um terreno baldio – uma charneca.

Mais adiante, chegamos à rua Souza Lobo, já na Vila Jardim. Ao pegarmos essa via, à esquerda, descobrimos um acesso à direita, quase um símile da servidão anterior, e que nos conduz até outro beco longo que, cerca de duas quadras depois, na frente do posto de saúde do bairro, vira uma ampla e urbanizada avenida.

Com o auxílio de informações de moradores do local – um assentamento urbano – descobrimos que tanto o beco da esquina da Protásio quanto o acesso, que termina no posto são, na verdade, a mesma rua: Ernesto Pellanda, cujo CEP é 91320-220.
Para alguém acostumado a singrar pelas regiões urbanizadas da cidade, andar por um assentamento urbano desses pode parecer um verdadeiro safári; no entanto, para um agente de pesquisas como os temporários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, esta é uma rotina diária.

— A gente não vai precisar usar esse colete, né?

Um rapaz do meu lado, na sala da monitoria se assustou ao ver a secretária descer do almoxarifado sorridente com uma sacola cheia de coletes azuis, como aqueles que os agentes usavam no último Censo, o de 2010. A pergunta valia para mim: achei que, pelo que haviam me dito, nós íamos fazer listagem de endereços. Pensei instantaneamente no tele-listas.

Claro. Eu não sabia do que se tratava mas, na minha vã inocência, pensava que era um serviço meramente burocrático como, por exemplo, confirmar endereços por computador e telefone. Ledo engano. O que nós iríamos fazer naquele primeiro dia, e durante os próximos dois anos, era trabalho de campo.

A pergunta do meu novo colega abria uma janela ao infinito. Quando fazemos a prova do IBGE, não temos a mínima ideia do trabalho a ser feito. Nossa chefe, que desceu do segundo andar para falar com o novo grupo, que passava os olhos no manual, de cara jogou um balde de água fria: “vocês tem uma imagem errada do serviço público. Vocês não vão pendurar o paletó na cadeira, mas vão bater perna o dia todo”.

A conversa com a nossa nova chefe me lembrou o começo do Papillion, quando os condenados ouvem o discurso do chefe da milícia na Ilha do Diabo. Só faltou a guilhotina com a melancia (melancia?). Nem tanto. O fato é que, quem não é acostumado, têm um pouco de resistência ou vergonha de andar pela rua de uniforme. Eu não via nada de mais, pois já havia trabalhado como auxiliar de cozinha no meu emprego anterior. Mas houve muita gente contra à nova indumentária.

O trabalho de listagem era simples: trata-se de recontar e confirmar um catálogo de endereços dentro de uma circunscrição geográfica. Um mapa em escala reduzida nos é dado. Este mapa representa um setor censitário: uma pequena área que é de interesse de pesquisa. Assim, a área é geograficamente delimitada, e pode ter desde tamanho de uma quadra, até a dimensão equivalente a um bairro.

Com o mapa vem uma lista de endereços, que deve ser conferida e confirmada à risca de ponta a ponta, segundo uma ordem por faces de quadras. O agente percorre um percurso já pronto; os endereços são confirmados quadra a quadra, sempre em sentido horário. Mas é claro que nem sempre uma quadra faz jus ao nome.

Num setor chamado 10 (urbanizado), é como registrar os endereços de uma região como a da Cidade Baixa, por exemplo. Eu parto de um ponto inicial, numa esquina de quadra, e vou listando o número de domicílios, prédio a prédio, indicando a especialidade de cada um — se é um domicílio habitado, se é casa, prédio de apartamentos, comércio, etc.

O que deve ser levado em consideração são os domicílios ocupados: apenas estes entram nas pesquisas, como a Pesquisa de Emprego (PME), que sai na imprensa em geral todo fim de mês.

Descobrimos que esse trabalho preliminar é árduo. Porém, ele tem justamente o objetivo de facilitar o principal, já na fase de pesquisa.

Portanto, temos que marcar quando determinado imóvel é vago, de uso ocasional, demolido, fundido ou transformado em estabelecimento: uma falha de registro pode redundar numa gigantesca falha estatística, prejudicando a amostragem. Para isso, só vale o domicílio ocupado. Checamos nome do morador, telefone (se possível). Terminado todo o setor, tudo é digitalizado e mandado para o departamento de informática.
Logo depois que a listagem termina, a sede nos retorna o material com a indicação dos domicílios selecionados para a pesquisa domiciliar. E aqui que começa a corrida do ouro.

