Sunday, September 23, 2012

O Campeonato de Trova


Darcy Fagundes (de frente)

Nos anos 50, a antiga rádio Farroupilha apresentava o dominical noturno Grande Rodeio Coringa, líder de audiência onde quer que a voz marcante de Darcy Faguntes chegasse, como ele mesmo dizia, "à audiência espalhada por todo o Rio Grande e o sul de Santa Catarina".

Num daqueles domingos, o programa era transmitido diretamente da praça principal de São Leopoldo. A ocasião era especial: tratava-se da semi-final do campeonato estadual de trova.

Darcy então apresentou os duelistas. Um, de Santiago, e o outro, de São Jenôrimo. Com o sotaque carregado lá de Uruguaiana, Fagundes bradou:

- Toca a sanfona de uma vez, Osvaldinho! A gente quer aqui ver uma peleia e da braba!

Dada a largada, a gaita deu aquela introdução característica de trova, e deu-se a peleja. Contudo, ao invés da desdita, o público via que os dois participantes estavam meio travados, não indo além de mesuras chochas e sem provocações. Darcy interviu:

- Espere aí. Isso aqui tpa mais triste que carrancho em tronqueira. Tô achando que esses dois chirus aí tão meio envergonhados. A gente sabe que eles são do interior e é a primeira vez que eles chegam numa cidade grande como São Leopoldo e, de repente, eles ficaram meio tímidos em declamar para esse público gigantesco.

E, olhando para a dupla, com cara de paisagem, ele concluiu:

- O que esse pessoal aqui e o povo do Rio Grande e de Santa Catarina quer aqui é ouvir vocês se carneando, se pegando mesmo. Eles não querem esse jogo de gentilezas, querem guerra de foice, querem carga de cavalaria na coxilha! Vamos começar de novo, toca a gaita, Osvaldinho!


Os dois então continuaram. Agora acabaram as mesuras. Era um festival de farpas de todos os lados. Tua cidade só tem fresco, tua terra não tem gado, teu jeito é meio maricas. Eis que, na sua vez, o representante de São Jerônimo tascou:


Índio lá de Santiago
Hoje te boto os freio
Trepo em riba do teu lombo
Adespôs de te botá os arreio,
Te dou com o mango nas anca
E te deixou de cu vermeio!


Nesse momento a Farroupilha saiu do ar. Os ouvintes ouviam apenas um instrumental tipo a Copélia do Delibes de cortina. Até que, minutoa depois, vota a transmissão de São Leopoldo. Era a voz de um apalermado Darcy:

- Eu queria pedir desculpas aos nossos ouvintes, é que o índio de São Jerônimo é grosso demais. Meu amigo (falando para o trovador), comoo senhor me fala uma coisa assim?O senhor não vê que há autoridades cicis, militares e eclesiásticas na nossa audiência? E esse povo aqui, como eles ficam?

O índio grosso lá de São Jerônimo ouvia aquilo de cabeça baixa, consternado, pensando, "como eu pude?"

Darcy depois se diririu à audiência.


- Mas não se preocupem, já falei com os índios, e eles disseram que agora eles vão se comportar. E que continue a trova. Toca a sanfona, Osvaldo!

Lá foi o músico tocando os acordes característicos do desafio. Era agora a vez do participante de Santiago responder. Como acontece em toda trova, o mote da resposta é, necessariamente, o último verso do trovador anterior.


- Me deixa de cu vermeio....


A rádio saiu permanentemente do ar.



