Tuesday, August 19, 2014

A Odisseia de Dyonélio


Dyonélio Machado

Em Os Ratos, obra-prima do escritor gaúcho Dyonélio Machado (1) (publicado em 1935) Naziazeno precisa arrumar cinquenta e três mil réis para poder saldar a dívida com o leiteiro, alimentar o filho recém-nascido e, de quebra, pagar o conserto do salto do sapato de sua senhora.

Li o livro algumas vezes e, sempre que o releio, imagino com ele a Porto Alegre que ele ambientou em suas história, a Porto Alegre de 1935.

Dyonélio parece narrar a odisseia quixotesca de seu herói suburbano como com uma "câmera-na-mão" (algo que Erico Verissimo faria, anos mais tarde, em Noite), eu posso fantasiar a cidade naquele dia fatídico.

Mesmo que ele não mencione a capital de forma ostensiva, além de moldura para o romance, ela é quase uma personagem coadjuvante - como Josué Guimarães em Camilo Mortágua (que, aliás, foi motivo de um antigo post meu por aqui).

Às vésperas do Estado Novo, em 35, Porto Alegre era ainda uma cidade liliputiana de 272 mil habitantes, cujo comércio ficava concentrado na rua da Praia; a maioria dos bares ficavam na volta da praça Quinze e Mercado Público que, ao contrário de hoje, mantinha parte de seus estabelecimentos abertos 24 horas ao dia.

Naquele tempo, o umbigo da cidade era o Largo dos Medeiros, entroncamento da General Câmara com Rua da Praia. É que a quase totalidade de escritórios comerciais, tabelionatos e bancas de advogados ficavam na Ladeira.

Quando a tarde caía, todo esse pessoal ia parar nas mesas dos cafés do Largo (Schramm, Central, Café América), que ficavam entre Andradas e Sete de Setembro. O Shramm inclusive tinha um mezanino e um segundo andar, onde funcionava um café-cantante.

No Largo, aquela populacha admirável era, quase sempre, formada de uma variada plêidade: dsdee funcionários públicos, assessores políticos, tabeliães, advogados (muitos rábulas), pequenos comerciantes, muita gente de rádio, repórteres(todos os jornais ficavam a poucas quadras do Largo, como o Diário de Notícias)se misturavam com rufiões, apostadores (naquele tempo, o turfe era mais popular que o futebol numa Porto Alegre que tentava imitar Buenos Aires).

Quando a noite chegava, o público se dispersava, ou indo para os lados do Mercado para algum rega-bofes no Clube do Comércio (para os abastados) Chalé, no Gambrinus ou no Treviso (no tempo em que se bebia chope) ou rumava para os bas-fonds do high-life, como o que ainda sobrara do malfadado Clube dos Caçadores, na Rua Nova (hoje a Andrade Neves) ou para o baixo meretrício - Pantaleão Telles ou Cabo Rocha.


Essa é a flora e a fauna de Os Ratos. O título, aliás, tem um quê de prosopopéia. Naziazeno e seus compadres tentam arrumar o tal dinheiro como um bando de animais famintos, apalpando e farejando a cidade inteira em busca de algum morlaco: vendendo, comprando, pedindo emprestado.

Podemos traçar Naziazeno em sua odisseia urbana. No capítulo 3, ele pega o bonde para o Centro. Pelo trajeto (que passa por uma praça), imagino que ele venha dos lados da antiga margem (hoje Gen. Salustiano, no borco da península.

Nos bares do Mercado, procura Duque, agiota cujo "escritório" são as mesas dos cafés. Oito e meia, ele vê a torre da Prefeitura.

Não acha Duque, procura certo "diretor" em algum prédio do serviço público municipal. Vê um cargueiro alemão no Cais. Do Paço, enxerga o alto da Igreja das Dores (até então, a maior construção do Centro).

No capítulo 5, volta ao Mercado sem achar nenhum contato.
Dyonéio diz: "é a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura (...) esse relógio, lá no alto, parece-lhe uma cara redonda e impassível".

No 6, encontra Alcides, um amigo que o aconselha a jogar. Rumam do Mercado para o Café Nacional, no Largo. Já no 7, distraído, vai para os lados das Dores, passar por um briquebraque (cujo nome não menciona - mas certamente trata-se do Ao Belchior (o dono era o português Joaquim da Cunha que, durante muito tempo, manteve um comércio onde hoje fica o prédio do antigo Cine Cacique). Vê uma antiga espada na vitrine.