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Eu recebi o setor da Ernesto Pellanda, na Vila Jardim. Olhei o mapa e não entendi bulhufas (não havia feito a listagem dele).
Prá começar: nunca tinha andado por Porto Alegre. Digo: tive que rever meus conceitos a respeito de andar pela cidade. Se você se acha um conhecedor de sua cidade, precisa trabalhar de agente de pesquisa. Além de ser mandado para os lugares mais inóspitos e exóticos possíveis, a gente acaba enxergando a realidade urbana com olhos curiosos, de turista.

Em segundo lugar, não conhecia aquele bairro. Em terceiro lugar, descobri que existe uma outra especialidade de setor, o 11, chamado “subnormal”.

Ou seja, assentamento urbano. O “onze” era o caos. Quadras disformes, área com características de rural — como Belém Velho ou Lajeado, ou invasões em bairros afastados, como Mário Quintana ou a Lomba do Pinheiro (que varia do normal para o subnormal).
De repente, a cidade vira um mundo e você tem que decifrá-lo, cobrir todas as distâncias. Cada novo setor é um lugar diferente, com gente diferente.

Como era de se esperar, no começo eu estava mais perdido que carteiro. Avistei inclusive um passando por mim. Pedi informações. Me disse que havia sido admitido no último concurso, e também estava perdido. Dois neófitos numa tarde de outono. Era como num safári. Eu morava em Porto Alegre e não conhecia Porto Alegre.

Estava em território estranho, no meio de casas irregulares, ruelas insuspeitas de chão batido, gente coabitando domicílios de forma surpreendente: dez a quinze pessoas improvisadas em barracões. Eu tinha que, com a listagem, achar determinada casa escolhida para a pesquisa.

Por mais ordenada que ela fosse, quase nunca batia com a realidade de campo. Um agente sozinho, sem mapa, está mais perdido que cachorro que caiu de caminhão de mudança.

Descobri que aquele amontoado de construções na Ernesto Pellanda surgiram logo depois da inauguração do Sesc, há uns trinta anos atrás. A área estava em vias de urbanização, e aquele trecho foi todo invadido. Aquela pequena servidão surgiu ao natural, para que os moradores da parte de baixo da rua não tivessem que se deslocar até a Saturnino de Brito para pegar ônibus, por exemplo.

Pego esse exemplo porque, em setores do tipo subnormal são muitos em cidades como Porto Alegre.

O porto-alegrense está muito acostumado a olhar para o Centro, para o rio. A cidade que existe às suas costas, além dos morros, é quase uma abstração. Conhecer a cidade sob essa nova ótica é quase como começar do zero.

O problema é que, dentro do setor, há um rodízio de casas selecionadas para a pesquisa sazonal. Findo o período, outras daquela mesma área entram nela. Os domicílios escolhidos são fruto de uma seleção aleatória, porquanto não é possível escolher nenhuma casa; do contrário, estaríamos induzindo a pesquisa.

É importante salientar isso porque, ao contrário do que a maioria da população pensa, o IBGE não faz apenas o Censo e existe uma metodologia a ser observada, um modo de fazer por trás daquele agente de colete que aparece de repente batendo palmas na casa das pessoas. Para eles somos apenas mais um na paisagem deles: agente de pesquisa, agente de saúde, pedinte, gás.
Já nessa altura, descubro que o trabalho é difícil, muito difícil. Mas tenho que agarrar com as unhas. Desistir, jamais. A vida tá difícil sem emprego.

Putz! O mapa não bate com a realidade de campo. As casas de favela não têm numeração ordenada. Ou não têm. Ou tem até três números diferentes: do departamento de água, da energia elétrica e a da Prefeitura. Ou então, no caso de invasões de áreas particulares, como a Vila Jardim Marabá, no Teresópolis, todas as casas — umas quatrocentas — pertencem a um mesmo número. Pobre daquele carteiro...

Mais: uma favela pode ter até mais de vinte quadras numa área ampla e de terreno irregular, como no Pinheiro. Ou, pior: o beco que você procura, na verdade, é uma grade de ferro, que dá para um acesso onde só passa uma pessoa, e que dá numa colônia de papeleiros, onde as casas, improvisadas num terreno exíguo, podem, daqui a uma semana, estar em cinzas. Ou lavadas por uma enxurrada, como eu vi, certa feita, numa manhã de chuva na Vila dos Herdeiros.