Sunday, September 09, 2012

Flor de Obsessão


Nelson Rodrigues


Manuel Bandeira: "Nelson Rodrigues é, de longe, o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura"
 Paulo Francis: "Nelson Rodrigues é uma das pessoas mais ignorantes que eu conheço. Só lê jornais e, assim mesmo, com ênfase nas seções de Polícia e Esportes"
 Carlos Lacerda: "O tarado Nelson Rodrigues"
 Décio Pignatari: "O Papa do Tropicalismo. E não poderia deixar de ser".
 Nelson Rodrigues: "Todos os presidentes, inclusive depois de 1964, me massacraram. A censura usa um tratamento discriminatório contra mim".
 Nelson Rodrigues morreu em 1980. Sua obra literária permaneceu no ostracismo das edições esgotadas por muito tempo. Foi esquecido e considerado como cronista menor. Não era citado em cursinhos pré-vestibulares. Mesmo tendo feito parte da grande revolução do jornalismo esportivo a partir do lançamento do Jornal dos Sports, pelo seu irmão, Mário Filho, ele não era referência. Serviu-se a isso o fato de que seu teatro desagradável para muitos o afastou do grande público.
Para o povo que lia a Última Hora, ele era um tarado que devia dormir num caixão, sob a luz castiça de círios. Seu promíscuo namoro com o presidente Médici e a sua patrulha contra o que ele chamava de "esquerda festiva" o transformou em foco de perseguição pelas patrulhas ideológicas dos anos 70. Nelson era um esquecido do grande público até que Ruy Castro lançou, no começo dos anos 90, a biografia O Anjo Pornográfico. Me lembro que foi o primeiro que me mandaram ler na faculdade, na cadeira de Teoria da Informação, na Famecos-PUCRS, lá pelos idos de 1994. Pálido de espanto, como no soneto, então descobri o Brasil pelo Nelson Rodrigues.
A mesma editora que lançara a tal biografia (leiam, eu recomendo) editou boa parte da sua literatura, boa parte extraída de compêndios extraídos de jornais e semanários, aos quais colaborou como escritor e jornalista, por toda a sua vida. Eis o que eu queria dizer: depois de tanto tempo, a verdade é que Nelson Rodrigues é ainda a boa-nova. Todo estudante de jornalismo deve ler os seus livros: novelas, peças, contos, crônicas e confissões. Aliás, tudo o que um estudante de jornalismo deve fazer é ler, e ler o tempo todo e sempre, e mais.
 Paulo Mendes Campos: "Nelson Rodrigues não é e não quer ser ensaísta: é um poeta, e o preconceito e a superstição constituem o fermento das tragédias; E também o fermento da vida, se quiserem; pois o mundo perde sempre um pouco de sua potencialidade trágica quando um preconceito é destruído. Se admitirmos, por hipótese, um mundo mentalmente asséptico, varrido de todos os preconceitos, estaríamos certos de que o drama e a tragédia desapareceriam dos palcos".
 Antônio Callado: "Nelson Rodrigues cultivava um humor sóbrio, e suas tiradas, de um cômico pesaroso, quase embaraçavam às vezes o interlocutor, que não sabia se deveria rir ou consolar Nelson, batendo-lhe no ombro, como quem formula suas condolêncdias." Nelson Rodrigues: "Sou romântico como um pierrô suburbano. Diga-se de passagem, sou um suburbano. Tenho a alma do subúrbio. Deodoro, Vaz Lobo, um estilo de vida, apaixonante".
 Nelson Rodrigues: "Sou o autor mais interditado do Brasil". Sem saída, após a apoteose de Vestido de Noiva, Nelson passou a ser censurado como dramaturgo na medida em que penetrava na sua fase mítica de suas peças, como Álbum de Família e Senhora dos Afogados. Sem saída, usava dessa desdita algo de promocional. Concorrendo com isso, Rodrigues gozou de enorme popularidade criando folhetins curtos em forma de conto, que eram o carro chefe da então recém-criada Última Hora. O melhor de sua verve jornalística, já que seu lado dramaturgo já estava entronizado em nossa literatura, está nas crônicas que ele escreveu no Globo e no Correio da Manhã. Esse foi o Nelson que eu mais li e que, minha opinião, concorre lado a lado com suas peças. Passei todo o curso de minha faculdade lendo estes livros e, sem escolha, fiz minha monografia sobre essas crônicas. A banca ria de mim: outro TCC sobre Nelson Rodrigues? Pois é... 100 anos de Nelson Rodrigues. Quem venham outros 100 anos.