Tuesday, November 26, 2013

Quintanadas


O poeta em seu quarto de hotel

Por causa de um exame de seleção de mestrado, tive que ler Mário Quintana. Não havia indicação de livro - poderia ser apenas uma antologia poética. Porém, como na maioria dos autores relacionados, eu acabei indo além. No caso do poeta alegretense, eu peguei várias obras. Entre elas, um livrinho despretencioso, chamado Ora Bolas - O Humor Cotidiano de Mário Quintana.

Lançado pela Artes e Ofícios, em 1994 (ano da morte do autor), a obra é uma espécie de anedotário contando episódios que se enfeixam pelo viés picaresco do biografado. Embora fragmentário, no todo o livro evoca perfeitamente a figura do autor de Rua dos Cataventos.

O que chama a atenção é que, pelo menos para este que escreve, se a intenção deste volume é o de fazer o leitor rir, o efeito, de certa forma, acaba sendo o inverso. Como se sabe, Quintana tinha aquela imagem do poeta pachola, simpático, imagem que pode ser resumida naquela famosa foto onde ele posa sentado placidamente entre as casinholas de porta e janela da Travessa dos Venezianos, em Porto Alegre. Aquele é o mito de Quintana: o homem simples, lúcido, pacífico, hábil com as palavras, sempre falando em ruas fatigadas e anjos.

Peguei o Ora Bolas com a intenção pura e simples de cifrar essa impressão, tendo ao meu redor obras como o Apontamentos de História Sobrenatural ou o Caderno H, que é uma forma muito pessoal e original de Quintana em destilar a sua prosa poética.

O livro, como se sabe, caiu de maduro: Mário Quintana era um ótimo personagem de anedotário. Alguém sempre tinha uma história curiosa do poeta para contar. No entanto, depois de ler a coletânea do Juarez Fonseca (me admira eu não ter lido antes, ou seja, leio com vinte anos de atraso) eu descobri um outro Quintana.

Na maioria das histórias, o autor de A Vaca e o Hipógrifo se mostra uma pessoa extremamente arredia, avessa à expor sua biografia, ou seja, quase um misantropo. Claro que é possível observar o seu humor típico de anedota, com tiradas desconcertantes; porém, na maioria das vezes, a rescolta de historietas mostra Quintana sendo impaciente com o trato com as pessoas, e um tanto sombrio.

Ao mesmo tempo, dá para perceber que Mário nos deve uma biografia, sempre negada. Poeta de reconhecimento tardio, temos à mente sua imagem de velhinho sorridente e peripatético pelas ruas de Porto Alegre. Deve causar surpresa ao ilustre leitor que existe um hiato entre sua história desde o retorno à Porto Alegre (ele passou um tempo na antiga Capital Federal, depois de uma primeira estada em nosso burgo açoriano) e a consagração com o lançamento da Antologia Poética, em 1966.

Aliás, episódio que carece à biografia de Mário Quintana é a de que ele é, de fato, um pioneiro na tradução aqui no Brasil, muito antes disso virar quase que uma profissão, franqueada pelas faculdades de Letras. Quem leu o Um Certo Henrique Bertaso, do Erico Verissimo, deve se lembrar: aquela turma da Globo da Rua da Praia estava fazendo história quando traduzia, pela primeira vez, coisas como Platão, a Poética do Aristóteles, até Conrad, Proust, Huxley e afins.

Quintana, muito antes de ser poeta oficialmente, era tradutor - e sem dicionário, como ele mesmo dizia. Mário teve que aprender inglês à força, e aprendeu, até que traduziu Virgínia Woolf. Essa luz sobre o Mário tradutor, é algo que rende muito em matéria de pesquisa acadêmica, e que é, de certa forma, meio subestimada.

Do que se sabe, ele teve uma vida um tanto estouvada por lá, e sérios problemas com a bebida, fato que o afastou de muita gente (diz-se que o seu colega de Província de São Pedro (a revista da Globo) e Correio do Povo, Carlos Reverbel, tinha reservas com relação à Quintana por conta disso).

Sua dependência era crônica (ele bebeu até os 40 anos), a ponto de o poeta ter que internar-se na Pinel, em meados dos anos 50. Daí se depreende que aquela divertida fala arrevezada do escritor do Caderno H era, de certa forma, um atavismo de cachaceiro?


....


Enfim, essas histórias, e o próprio chiste sombrio de suas tiradas cáusticas revelam o inverso do insigne versajador, e o pouco que o Ora Bolas exibe (já que a obra não se quer como uma biografia do autor mas, em última análise, acaba sendo) mostra um Mário surpreendente - pelo menos, para quem o conhecia pelos livros.

Como aquela vez em que Mário viu o então jovem Luiz de Miranda, sem vintém e honestamente morto de fome, e prometeu levá-lo para jantar onde ele podia "pedir o que quisesse". Levou-o ao bandejão do Correio do Povo, onde o único prato era o feito.

Ou a vez em que falou a alguém, reclamando da Mafalda Verissimo. A esposa do Erico, vendo o poeta tão mal vestido e vivendo sozinho, tinha mania de fazer meias de lâ para Quintana. Mário, farto dos mimos, desabafou: "ela deve pensar que eu sou uma centopéia".