Tive que aprender meio que na marra a entender todas essas contingências do trabalho de campo em áreas irregulares: interpretar o mapa corretamente, conhecer terreno, falar com gente de posto de saúde, de associação de bairro, traficantes (até santas senhoras, que jamais teriam caras de “traficantes”, mas que não estavam com uma sacolinha azul na calçada fazendo trottoir à toa). Enfim, todo um trabalho de diplomacia para que seja possível realizar a pesquisa nesse tipo de região da cidade.

Claro que nem sempre isso dava certo. O mapa podia atrapalhar, ao invés de ajudar. As pessoas podiam se recusar a dar entrevistas – e isso é muito comum. Porém, mais comum em bairros nobres, como Petrópolis, Bela Vista e Moinhos de Vento.

Como a pesquisa é rotativa, nós recebemos um setor por semana. Hoje eu posso estar cobrindo uma parte de São João, semana que vem, na Vila Minuano, no Sarandi, na outra no Cristal e, na última, pegar a (putz!) Cidade Baixa.

Cidade Baixa é bom só prá quem mora perto ou prá quem gosta de cerveja. Eu morava perto e não queria fazer de jeito nenhum. Centro também. O problema é que, com o tempo, a gente pega o perfil do morador. Por incrível que pareça, o pesadelo não muda. Muda a lista de entrevistados, mas eles são todos iguais. O perfil é sempre o mesmo.

O que existe é a exceção para fazer a regra: alguém que te recebe com tapete vermelho, cafezinho (uma senhorinha, lá nos prédios antigos do IAPI, nos jogou a chave lá do terceiro andar)

Sem generalizações. Contudo, o pessoal desses bairros nobres não gostam de dar informações. Às vezes com efeito eles têm consciência do trabalho do agente de pesquisas de um órgão do governo federal.

Mas têm medo de dar informações como trabalho e renda — principalmente renda. Muito me diziam: “ah, eu já faço o Imposto de Renda”, ou “eu não sei se vocês vão cruzar dados com os da Fazenda para saber se eu estou declarando minha renda corretamente”. Ou “vocês já sabem tudo sobre mim”? E não passavam a informação. Eu tinha que fazer relatório. Aí é com a supervisão;

Às vezes, o morador desconfiava. Ligava, não acreditava. Então aparecia do nada na agência. O quê? O IBGE não faz só o Censo? Essa pesquisa existe, mesmo? Ou ligava e marcava de fazer na sede. E a gente ia pruma salinha, oferecia cafezinho, água, fazia sala, tudo.

Esse é um tabu da pesquisa. Fica-se de mãos atadas, já que o a agente é temporário, de até dois anos (ou menos, prá quem desiste ou “é desistido”). Tabu porque a população em geral, ilustrada ou não, e eu descobri que isso independe de status quo, desconhece o trabalho de estatística do governo.

E, vamos e venhamos: claro que, em última análise, eles não têm culpa de não conhecerem o grau de relevância de prestarem informações de cunho estatístico. Não sabem que são esses dados que permitem a realização de políticas sociais — como a construção de um posto de saúde ou uma escola.

Para a maioria da população, isso é conversa para boi dormir. Ou politizam e ideologizam a questão. O máximo que eu podia fazer era, dentro do meu limite, já que não éramos versados em economia, saber convencer cada um da importância do trabalho, que eu sei que é chato, que irritante, que é intrusivo.

Ainda mais num bairro como a supracitada Cidade Baixa, por exemplo. Ali, muita gente mora sozinha, trabalha longe e só chega em casa à noite. Às vezes, esses moradores têm vida noturna; se moram sozinhas, nem sempre param em casa, e viajam ou dedicam o fim-de-semana ao lazer.

Para um agente de pesquisa, em bairro nobre não é como em favela. No Moinhos de Vento, o dia é inútil. Só encontramos em casa a empregada ou o cachorrinho. O que podemos fazer é deixar recado. Na maioria das vezes, não se obtém retorno nenhum. Quando achamos o morador, depois de ficar plantado na frente da casa o dia todo, ele nos diz: “recebei teu recado, guri, ia te ligar, e esqueci”.

Certa vez, me caiu fazer entrevistas num lugar difícil: a Bela Vista. Fui bater numa apartamento. A senhora não estava. Fiquei rondando a manhã toda, e nada. De tarde, a mesma coisa. Voltei no dia seguinte, e nada. De repente, sai uma senhora:

- Olá, procurando alguém?

- A dona do 302.

- Hum, acho que ela trabalha o dia todo, ela tem um comércio no centro - me explicou. - Acho que tu só pega ela em casa de noite. Aliás, a maioria do pessoal aqui do prédio tu só pega eles de noite, mesmo. De dia, tá todo mundo trabalhando.

