Wednesday, October 29, 2014

No tempo da Fita





As de 90 eram as melhores (mas rebentavam sempre)




Gurizada que hoje baixa música na Internet não sabe o que foi aquele barato de ser piá nos anos 70/80. Naquele tempo, a gente não tinha acesso aos últimos lançamentos de discos e sequer tinha condições de comprar vinil, com aquela mesada que mal dava para conciliar entre o último gibi do Pato Donald ou as figurinhas do álbum.

Meu pai me deu um radinho de pilhas azul Motorádio, eu fazia escuta de madrugada. Isso foi em 1982, eu morava em Curitiba. De noite, pegava a Mundial do Rio de Janeiro e as emissoras do sul de madrugada, quando o sinal era mais fácil de pegar.

Sempre preferi o rádio a tevê. Talvez porque gosto de ouvir música, qualquer música. Depois, quando herdei um rádio-gravador CCE, comecei a gravar programas.

Era o auge do FM. Agora já estava em Porto Alegre. Isso é impensável hoje, quando a faixa da frequência modulada serve de plataforma para difusão de canais do éter para o celular mas, naquele tempo, rádio musical dava dinheiro. A gente aprendia a conhecer música garimpando emissoras pelo dial afora, pedia os lançamentos e flashbacks e gravava muita coisa.

Não existe nada mais obsoleto do que uma fita cassete. Mas, para a minha geração, era a única forma viável de podermos montar uma database sonora. Eu fazia seleções de músicas. Ou então sempre tinha aquela fitinha onde havia aquela determinada música que gravou inteira durante uma meia hora de programação da Atlântida ou da Ipanema. Não tinha como apagar. O jeito era arranjar mais fitas. Eu tinha saco delas.

Eu era aquele que enchia o saco do Nilo Cruz nas madrugadas do "Voo do Morcego" pedindo sempre a mesma "Sultans of Swing". Tenho certeza que até hoje ele deve se lembrar de mim pentelhando ele e o operador, pedindo sempre Dire Straits. Isso que, naquelas priscas eras, a banda do Mark Knopfler não era a queridinha das rádios daqui.

Eu pagava o preço de gostar de rock'n roll numa época que isso era coisa de tio. Não havia nada mais defunto que pedir Hollies, Animals, Stones da antiga ou Beatles nos anos 80. Hoje ouve-se de tudo mas, há trinta anos atrás, era tabu. O que tocava nas rádios ditas "jovens" era Crowded House, Duran Duran, New Order, Christopher Cross, Dan Fogelberg, Culture Club, essas coisas. Só syinth-pop. O que tocava todo dia era "True" com o Spandau Ballet.

Eu odiava tudo isso, queria que as rádios tocassem Beatles. Eu ligava e eles diziam que tinham em elepê, mas que as bolachas estavam arranhadas (o que devia se verdade). A alternativa eram a Capital FM ou a Felusp, que não tinham "jabá". Lembro do Johnny Mathis e do Nico Fidenco na Capital, e de escutar um vinil inteiro do Gerry and the Pacemakers (com um chiado horrível) na Felusp. Tempo que se fazia FM para escutar.

Tinha sempre aquela música que a gente gostava e não sabia o nome. "Classic" com o Adrian Gurvitz, por exemplo, era uma daquelas tipo Antena 1 que eu tinha em fitas, e só fui saber quem cantava depois e velho. Isso era muito comum.

Tinha uma fota que era uma mistura de coisas. Era uma TDK roubada do meu pai, apaguei umas Maria Bethânia dele e gravei músicas da Ipanema. Lembro que o lado A tinha "Infinita Highway", "Luka", gravados inteiras da Atlântida, "Love Me Tender" e "Lay Lady Lay" da Capital.

Essas eu havia gravado por acaso. Mas eu vivia ligando para os locutores prá pedir música. Era chato, mesmo. Pedia música na Universal, mas era ruim, eles só tocavam jabá. Ficava na Ipanema. Tinha o charme de poder influenciar na programação porém, na maioria das vezes, eu queria sempre alguma coisa que não tinha como achar. Fora coisas que eles nem tinham na discoteca. E coisas que eram "banidas", ou seja, não faziam parte da programação.

Nos anos 80, não dava prá imaginar que, como nos dias de hoje, era só ouvir, buscar na Internet e baixar (ou ripar do Youtube). Prá piorar, muitos artistas de rock em geral não eram lançados no Brasil ou os discos estavam esgotados há décadas. Hendrix, por exemplo, era algo que eu via na tevê, mas não tocava em rádio. Os discos estavam fora de catálogo. O que salvava era aquele disc-jockey que era tipo o falecido Big Boy: tinha uma mina de ouro em sua discoteca particular, e tocava os venenos no ar.