Ou das inúmeras vezes em que Quintana dava entrevistas para as normalistas do Instituto de Educação (ele odiava gente que lhe procurava para entrevistas), em plena redação do Correio. Sem paciência para responder sempre às mesmas perguntas, ele variava: "seu Mário, qual o senhor acha que é o grande problema da solidão". Resposta: "o grande problema da solidão, minha filha, é preservá-la".

"Seu Mário, por que o senhor nunca se casou". Resposta: " porque as mulheres são muito perguntadeiras". "Seu Mário, o que o senhor acha do Céu?". Resposta: "Olha minha filha, deve ser muito chato. Porque lá tem os chatos de todos os séculos. Aqui é melhor, porque a gente tem que aguentar só os chatos da geração da gente".

Ou aquela vez que o professor Donaldo Shuller foi à redação do Correio agradecer à Quintana por uma citação no Caderno H. Resposta do poeta: "hum, já que você veio me agradecer, acho que já me arrependi".

Também tem aquela vez em que Mário estava placidamente em sua mesa, no Correio. Eis que, debaixo de bruta chuva, irrompe um rapaz, de gabardina, todo ensopado, se apresenta e diz: "seu Mário, vim trocar umas idéias com o senhor". Resposta de Quintana: "Não aceito! Vou sair perdendo".

E a do poeta bageense que queria distribuir na capital dos gaúchos um volume seu, de edição pessoal, e que tinha um préfacio - justamente - de nosso heroi. Eis:

A vida me ensinou que a gente só gosta de quem é parecido com a gente. Lendo os versos de ..........., vejo que somos muito diferentes. Talvez esteja aí o seu grande valor.

Mário Quintana




Mas o melhor do mau humor (esse seria um bom nome para o Ora Bolas) foi uma polêmica entre o autor e James Amado, na própria (e mítica) Província de São Pedro. Num artigo, o irmão do escritor Jorge criticou o que ele entendia como lirismo água morna de Quintana, e o fato de que ele não era um poeta engajado, entre coisas tais.

Naquele tempo - idos dos anos 40, muito antes do advento das patrulhas ideológicas, já se cobrava engajamento político de todo e qualquer intelectual brasileiro (o supracitado Erico era outro alvo desse tipo de crítica).

Na edição seguinte, Mário rebateu, implacável:

Li com espanto e apreço o ensaio que V. remeteu para a Província de São Pedro e no qual tem a bondade de avisar-me de que tomei o bonde errado em poesia. Apressei-me então em ver o que têm feito os poetas que, segundo V. tomaram o bonde certo. Eis don Pablo Neruda; publica ele, numa revista nossa, uma ode à senhora mãe de Luís Carlos Prestes; abro outra revista e surge-me o senhor Camilo Jesus, com um poema "para Anita Leocádia", filhinha do senhor Luís Carlos Prestes. Desconsolo-me. Vejo que cheguei tarde, muito tarde. Agora, só me restam as tias do senhor Luís Carlos Prestes..."


Moral da história (em sua ótica, naturalmente): uma boa causa nunca vai salvar um mau poeta.

Thursday, November 14, 2013

Beatles no Ar!


John, Paul, George e Ringo, chegando para mais uma sessão na BBC


Depois de 15 anos do lançamento da primeira compilação, a Apple lança o material restante das sessões de gravação que os Beatles realizaram para a BBC de Londres: On Air—Live at the BBC Volume 2.

As gravações, reunidas em dois CDs, chegaram às lojas na última segunda (11) com alguma divulgação. Ao todo, o quarteto participou de 52 programas produzidos pela emissora estatal britânica, entre 1962 e 1965. A maior parte das aparições dos Fab ocorreu nos programas Saturday Club e Pop Go The Beatles, em 1963 e 64. De certa forma, a visibilidade franqueada pelos microfones da BBC foi um passo importante para pavimentar o caminho da banda ao sucesso.

Por outro lado, o contrato com a Beeb (como seus ouvintes a chamam) também estimulou John, George, Paul e Ringo a ensaiar consideravelmente: todos os programas eram gravados ao vivo e, para preencher a parte musical de suas participações, eles se viam obrigados a fazer algo que suas apresentações regulares ao vivo não permitia: revolcar muito do velho repertório do grupo. Coisas do tempo em que eles realmente precisavam ser ecléticos, amalgamando tanto standards de Elvis Presley dos velhos tempos da Sun, como I'm Gonna Sit Right Down And Cry Over You, I Got a Woman ou I Forgot to Remember to Forget (dava para ver que os Beatles sempre apostavam nos lados B do Rei) ou coisas do Tim Pan Alley, como Beautiful Dreamer (não exatamente Tim Pam, mas uma canção do Stephen Forster do século XIX, numa tenebrosa versão ieieiê), Honeymoon Song (lembram de Falling in Love Again ou Red Rails in the Sunset?) ou Till There Was You (essa depois definitivamente integrada ao repertório dos Beatles).