Não voltei mais de dia ali. Fui realizando entrevistas em outros locais, mas voltei de noite, lá pelas oito. Aí havia um porteiro. Perguntei:

- A dona do 302?

- Não está.

- Será que ela demora muito? - perguntei, já em desalento.

- Creio que sim. Ela acabou de sair com o cachorrinho.

Cinco minutos depois, aparece numa senhora baixinha, de meia idade, loira, de cabelos curtos e óculos retrô, sendo conduzida por um poodle em surto, como se tentasse se desvencilhar da coleira, latindo para tudo e para todos.

Fiz a entrevista na calçada, mesmo. Ela disse que tinha uma loja. Eu: "aham". Ela viu o meu colete e disse: "você é do Ibge? Minha loja fica do lado de uma agência do Ibge na Duque de Caxias. Eu: "Hã???". Ela: "sim, minha loja fica do lado daquela agência ali da Duque, a chefe de vocês sempre vai na minha loja". Não pude conter o espanto.

Eu passei a semana atrás dela na casa dela e ela estava o tempo todo do lado do Ibge. Depois, no mês seguinte, eu falava para os outros, que iriam dar prosseguimento à pesquisa: "Ela mora na Silva Jardim, mas você escolhe ou fica o dia todo lá no portão e vai aqui do lado e entrevista ela em 10 minutos...". Ela dizia: "eu vejo vocês todo dia entrando e saindo do prédio com aquele colete azul".

Tudo ficava bem quando acabava bem. Contudo, ma vez, na Santa Cecília, faltou um domicílio da lista num edifício. Era uma família de três pessoas — pai, mãe e filha. A matriarca estava em casa, mas tinha receio de me receber. Fiquei fazendo um meio-campo com o porteiro (muita gente fina e já me conhecia de outras passadas por ali) até que ela decidiu dar-me uma chance.

Ela me disse que ligou antes para a filha, e ela a proibiu de me deixar entrar. Falou mais alto o seu coração materno. Minutos depois, entre em casa a moça. Enfurecida, ela não me cumprimenta e repreende a mãe:

— Tu não devias ter deixado ele entrar!

Eu expliquei que era uma pesquisa do IBGE e que apenas queria avaliar como a população força o mercado de trabalho. A matriarca me respondeu:

— Mas eu não trabalho mais, não preciso da entrevista.

— Minha senhora — repliquei, ajeitando os óculos — é o seguinte: nessas pesquisas de taxe de desemprego, a população entrevistada se divide em ocupada e não-ocupada, a que força o mercado em busca de trabalho ou não. Mesmo a não-ocupada têm um tipo de renda, isso entra para o computo da média de renda da população naquele período onde é feita a avaliação.

— Mas a gente não é obrigada a responder isso! — vociferou a filha, muito irritada. — Onde é que tá escrito que a gente é obrigado a responder?
Eu falei que havia uma lei de obrigatoriedade, sim. Porém, eu nunca iria usar esse argumento, já que eu podia, de maneira cordial e diplomática, convencer as pessoas a conceder a entrevista normalmente.

Continuei o chasque com a senhora. Notei que a filha, andando prá lá e prá cá sem destino entre mesas e cadeiras, como que sem saber o que fazer, foi para outro aposento, provavelmente olhar na internet — deve ter procurado o número da lei de obrigatoriedade que, se ela procurou, estava lá.

Minutos depois, ela voltou e fez uma cara de criança batida.

Eu, já meio nervoso, cheíssimo de dedos, me sentindo como o Ulisses na embaixada a Aquilies na Ilíada, insisti:

— Moça, falta apenas pegar os seus dados.

A mãe tentou ajudar:

— Só falta você, filha.

Sentada no sofá, vencida, olhando para a parede, ela resmungou:

— Fazer o quê, se eu vou ter que responder?

— Sua mãe me passou alguns dados, não tem problema - expliquei.

— Não, tá bom, eu vou responder. Mas eu não vou dar nenhum número de documento!

— Não precisa, é apenas uma entrevista, a gente só pede documento quando algum morador não sabe alguma data de nascimento, coisas assim, tempo de serviço de algum morador da casa, essas coisas — expliquei.

Finda a entrevista, falei que eu já havia estado no condomínio duas outras vezes, e citei as pessoas que havia entrevistado, entre elas o síndico. Falei que entreguei-lhe toda a minha documentação profissional. E falei de uma senhora, que elas conheciam.