A Ipanema tinha um programa (apresentado pela Kátia Suman) chamado Base Sonora, domingo às 19h. Cada programa era um álbum clássico. Esse era o tipo de programa que nos salvava. De repente, rolava um Freak Out! ou um Autobahn e era a chance prá gravar. Rolava a bolacha toda, sem vinheta. Era a vitória da turma do classic rock contra o jabaculê (embora a gente curtisse um Duran Duran mas não falava nada, ouvia escondido mesmo).

O FM brasileiro é uma invenção carioca. Nasceu com a Eldopop 98,1 FM nos anos 70, quando o imperialismo da frequência modulada ainda não ameaçava o AM. Como a Eldo funcionava em caráter experimental, eles tinham carte blanche prá tocar a vanguarda da época, o rock progressivo. Era música escapista, e que se encaixou com o perfil do ouvinte jovem do começo dos anos 70.

Desbundado, ele podia achar no FM experimental da Eldopop a trilha sonora prá ficar drogado. Nos anos 80, o FM "profissionalizou-se", oa desbundados foram ouvir outra coisa, e apareceram as FMs comerciais e ouvinte como nós.

Mas o fetiche do ouvinte arte-pela-arte de rádio, esse nasceu no tempo da Eldopop e, de mãos dadas com o que foi o boom da indústria fonográfica, as rádios viveram uma vida saudável e próspera enquanto o esquema das gravadoras tinha paralelo com a produção de discos. Tanto é que, com o advento da Internet, o CD foi morrendo aos poucos - até a morte absoluta, nos anos 2010. Com isso, morreram abraçados no mesmo transatlântico o disco comercial e a rádio musical.

Toda aquela postura, aquela aura de transgressão, aquela cumplicidade dos ouvintes com os disc-jockeys morreu. O que se vê hoje e o locutor comercial metido a tudo, menos disc-jockey, sem o fetiche do expedicionário musical, como nos tempos de um Big Boy, um Beto Roncaferro. As rádios FM hoje só repetem news radio para celulares. E a internet criou uma geração de ouvintes de Winamp players, egoístas e pedidos em si mesmos.

Não quero parecer saudosista: apenas exponho os fatos. Aquela integração que existia há, vamos dizer, trinta anos atrás (até menos), por mais troglodita que fosse aquela tecnologia e a forma de contato entre ouvintes, parecia funcionar mais. Parecia algo mais autêntico, mesmo que falho, porque, a despeito do problema de acesso às músicas, havia uma certa referência. Hoje (não quero ser saudosista) todo mundo fala com todo mundo e ninguém sabe nada, ninguém se entende. Acabou-se o ritualístico. Alguém vai ficar com saudade da Usina do Som ou do Last FM daqui a vinte anos?

Aquele rito de ligar na rádio, naquele programa (hoje não tem mais programa "programa", só programa Não sei se me entendem)). Aquele ritual de comprar o disco, chegar em casa, pôr o disco na vitrola e roubar o úisque do papai prá tomar escondido ouvindo aquele vinil.

Enfim, não quero acreditar que tudo passou, que certas coisas na vida morrem para sempre e apodrecem em nós sob a forma de uma doce memória. Prefiro pensar que estou ficando velho e irremedivelmente chato.


Friday, October 24, 2014

O inocente banho de tanque

Quando era criança, um dia muito quente podia representar um refrescante banho de tanque no fim da tarde. Era com alegria imensa que eu entrava no tanque de concreto que existia na minha casa no bairro Santana. A água gelada era apenas sentida em um primeiro momento, porque depois era só diversão.
Falo isso porque tive que conviver com o banho de tanque na manhã de hoje, algo que jamais pensei ser possível na altura dos meus 48 anos. Uma pequena reforma no meu banheiro impossibilitou o banho tradicional de chuveiro por 24 horas. Restou-me o impensável tanque que fica na área do meu apartamento.
A água estava fria, mas a alegria não estava lá. Os tempos são outros, a vida já não é mais sem as preocupações infantis. Também lembrei que é muito difícil ver cenas dessas nos bairros tradicionais. Moro no Menino Deus, que cada vez mais está sendo ocupado por prédios de apartamentos, acabando com as casas tradicionais. Ali, criança nem sai mais de casa. Não as vejo na rua jogando bola, brincando de pegar, jogando taco. Tem muito carros por causa do Hospital Mãe de Deus. Tem moradores de rua cobrando pelo estacionamento gratuito em área que não é Azul.
A exceção é uma casa de madeira, a única do bairro, de gente pobre, honesta e trabalhadora. São os netos da dona Pondonga, que jogam bola na calçada no final da tarde. A bola, por sinal, é velha, surrada e, acho, até furada. Mas os guris nem se importam. O que vale é a diversão, o sonho de ser o jogador de futebol que faz gols e não aquele que ganha somas estratosféricas. A criança não pensa no dinheiro, em sair da pobreza, quer é fazer gol, fazer a defesa fantástica, correr para a galera, ser aclamado pela torcida.
A inocência da criança, o descompromisso com o futuro, a alegria da diversão. Lembrei disso tudo em um banho que durou poucos minutos, na bica de um tanque de concreto.