No retorno, ao meio-dia, encontra o tal contato, um diretor da antiga Secretaria de Obras Públicas, que nega-lhe um empréstimo. Reencontra Alcides no Centro, que propõe que vá cobrar um cliente (um "corretor da Rua Quinze", ou seja, da hoje José Montaury. Na época da escritura do livro, el ahavia sido recém aberta com a construção do Viaduto da Borges de Medeiros, cuja artéria ligava, pela primeira vez, o Mercado com a Ponte de Pedra, como uma perimetral) seu; de quebra, teria o dinheiro.

Naziazeno terá que encontrar o homem em casa, numa certa "Coronel Carvalho" (p.57). Hoje, ela é a atual André Puente, paralela à Independência. Naquele tempo, o bairro era afamado (como dizia minha avó) pelos palacetes de grandes patriarcas de gado que aportaram na capital.

Já a Coronel Carvalho, como diz Sérgio da Costa Franco, num famoso livro de referência sobre Porto Alegre (2) ao contrário de hoje, era um beco que coomprendia a última quadra, na altura da hoje Ramiro Barcelos. Anos depois é que ela seria finalmente aberta em direção ao bairro Floresta até a Santo Antônio.

Nosso herói foi ter com o homem, que disse não saber da cobrança, que isso era com outro sócio do esquema. Depois de subir toda a Independência, Naziazeno volta de mãos vazias para o Largo em busca de Alcides.

Não o acha. Procura então o tal sócio e vai cobrá-lo num banco "da rua Sete" (de Setembro). É possível que, pela descrição de Machado, trate-se do antigo Banco Nacional de Comércio, na esquina da Ladeira mas, mais possível(mente) a antiga Caixa, cuja porta ficava para a Sete, na frente da Delegacia Fiscal (o Margs), prédio erguido em estilo eclético pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn no começo do século passado, já demolido.

O homem estava em viagem. Naziazeno volta a buscar Alcides. Finalmente o encontra, no fim do capítulo 10. Seu amigo recomenda procurar um certo Sr. Conti, nos altos da Ladeira com a Ponte (Riachuelo) "pouco antes da Biblioteca" (p.71).

Como diz Sérgio da Costa Franco, pela sua vizinhança no antigo Foro e no Tribunal, na Praça da Matriz, desde o século XIX, a Ladeira era a mais procurada para escritórios e cartórios desde o tempo do Ouvidor, "pista de carreira de advogados que galopam entre o alto e o baixo Foro, passarela de magistrados, escrivães, requerentes e meirinhos".

No caminho, Dyonélio narra: "na primeira esquina, na intersessão de uma travessa conhecida como centro da jogatina, dos cabares e das pensões chiques" (p.74). Ora, como se sabe, a travessa não citada é a Andrade Neves do tempo que chamava-se Rua Nova.

Como diz Sérgio da Costa Franco, até os anos 40, ela era um beco sem saída aberto pela Ladeira. "centro da boemia, de pensões alegres e cabarés, entre os quais, o Clube dos Caçadores" (que ficava onde hoje fica um estacionamento atrás do Centro Cultural Erico Verissimo) , só foi aberta nos anos 40, com o prolongamento das obras da avenida Salgado Filho, aberta para escoar o fluxo cada vez maior de bondes para a zona central da cidade.

(um parêntese: só o Clube dos Caçadores merecia um livro sobre, principalmente por toda a história social e política a qual o insigne lugar esteve vinculado, no primeiro quartel do século 20. A despeito da fama, o Caçadores não agenciava prostituição de alta roda. Apenas cedia o espaço para encontros. O capítulo O Deputado, do primeiro tomo do Arquipélago, do Erico Verissimo, ambienta o deputado Rodrigo Cambará numa de suas estrepolias nos Caçadores, pouco antes da Revolução de 23)

Naziazeno não acha o tal advogado, mas pecha com um amigo dândi. Ele o ataca e consegue cinco mil réis emprestado "até amanhã". Mesmo com fome, dirige-se a uma tabacaria "ao lado do Nacional" (no Largo) e resolve torrar o dinheiro no jogo.