A simpática matriarca me disse que aquela senhora não havia gostado da pesquisa. Achou muito intrusiva. Me lembrei do caso. E expliquei às duas.
— Sim, da dona fulana. Ela estava com uma vizinha. Lembro-me que ela estava tomando chá e comendo pão de queijo e que não me convidou prá sentar, nem me ofereceu pão de queijo.

As duas sorriram. Continuei:

— Quando eu pedi a renda, a tal vizinha, que não tinha nada a ver com a conversa, começou a questionar as perguntas que eu fazia. Me disse: “Sabe o que eu acho? Eu acho que o IBGE tá querendo se meter muito na vida das pessoas”. Respondi: “essas pesquisas são bem antigas e portanto são praticamente são as mesmas há mais de trinta anos”. Acho que essa moradora, que não tinha nada a ver com a entrevista, resolveu fazer a minha
caveira no prédio, acho que foi isso.

As duas riram. Mas eu estava com os nervos em frangalhos. Na saída, a filha olhou prá mim e disse:

— Puxa, me desculpe, garoto, desculpe (etc)

Acho que meu nervosismo mal dissimulado as desarmou. Pior que até consegui uma coisa que é muito difícil — ainda mais em situações assim, que é reverter uma recusa, ainda mais na minha cara.

Notei que, assim que fui embora, a mãe ficou meio exasperada com a (compreensível, é lógico) atitude da filha. Afinal, nunca se sabe. Mas essa patuscada era apenas uma mísera entrevista num universo de bilhões e bilhões, como diria o Carl Segan.

Nunca se sabe. Não tiro a razão delas; gente sabe que tem muito malfeitor que usa uniforme de polícia, companhia de energia, de tevê a cabo, para conseguir alguma vantagem. Quem paga o preço são os verdadeiros. Na entrevista, eu sempre digo:

— Quando o agente de pesquisa anda por bairro nobre, as pessoas acham que é bandido disfarçado. Quando anda em bairro pobre, eles acham que é a polícia disfarçada.

Os entrevistados sempre riem com essa. Mas não deixa de ser uma verdade. Sempre que eu estou na favela com o colete, algum moleque grita em surdina, quando passamos em algum beco:

— Olha a chuva.

Estava em dupla fazendo listagem na Vila Cruzeiro. Eu estava meio tenso. De portas e janelas, as pessoas nos olhavam de soslaio. O colega me disse:

— Olhe para todos e dê bom dia.

Ele sorria e dava tchauzinho prá todo mundo, como político em tempo de eleição. Eu me divertia. Logo depois, já havia aderido. A gente batia palmas e dizia: “olá, vizinha!”. E as pessoas apareciam.

Com o tempo, eu já sabia que favela era produtivo. A gente corria todos os riscos, mas podia correr em qualquer lugar. Assalto, tiroteio, essas coisas. Às vezes, era a polícia militar quem nos advertia:

— Acho melhor vocês partirem, já passou do meio-dia. De tarde, a casa via cair aqui, meu querido.

Nossa chefe já havia nos dito. Nada de ir para favela a campo sexta-feira de tarde. Eu nunca fui. Em locais como a Nazaré, a Tuca ou a Maria da Conceição, a gente sempre dava um jeito de regatear de ir de grupo e de carro oficial pela parte da manhã.

A primeira vez que eu fui na Nazaré — na Sertório, entre o hipermercado e o Salgado Filho, fiquem com uma sensação de desolação. A mesma que eu via no olhar dos novatos, quando vinham de um lugar assim. Era outra cidade, outra vida. Uma vila de papeleiros, mal organizada, mal traçada, uma cidadela de ruelas e becos sem saída. Todos compartilhavam o mesmo sentimento de alívio em sair dali findo o trabalho.

Eu, de alguma forma, como um espectador de touradas, como diria o Heminguay, fui perdendo a sensação de exotismo da primeira vez e, a cada partida à campo, tinha a mesma sede de ver as tripas ensanguentadas dos cavalos no chão da arena. Não me exasperava mais aquele tipo de ambiente, que choca e que a maioria das pessoas que vivem em Porto Alegre não conhece.

Mas a despeito de toda a tristeza de ver aquelas sub-habitações, um emaranhado de “gatos”, lama, cachorros tentando pegar as nossas canelas (“nunca, jamais dê as costas para um cão quando cruzar um beco”, já me dizia um veterano), éramos bem recebidos em favelas.

