Tuesday, March 18, 2014

Sara

Sara é uma ilustre desconhecida para mim. Ela vem a ser uma parente de uma parente de uma parente, sendo que, no meio dessa genealogia toda, algum sangue se perdeu com o passar dos tempos. E se eu mal tenho contato com meus parentes, imagine com parentes de parentes de parentes de parentes.

Íamos a um casamento. O lugar do enlace e da festa eu não conheço. Sei que fica num distrito da cidade, quase limite com Ana Rech. É um daqueles lugares típicos, que ainda possui um certo atavismo do tempo dos colonizadores italianos. Como aqueles lugares onde os vovôs jogam truco em salão paroquial, jogam bolão e conversam estrepirosamente em dialeto.

É engraçado: eu sempre vinha passar o verão aqui quando eu era menino, isso no tempo em que a gente ficava um mês inteiro veraneando.

Aprendi a andar por toda a cidade, todos os lugares, conheço o trajeto da casa de minha tia até o Centro. No entanto, não decorei o nome dos bairros e, pior, não sei andar de ônibus a parte alguma.

Cheguei em casa de minha tia e ela estava num animado chá com suas amigas. Eram todas da sua idade, já beirando os setenta anos. Me ofereceu chá, mas eu recusei: queria mesmo era bebericar o vinho da pequena adega do meu tio, no porão da casa.

Porém, ele não estava lá. E minha tia não deixa eu mexer lá no porão e meu tio muito menos, porque ele é ciumento com a adega dele. É uma adega ordinária; porém, ele gosta de beber vinho em todas as refeições, como são muitos na Serra.

Depois, perguntei por todo mundo. Todos estão bem. Minha tia disse que Sara estava no andar de cima, se arrumando, e ia ficar pronta logo. Isso queria dizer pelo menos uma hora e meia.

Pedi licença para sair para ir no bolicho ao lado. Voltei com uma garrafa de vinho debaixo do casaco. Fui para a sala da tevê e fiquei estirado naqueles sofás-cama vintage de loja de departamentos vendo um jogo de futebol.


.....


Ah, me esqueci de dizer: minha tia apareceu com uma gata persa muito bonita, preta e sempre com uma cara de enfezada. Um pouco mais tarde, depois que o serão de minha tia terminou, enquanto ela arrumava a sala de jantar, eu perguntei:

- Titia, já que vamos ter que esperar até que Sara fique pronta, você poderia me contar a história dessa gata persa aí, não é?

- Com muita honra e gosto - disse ela

Então, falou.

- Há algum tempo, tu não eras nascido ainda, eu vivia na colônia do meu tio, um comerciante de vinhos perto de Garibaldi.

Um dia, ele me contou uma história que aconteceu com seu irmão, Dom Virgílio. Ele era rico e próspero; no entanto, ele e a esposa. D. Lavínia, não conseguiam ter filhos. Depois de muito tempo, ele resolveu pegar uma das mucamas e ela lhe deu um filho, Jacopo.

Anos depois, o garoto já era adolescente, e Dom Virgílio teve que resolveu uns negócios na Europa. Quando voltou deu falta do filho.

- Ele conheceu uma cocottte, ficou maluco por ela e foi embora - disse D. Lavínia.

Ninguém sabia disso - disse-me minha tia - mas D. Lavínia era uma mulher muito má e invejosa e foi iniciada, desde a infância, na feitiçaria e na arte dos encantamentos. Pela ciência da sua magia, ela transformou Jacopo num boi barroso, que ficou perdido no meio dos outros animais, bucolicamente a pastar e a servir de animal de carga.

D. Virgílio não soube notícias de seu filho, e ficou prostrado. Nunca mais soube notícias de Jacopo. Ele ficou sofrendo por um ano. Uma dia, o burro quebrou uma das patas dianteiras. A solução era sacrificá-lo.

Quando D. Virgílio se aproximou para degolar o animal, este, de forma surpreendente, se atirou aos pés do homem. Como sucedera aos cavalos de Pátroclo, os olhos do boi vertiam lágrimas.

Impressionado com o que vira, o homem decidiu não matá-lo. No entanto, da varanda da casa, D. Lavínia falou:

- É absolutamente imperioso que matem o boi. Não temos condições de sustentar e cuidar desse animal moribundo!

No entanto, meu tio teve pena do bichinho. E pediu que o caseiro levasse o boi barroso e cuidasse bem dele.

Dias depois, o mesmo caseiro veio ter com o patrão:

- D. Virgílio, preciso contar um segredo para o senhor. Sente-se, primeiro.

Então o agregado contou a verdade: a filha do caseiro havia aprendido feitiçaria com uma velha que viveu com eles há tempos atrás. "A garota me disse que o boi barroso, na verdade, era seu filho e que a madrasta o havia enfeitiçado", revelou o sujeito.

Espavorido, titio seguiu o homem até o pequeno curral, ao lado do modesto chalé do caseiro. Ao ver D. Virgílio, o animal teve a mesma reação de antes. Perplexo, ele olhou para Santuzza, a filha do caseiro:

- Então é verdade?
- Sim, senhor.
- Santuzza, se tu quebrar o feitiço, toda esta colônia é sua.
D. Virgílio - disse ela, olhando com seus enormes olhos castanhos ao patrão - eu só peço duas coisas: o amor de Jacopo e poder enfeitiçar quem eu quiser.

Titio concordou. Ela pegou um panelão, cozinhou umas ervas, embebeu toda aquela beberragem no boi barroso e disse: "se és um animal, que tu permaneças animal. Mas se és um ser humano, volte a ser um ser humano".

O bicho se contorceu no curral, até se transformar em Jacopo. D. Virgílio se atirou aos pés do rapaz, soluçando.