Depois de torrar a grana, no Capítulo 14, desce até "pavilhões compridos" na área do Porto na tarde vazia das ruas do Centro. Sabe-se que havia muitos desses pavilhões onde hoje fica a Siqueira Campos na altura do Majestic (Casa de Cultura Mário Quintana desde 1991). Noutro escritório, regateia outro empréstimo, que lhe é negado.

Contudo, na página 99, Dyonélio faz referência à "docas em construção". Logo, é possível imaginar que trate-se do outro lado do cais onde, à época, era realizada a continuação das obras para os lados da Avenida Júlio de Castilhos. Ou seja, toda a extensão entre o rio e a Mauá correspondem a um aterro que estava sendo realizado naquele momento dafeitura de Os Ratos. Num trecho, o autor nos descreve o ocaso em Porto Alegre:

"A cidade se recorta sobre avermelhada que tem o céu para os lados onde está se escondendo o sol. O semicírculo do horizonte que Naziazeno abraça com o olhar está pesado de vapores. O rio, que reflete a batalha das cores escuras e claras lá do céu , tem um movimento lento e espesso de óleo. Bem à direita, lá longe, quase sobre as ilhas baixas, as sombras dos grandes navios ancorados no largo cavam buracos pretos na água grossa"

No começo do 15, Naziazeno vê uma certa casa "Azevedo". Segundo Sérgio da Costa Franco, esse estabelecimento pertencia ao Comendador Azevedo, um dos fundadores do Banco Nacional de Comércio e grande comerciante da cidade.

Na página 102, Dyonélio descreve uma cena na rua Santa Catarina. Hoje ela é a Dr. Flores. Naquele tempo, ela terminava na Voluntários da Pátria, na margem do rio, antes do aterro do cais Marcílio Dias - o que leva a crer que ele foi para os lados da Viação Férrea e não do Majestic.

"Através da praça e dos arbustos lá do fundo" (p.103) diz o autor, referindo-se com efeito para a Otávio Rocha, já que arremata a vista do antigo Hotel Sperb, na subida para a Andradas.

No 20, nosso herói retorna de mãos vazias ao Mercado, onde encontra Alcides e Duque. Ambos citam um agiota (Rocco) na rua Paissandu, hoje a Caldas Júnior, a próxima parada de Naziazeno. No retorno para os lados da Alfândega, passa pela vitrina do Ao Belchior e vê novamente as torres das Dores.

O homem não empresta, logo a triste embaixada de roedores sociopatas vai ter com um certo Fernandes, para os lados da rua Clara (João Manoel). Nada de dinheiro. Voltam. Por sugestão de Duque, Alcides decide especular reempenhando um anel de doutor (que não é dele obviamente).

Capítulo 18 (até o 21, o melhor do livro): a casa de penhor, como não podia deixar de ser, ficava na Ladeira. Já noite, o trio pega a peça e parte para outro penhor, para outro lado, dos lados da rua do Rosário (Vigário José Inácio).

Mesmo regateando, não conseguem empenhar o anel. Só com um certo Mondina, que lhes adiantaria o dinheiro mediante recibo de empenhar o anel e devolver-lhe a quantia: finalmente conseguem efetuar a transação.

Dyonélio descreve o ambiente num café (no Largo?)

"São quase oito horas (...). Pequenos grupos de homens vêm aparecendo nas portas, vêm entrando devagar. Outra fase na vida da cidade se inicia. A noite refrescou. (...) na mesa ao lado deles lê tranquliamente um jornal".


Notas:

(1) Os Ratos, Dyonélio Machado. Ed. Planeta, 2004
(2) Porto Alegre: Guia Histórico. Ed da UFRGS, 1988

Thursday, August 07, 2014

O Telefonema


Teté


Existem muitas histórias curiosas a respeito de José Francisco Duarte Júnior, o Teté. Considerado um dos maiores treinadores gaúchos de todos os tempos, muitos lembram de várias anedotas envolvendo aquele que foi comandante do Internacional por quase toda a década de 50. Vários o consideram uma espécie de Gentil Cardoso dos pampas. Empírico, era famoso por tratar contusões de seus atletas com placebo e de inventar macumbas inenarráveis para ganhar jogos. Consta que, sempre em semana de Gre-Nal, como um sabujo, Teté andava com o sobrolho carregado pelas esquinas do antigo estádio dos Eucaliptos, procurando algum despacho deixado pelos arredores por alguém das hostes inimigas, com o intuito de "amarrar" o seu time.