Tirando a violência, que existe, noto que as pessoas das favelas são muito cordiais, são pessoas do seu bairro. Já as de regiões de alto poder aquisitivo são muito esquivas, desconfiadas, quase misantropas, fechadas em suas casas gradeadas, como se mais ameaçadas do que quem convive diariamente com tráfico na rua e com a polícia por todo o lado a qualquer hora do dia.

Essas pessoas realmente vivem uma distância social muito grande. É um choque vislumbrar isso como espectador diferenciado. Não vivem as mesmas realidades na mesma cidade, e nunca vão viver.

Entrevistei uma auxiliar de limpeza (encostada há pelo menos sete meses pelo INSS, porém sem receber contribuição) que mora com sete filhos num casebre atrás do supermercado Zanella, na Lomba do Pinheiro. Ela vive de um famélico Bolsa-Familia prá sete bocas.

Ela jamais vai entrar num hipermercado chique na Bela Vista, onde é gerente morador na Boa Vista, em frente à praça Japão. Ele jamais vai andar com o carrão importado dele na rua de chão batido onde ela mora. Duas pessoas cujas respectivas realidades jamais irão se encontrar.

Então eu conseguia jogar dessa maneira. Todo setor censitário tem o seu lado complicado. Fora os limites geográficos dos mapas de papel que eu carregava, era a mesma cidade.

Assentamentos urbanos, de fato, são uma tourada, de acordar cedo e pegar o touro à unha, como na marchinha. A compensação era a de matar a semana numa visita apenas. Eu até podia aproveitar o tempo de sobra para ajudar os outros de carro — algo raro, em se tratando desse tipo de pesquisa, onde tudo funciona na base do “cada um por si”.

O saldo, em geral, fora os sustos, tiroteios, cara feia, recusas de moradores e sobrecarga de trabalho, era 100%. Em um ano, eu havia compreendido todas essas questões, muito embora sempre uma nova região, um novo bairro, é sempre uma descoberta.

Eu, que não ia muito além da Porto Alegre central descobri a minha cidade. Ao mesmo tempo, fiquei espantado em ver como existem tantas cidades dentro da nossa capital. A Restinga, por exemplo, é uma região autônoma. A parada 16 da Lomba, à primeira vista, parece outro município.

Pessoal que mora nos arrabaldes se refere quase sempre ao Centro de “Porto Alegre”. “Ah, eu tive que ir em Porto Alegre fazer uma consulta”. A senhora que me disse isso morava na Vila 1º de Maio, naquela encosta atrás da casa do Teixeirinha.

A estrada que sobe chama-se das “enfermeiras” porque, há muito tempo atrás, as funcionárias do hospital Divina Providência alugavam peças por ali, isso — me contava um morador do local (depois soube que as enfermeiras eram, na verdade, do Hospital Parque Belém do tempo do Oscar Pereira, mas essa é uma outra história) — no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça e o disco “Coração de Luto” tocava em todas as rádios.

Passado o susto, a gente aprende todos os caminhos da cidades. As distâncias vão diminuindo, mas é quando você descobre que Porto Alegre é um mundo. Um não: vários mundos, várias cidadelas compartilhando o mesmo céu, o mesmo rio.

Fui conhecendo cada torrão da capital, mês a mês. Eu vivia isso com o mesmo deslumbramento de um turista. De fato, se esquecermos um pouco a correria, as pressões de entrega de produção de entrevistas, olhando pelo lado positivo, é um turismo interessante. Nós acabamos fazendo parte da cidade e ela passa a ser um pouco nossa também.

Houve dias em que nós corríamos atrás de entrevistas que faltavam para fechar o mês. Conseguimos, no meu tempo, formar um grupo informal que era como os músicos de Bremen: juntos, ninguém podia conosco. Esquadrinhávamos Porto Alegre. Agora, ela era nossa, nada mais do que nossa.

Percorríamos todos os setores com entrevistas abertas (não-realizadas) e, às vezes, andávamos por toda a cidade, do Parque dos Maias até Lajeado, do Lami até o bairro Farrapos, pouco antes da Arena.

Ainda dava tempo de guardar o chapa branca na garagem do Instituto no fim da tarde no finalzinho de expediente, camiseta suada e com sensação dos três pontos ganhos depois da partida.

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Eis que, um dia, eu recebi um setor do meu oitavo trimestre. A pesquisa-piloto é a Pnad Contínua. Pude me dar ao luxo de escolher, e peguei a Vila Jardim. Dois anos depois, voltei à famosa Ernesto Pellanda.