Em seguida, Santuzza deixou seu pai e titio e foi até o sobrado de D. Virgílio, onde estava D. Lavínia. Esta, ao vê-la, diante dos frontões da casa, gritou:

- Fora daqui, sua cadela! Nós combinamos que não iríamos se confrontar nunca!

- E eu alguma vez jurei algo para você, sua vaca? - respondeu Santuzza.

- Então tome o que eu tenho guardado para você!

D. Lavínia se transformou num leão, que saltou sobre a menina. Santuzza, num átimo, puxou um fio de cabelo seu e assoprou, transformando-o numa espada, que golpeou o animal, decepando-o em dois pedaços, que viraram texugos, e saíram aos pulos e gritos.

De repente, no topo de uma árvore, os texugos se uniram numa acrobacia mortal, virando uma gigantesca águia, que partiu em rasante em direção de Santuzza, que virou outra águia. As duas ficaram farfalando estrepitosamenbte as asas, guinchando e se bicando furiosamente no ar, até que uma delas alçou voo até a rosa-dos-ventos do sobrado e sumiram no céu, até desceram noutro rasante, até perfurarem o chão, abrindo uma fenda.

D. Virgílio e o caseiro apenas olhavam a cena, perplexos – dizia titia. Da fenda, saiu uma onça, tendo um lobo gigantesco em seu encalço. O lobo subjulgou a onça, que se transformou numa cobra com asas, que saiu voando; o lobo então virou um bugio dantesco.

O bugio pôs se a cagar, girando o enorme rabo viril e espartanamente como uma hélice, disparando suas fezes encantadas como uma feérica metralhadora, em direção da cobra voadora. Com destreza, ela escapou incólume da bateria anti-aérea, se transformando num corvo branco kamikaze que, com toda a pertinácia do mundo, contra-atacou em direção ao bugio.

Antes que pudesse esboçar reação, o macaco foi golpeado em cheio pela destra do corvo, se rasgando em dezenas de pedaços. O corvo, então, pôs-se no encalço dos pedaços do bugio, até devorar tudo. Porém, alguns pedaços foram rolando até um manatial. Os restos do bugio viraram uma enorme garoupa, e pulou dentro do manatial bufante.

O corvo deu outro rasante, se transformando, contudo, num pirarucu, mergulhando também no manatial.

- Meu Deus - gemeu titio.

- Desse manatial elas não escapam mais - respondeu o caseiro. - Já vi esse filme.

Vinte minutos depois, as águas pararam de borbulhar. Ambos ficaram olhando o manatial, como duas estátuas de sal.

Eis que, de repente, as duas saíram em forma humana da profundezas num salto monstro, até caírem de pé diante da vila de titio. Como um combate impossível, as duas trocavem raios e trovões, berrando palavras mágicas. Temendo pela própria pele, as duas testemunhas fugiram para um abrigo.

Santuzza disparou um raio em D. Lavínia que, com os olhos latejados em vermelho, soltou fogo pelo nariz, aniquilando o raio; a filha do caseiro escapou da onda de fogo, que foi parar no galinheiro, matando todas as galinhas e o galo também.

Novo embate. Porém, dessa vez eram tantos raios disparados que entre as duas mulheres formou-se um círculo de fogo, queimando toda a vegetação do local. Dez minutos depois, via-se cinzas pelo chão e Santuzza desmaiada.

D. Virgílio chegou perto da menina. Pegou em seu pulso. Ela estava viva! O caseiro, então, a abraçou e a pegou no colo:

- Santuzza! Deus seja louvado! - E puseram-se a berrar, a estapear o rosto, a chorar e a gemer.

Porém, mesmo virada em cinzas, a bruxa má lançou uma maldição. D. Lavínia vociferou que quando Santuzza completasse 18 anos, ela iria se transformar numa gata persa.

Ninguém ali acreditou nessa história. E os anos se passaram, a menina cresceu e todos se esqueceram da tal maldição. Até que, na festa de 18 anos de Santuzza, a maldição aconteceu. De repente, do nada, ela se metamorfoseou nessa gatinha persa que eu tenho aqui no colo.


Eu fiquei olhando para as duas, entre perplexo e confuso. Olhava nos olhos da gata, tentando tirar alguma coisas do olhar do animal. E algo me dizia que a gata me olhava de um jeito como se dissesse “acredite” e eu pensando no que eu poderia fazer para quebrar o encanto.

Nesse meio tempo apareceu Sara, muito bonita como uma modelo de Botero, com um vestido longo, parecia uma menina maquiada tentando parecer aparentar idade maior do que a dela.

Minha tia nos apresentou e ligou para o táxi. Ìamos pegar mais umas duas pessoas e partir para Ana Rech.

Quando descíamos a escada da casa, eu resolvi perguntar:

- Me diga uma coisa, de onde saiu aquela gata persa da tia?

- D. Lavínia deixou com ela semana passada, elas são muito amigas, titia e ela, desde crianças - explicou Sara. - Como D. Lavínia ia viajar num pacote turístico de cidades santas na Itália, não tinha com quem deixar a Santuzza com ninguém. E deixou com a titia.

- Ah – respondi, depois de um breve silêncio. Então continuei:

- É que...é que ela me disse uma história de uma maldição, de um desenlace entre duas gênias e a maldição, que na verdade essa gata persa é....

- Ah, esquece isso, guri – riu Sara. - Titia vive lendo livros. Livros! Sempre pede livros emprestada. Tá sempre embarafustada com algum livro na frente dela. Acho que ela está é ficando maluca de tanto ler livros. Então ela fica delirando essas coisas.

Novo silêncio – desta vez interrompido por Sara:

- Mas não vá espalhar que a titia está ficando senil, né.

- Prometo não contar para ninguém – respondi, enquanto chegava o táxi.


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