Foi numa dessas semanas de clássico que essa história aconteceu. Meados da década de 50. Os jogadores estavam todos concentradísismos no fortim da rua Silveiro (ou Silvério, como alguns insistem em dizer) desde a quarta-feira. Teté não deixava nada passar. Quando não caçava despachos pelas esquinas do Menino Deus, estava controlando todos os passos dos seus pupilos, inclusive fiscalizando telefonemas. Todos deviam ficar incomunicáveis.

Na sexta-feira, logo pela manhã, toca o telefone nos Eucaliptos. Sem querer se identificar, um sujeito muito ansioso queria porque queria falar com o goleiro La Paz.

- Ele não pode falar, está concentrado - explicou Teté. - Se você quiser, me diga o que você quer falar com ele que eu passo o recado.

- Mas eu preciso falar com ele urgentemente.

- Não pode, já disse.

- Mas eu preciso.

- Desculpe, eu não posso deixar você falar com ele. Só recado.

- Mas é pessoal. Eu preciso urgentemente falar com ele.

Uma hora depois, toca o telefone. Era o mesmo sujeito de antes.

- Mas afinal de contas, com quem eu estou falando? - quis saber Teté.

- Não posso dizer - respondeu o anônimo. - Só posso dizer que é um amigo do La Paz.

Por toda a sexta-feira, o homem continuou atazanando - certamente na esperança que outra pessoa atendesse e, dessa forma, pudesse falar com o arqueiro colorado. Mas de nada adiantou: obcecado, Teté passou o dia todo montando guarda em frente ao aparelho. O treinador atendia e tentava em vão fazer com que o homem pelo menos desembuchasse o nome.

As ligações continuaram no sábado, o dia todo. Nem Teté liberava o telefone para La Paz, nem o homem, cada vez mais angustiado ("mais angustiado que barata de ponta-cabeça", como se diz lá na Campanha)do outro lado da linha, dizia quem era ou do que se tratava aquela tal "urgência urgentíssima".


- Mas quem é o senhor? Que coisa mais estranha. Afinal de contas, por que essa insistência toda? - queria saber o comandante do vestiário alvirrubro.

- Não posso falar, seu Teté. É só com ele!

Domingo de manhã, faltando horas para o jogo, o homem insistia. O treinador do Inter estava nas últimas. Quando atendia o telefone, olhava com o rabo dos olhos para os dirigentes que, naquela altura, pareciam almas penadas quietas observando aquele teatro do absurdo.

- Eu preciso falar com o La Paz! Eu preciso falar com ele! - bradava o anônimo.

- Mas eu dou o recado para ele - insistia Teté.

- Não, não não!!! Tem que ser com ele.

- Não posso, meu senhor.

- Escuta, seu Teté, eu sei que o senhor é um homem justo. É particular, eu tenho que falar com ele, e é só com ele mesmo. O senhor não pode abrir uma exceção para mim? Por favor, seu Teté, eu lhe peço, eu lhe rogo, seu Teté!

- Não.

- Mas seu Teté, eu vou até o muro, ele não precisa nem sair da concentração, eu vou até o muro da Dona Augusta e eu falo com ele, é rapidinho, seu Teté. é rápido e ele depois pode voltar lá prá dentro.

Na hora do almoço, o homem liga para o telefone dos Eucaliptos.

- Por favor, seu Teté!

- Escuta aqui, moço, por favor digo eu. Aqui quem manda sou eu. Eu já te disse que eles estão sob a minha responsabilidade. Tudo o que acontecer com eles é responsabilidade minha, ninguém vai passar por cima de mim, ouviu? Tudo que acontecer aqui para o bem ou para o mal, quem vai ter que arcar com as consequências sou eu. Então, eu não posso, de maneira nenhuma, deixar os meus jogadores correrem risco nenhum, entendeu? Isso é mais difícil para mim do que para você. Se você quiser, eu passo o recado para o La Paz, eu me responsabilizo pelo sigilo da informação se é de cunho pessoal, não precisa se preocupar. É o que eu posso fazer por você.

- Tudo bem - respondeu o homem, vencido do outro lado da linha. Mas o senhor me promete que dá o recado para ele?

- Prometo - insistiu Teté.

- Pois diga prá ele que já tá tudo acertado, conforme o combinado, viu° Tá tudo certo. Tchau.