Tudo parecia igual, exceto uma farmácia, que havia fechado e uma carrocinha que apareceu, no outro lado da rua. Eu não tinha feito a listagem para essa vez, e foi muito difícil achar as casas pelos endereços e com o novo mapa.

Com engenho e arte, eu fui encontrando todas elas — menos uma, que foi contada errada, e tivemos que excluí-la da pesquisa como “domicílio não encontrado”. Sobraram treze, que eu fiz em três dias.

Quando voltei à agência, no Centro, depus meu colete. Já era o quinto ou sexto. Eles não duram muito. De azul-escuros, contra o sol, ficam azul-piscina. Azar; antes eles do que a nossa camiseta. Com o tempo, acabei me viciando em usar calças de carteiro e botas.

A verdade é que o agente de pesquisa caminha muito, e de sol a sol. E diferente dos Correios, a gente não recebe nada além do colete. Eu acabei me acostumando a andar com eles, já que é possível forrá-los com todo o que for possível, como colete de fotógrafo.
Até quando eu estava sem ele tinha o cacoete de buscar a caneta no bolso superior esquerdo...

Descarreguei as entrevistas que estavam no meu PDA (esqueci de dizer o que é isso. Trata-se de uma espécie de smartphone emborrachado de azul com o logo do IBGE, com um programa específico e um lápis touch screen, onde as entrevistas são armazenadas, substituindo os formulários de papel).

Como fazia quase todo fim de tarde, joguei colete e boné no caixote da sala da pesquisa, peguei mochila, pus o casaco, passei pelo guarda da entrada e dei o último adeus.

Quando ganhei a Duque de Caxias e desci as escadarias do viaduto Otávio Rocha, observei o rush do fim de tarde, olhei para o Morro Santa Teresa ao fundo e me dei conta que a minha aventura havia acabado.


* Texto selecionado para o livro "Histórias de Trabalho - 2014", da Editora da Cidade, lançado na Feira do Livro. Publico atendendo a pedidos (não muitos).

Monday, November 03, 2014

Sábado em Copacabana



Avenida Atlântica em 1950


Na peça "Boca de Ouro", do Nelson Rodrigues, tem uma cena curiosa: um rapaz, Lelelco, repreende a namorada, Celeste que, segundo ele, foi vista andando pelos arredores de Copacabana.

Na verdade, à guisa de comédia de costumes, o autor de "Vestido de Noiva" usa esse expediente para mostrar como, naquele tempo (anos 50) a então pouco habitada Zona Sul do Rio de Janeiro tinha uma certa fama de recanto da prevaricação a dois.

No Chega de Saudade, Ruy Castro comenta a gravação de "Teresa da Praia" citando o mote do Leblon na letra do samba-canção de Tom Jobim. "A dita praia, aliás, entrou na canção não apenas para rimar com "amar é tão bom" como também porque, nos anos 50, ainda havia uma inevitável conotação de sacanagem quando se falava do Leblon". Segundo ele, o bairro não tinha sido completamente colonizado e sua praia, à noite, era o paraíso carioca do "sexo à milanesa".

Um fenômeno interessante: como é costume dizer, boa parte da boemia do tempo da Praça Onze, nessa época, migrou para a Zona Sul. Ao mesmo tempo em que o samba-canção foi sendo "abolerado", como diria José Ramos Tinhorão, aos poucos, ele foi ganhando essa nota particular de crônica da Zona Sul cheia de blues. Era o tempo de cantores como Nora Ney, Dóris Monteiro, Lúcio Alves, Dick Farney, e compositores como Haroldo Barbosa, Dolores Duran, Tito Madi, entre outros.

Falando no Tinhorão e em Ruy Castro, pelo menos em uma coisa os dois tem muito em comum: ambos são detratores do samba-canção. O autor da Pequena História da Música Popular Brasileira escreveu que, entre os 40 e fins de 50, esse gênero, no nível de produção comercial, se transformaria em "sambolero", provocando o estilo a um rebaixamento, de acordo com Tinhorão, a "níveis insuportáveis".

Castro foi mais longe (e aqui ele diverge de seu colega jornalista) e criou a tese particular(no Chega de Saudade) de que a Bossa Nova veio para salvar o Brasil da praga do samba-canção. Nesse sentido, Ruy é bastante parcial em querer demonstrar isso, mesmo sabendo que boa parte da primeira geração da Bossa Nova necessariamente veio do "sambolero".