Muitos fãs da banda só travaram contato com esses tapes quando do lançamento da primeira coletânea, intitulada Live at The BBC, lançada em 1994. Fato é que praticamente todo essa material era conhecido dos bootlegers (colecionadores de discos pirata, não oficiais, de artistas em geral) desde o começo dos anos 70. A febre do bootleg apareceu a partir do fim dos anos 60 e cresceu bastante nos anos 70, até o advento do CD.

No caso dos Beatles e a BBC, alguns colecionadores explicam que os tapes das sessões da rádio inglesa já eram prensados ilegalmente desde o disco Yellow Matter Custard. Pertencente à era paleolítica da pirataria, esse é um dos elepês mais raros para colecionadores. Muitas versões de discos feitos com gravações da BBC, no entanto, eram de péssima qualidade, contrastando com outros, com ótima qualidade. Estes, com efeito, eram prensados com matrizes oriundas de rolos oriundos dos próprios arquivos da BBC.

Fato é que, de 1973 a 1994, todos os programas dos Beatles na BBC foram lançados em discos pirata, e das formas mais variadas. A mais célebre, contudo, é a Beatles at the Beeb. Como acontece com a maioria delas, a origem dos masters e a produção é apócrifa. No entanto, a qualidade das edições e o lay-out de capa de cada um deles era de primorosa qualidade. Quem é do tempo deve se lembrar: nunca houve um momento - pelo menos na história da discografia pirata beatle, de se disponibilizar material alternativo do quarteto de forma tão interessante.

O único ponto "negativo" é o excesso de diálogos e a intromissão de artistas que sequer tinham algo a ver com os Beatles (como Bobby Vee). Por sinal, é sabido que a Beeb possui rolos e mais rolos de outros artistas/cantores em seus arquivos. Por exemplo, não se sabe por que os programas dos Rolling Stones nunca saíram oficialmente.

Além disso, o estado de conservação e gravação desses tapes era muito boa a despeito de se tratar de material de qualidade inferior aos discos oficiais. Por isso, muitos colecionadores imaginavam que uma edição oficial possibilitaria ter acesso à produção dos Beatles na BBC em qualidade impecável. No entanto, após ouvirmos o Lve at The BBC, o que se viu foi apenas a masterização daqueles mesmos tapes. O que dava a volta por cima foi o fato de que, a partir de então, os fãs poderiam travar conhecimento com um lado escuro da banda, interpretando muitas canções que ficaram de fora dos álbuns oficiais - além de mostrar o amor eterno de John, Paul, George e Ringo pelo R&B americano, numa época em que os americanos haviam enterrado o rock and roll (como Lennon fala na entrevista à Rolling Stone, em 1970).

Pois bem: vinte anos depois, a Apple desembarca o derradeiro lote de canções da BBC. Dessa vez, restaram covers em sua maioria; ou seja, não existe muita novidade. A não ser a inclusão de Lend Me Your Comb - que não saiu em 1994 mas foi listada inexplicavelmente no CD 1 do Anthology 1. Outra foi a aparição de I'm Talkin' Bout You. Cover de Chuck Berry, por conta da precariedade da gravação, ela foi deixada de fora do original Live at the BBC por conta do impoluto Sir George Martin, que a achou com péssima qualidade de gravação. Já o cover dos Beatles, por sua vez, é excelente (e melhor que a dos Stones!).

O que faltou dessa vez foi uma outra versão de I Got to Find My Baby (melhor que a apresentada no CD de 94) e uma segunda versão (mais rápida) de A Shot of a Rhythm'n Blues. Destaque para outro cover de Sure to Fall, uma versão de Roll Over Beethoven bem centrada, com a bateria "fechada" e Sir Paul (do tempo em que ele tinha voz, e que voz!) berrando o clássico de Chan Romero (e grande pedida dos tempos do Cavern) The Hippy Hippy Shake.




O curioso é que, na época da aparição da primeira coletânea, a potoca que haviam criado era a de que alguém havia "encontrado tapes esquecidos dos Beatles na BBC" - quiçá com o objetivo de transformar o lançamento em fato novo. Na verdade, requentando aqueles tapes que, por sinal, não eram esquecidos de maneira alguma: a BBC tem horas e horas de programas com artistas pop gravados e em boa qualidade (diferente do que acontece no Brasil, por exemplo, onde se fazia palimpesto de rolos e cartucheiras de rádio). A bola da vez foi fazer uma base de dados em cima de possíveis gravações realizadas porventura por ouvintes da Beeb. Na verdade, não vá se iludir: todo esse material está preservado na BBC de Londres. Aliás, sempre esteve.

Para quem nunca ouviu, fica a lição de como esses quatro sujeitos, a despeito de todas as limitações (deles como músicos, e de estúdio, sem falar de instrumentos), conseguiam ensaiar e tocar direitinho ao vivo, e ainda conseguiam transmitir charme e segurança em suas interpretações. John Lennon - naquela mesma entrevista supracitada à Rolling Stone, havia dito que as melhores performances ao vivo dos Beatles não foram gravadas. Bem, pelo menos, do rol de bootlegs ao vivo da banda, os dois discos dos Fab na BBC de Londres dão uma idéia do que era assistir a uma meia horinha de programa de rádio com esses quatro caras legais.