Pegando o mote da "zona sul cheia de blues" (nome de um capítulo do livro Chega de Saudade), penso que é possível fazer uma delimitação temática do samba-canção desse período em que o gênero, com a Bossa Nova ainda encapsulada dentro dela (cabe ressaltar que, no começo dos 50, Johnny Alf compunha bossanovices como "Rapaz de Bem", mas boa parte do seu repertório era composta de samba-canção, como "Ilusão à Toa", "Escuta", etc.), em forma embrionária, ao contrário do que pensa Tinhorão, floresceu de forma prolífica e, até certo ponto, protobossanovisticamente original.

Naqueles tempos pré-motel, a moda montar um apartamento para consumar romances fugazes, aquela era a região ideal para um idílio típico das crônicas do Antônio Maria (também compositor de sambas-canção, não gratuitamente), Stanislaw Ponte Preta ou dos contos do citado Nelson Rodrigues do "A Vida Como Ela È...". até pensando delirantemente (desculpem) de forma multidiscipinar, pegar a literatura do período, a música que nasceu naquelas boates (Plaza, Tudo Azul, Clube da Chave, o Beco das Garrafas, etc) e a música.

A 'dissonância' de opinião com relação à Bossa, e na palavra de gente como Ronaldo Bôscoli (que era bossanovista mas da antiga), era justamente que, e essa eu acho que é o grande "mérito" do gênero nessa fase dos 50, é essa pátina de trilha sonora dos garçonnières da Zona Sul. Ou seja, o típico samba-canção.

A grande crítica dos bossa novistas com relação à esse subgênero do samba-canção é que aquele tinha, com efeito, um público adulto, isto é, de gente com mais de trinta, casado, separado, desquitado, gente da noite nos seus arrufos à Dolores Duran, e cuja temática não interessava aos jovens. Enfim - um público mais velho. Daí nasceria a ingênua e pontual vertente "céu, sol, sul" da Bossa (que depois pagaria o seu preço e viraria clichê) contra as "Noite do meu Bem" e ao "Ninguém Me Ama", ou "Não Diga Não", e clássicos do cancioneiro "balanço zona sul".

Claro que, pensando como Ruy Castro, a BN não apareceu para salvar o Brasil do samba-canção. Ou, se realmente veio, é preciso colocar alguma luz àquele período, que eu (arbitrariamente) delimito, de forma simbólica, do lançamento do disco "Copacabana", com Dick Farney (1946) até "Foi a Noite" (1958) com a Silvinha Telles.

Refiro-me a colocar uma "luz" no sentido de que esse período de samba-canção no disco comercial no Brasil não foi "negativa" como uma Idade Média da MPB (nem a Idade Média foi tão Idade Média, como sabemos hoje), mas um período com um contexto e uma história que jornalistas-pesquisadores como Ruy Castro e José Ramos Tinhorão não quiseram dar-lhe o devido valor.

O primeiro prenunciaria o samba-canção jazzificado (não abolerado, pensando em termos de dialética luiztatiana de "mistura", ao invés da visão depreciativa tinhorona) que seria o molde para as músicas "cariocas" dessa fase "música de fim de noite" que tinha o seu lado dor de cotovelo, mas sublimado pelo blend das noites cariocas da boemia bem vestida da Zona Sul; o segundo, quando o jovem pianista do Tudo Azul, Tom Jobim, ainda compondo sambas-canção, tateando prenuncia a Bossa Nova (embora tanto músicos quanto produtores e até mesmo intérpretes não estavam, ainda, preparados pela pororoca chamada João Gilberto).

Tentando exemplificar a minha tese - já furada de tantos rodeios e voltas, pego como exemplo da lírica dessa fase um tema lapidar: a ensolarada e adorável "Sábado em Copacabana":




Composta por Carlos Guinle e Dorival Caymmi (numa de suas raras incursões no gênero) e lançada em 1951 por Lúcio Alves, a letra fala gentilmente de um rendez-vous de fim de semana, ou como diriam os ianques, um feérico "one night stand". Sem rodeios, a despeito do romantismo da letra, ela é uma idília prevaricação de nosso herói pelas praias de Copacabana. É óbvio que, em se tratando de uma canção dos anos 40, pegando o mote de Ruy Castro (e de Nelson Rodrigues no Boca de Ouro) sobre a reputação do Leblon de antanho, é certo que o sujeito da letra não vai à zona sul prá andar de surfboard nem prá chupar Chica-bon.

Nem tanto ao céu e nem tanto ao mar, a verdade é que, além desses pontos-de-vista, a produção desse período, o samba-canção "zona sul" ainda é um capítulo da história a ser escrito - sem preconceitos.