Wednesday, December 14, 2011

Minha Amada Imortal


Júlio de Castilhos


Dia desses, me deparei com um livro que trazia uma coleção de cartas que a esposa do governador do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, guardara como lembrança de seu amado esposo.

As cartas restaram como espólio de Dona Honorina, que deixou entre seus pertences após sua trágica morte, em 3 de janeiro de 1905.

Para quem conhece o célebre Patricarca do Rio Grande como um homem rígido e tão relacionado à sua vida política como líder republicano e chefe de estado num dos momentos mais tensos da história do Rio Grande do Sul: a Revolução de 1893. Por conta disso, não deixa de surpreender a forma afetuosa e carinhosa de como ele se dirigia à ela. E mais: a extrema qualidade do texto dele.

"Não avalias, meu idolatrado amor, que devorante saudade tem me consumido desde o dia de nossa separação! À medida que avança o tempo se me comprime mais e mais o meu dilacerado coração! És o meu sol, és minha vida! Por isso, longe de ti, sinto extinto o calor vivificante, julgo-me definhar de íntima melancolia. É assim mesmo, querida! Se eu fosse deixar falar o coração, esta folha de papel seria mais que muito insuficiente para significar vivamente o que vai por ele. Poucos dias nos separam: apesar disso, parece que eles assumem proporções de séculos! Tal é a ansiedade em que me acho por ver-te!"

Castilhos teve dois amores: uma foi a irmã de João Daudt Filho, amor que lhe consumiu cinco anos. A segunda paixão, fulminante, foi uma jovem pelotense, D. Honorina, por quem ele iria se casar.

Cedo ele acabou por influenciá-la por seu estilo persuasivo de intelectual e de homem de letras. Por longo tempo enquanto noivos, estabeleceram uma gigantesca troca de correspondências. Como o Patriarca escrevia pelos cotovelos, quase não admitia respostas lacônicas de sua amada:

"Para reparares a injustiça que me fizeste, sabes o que peçowe Que te tornes rebelde ao teu laconismo, e me escrevas extensamente como eu faço sempre. Aceitas o acordo? Espero. Conta-me a tua vida externa e interna, isto é, o que fazes e o que pensas. Desejo tanto saber os pensamentos que te ocupam o espírito, se são uniformes ou diversos, se se referem a mim ou não! Entretanto, tu te mostras tão rebelde às francas expansões do coração com quem sempre o abre inteiro dos teus olhos, como sempre fez o teu Júlio".

Um dia, Castilhos enviou uma carta à Honoria com uma foto dele. E disse:

"Não notes nem examine muito atentamente essa caricatura fiel, cujos traços são tão medíocres e antiestéticos. Ao contrário, te persuadirás mais uma vez de que não andaste inspirada e abandonaste o critério artístico ao veres em mim a encarnação do teu ideal. Corre ligeiramente os teus incomparáveis olhos sobre essa caricatura mas, por favor! Não a analises! Deixa que continua a viver a tua abençoada ilusão!".

Quando ela lhe enviou a sua foto, ele respondeu:

"Experimentei ontem a confortante satisfação de receber a tua preciosíssima de quarotze,a qual me acompanhou a visita que me fizeste por meio de teu retrato que,se bem melhor que os outros que conheço, revela-me, todavia, a radical impotência da máquina para transmitir a fotografia a intensidade da expressão da tua beleza. Embora imporfeito, tenho sentido um grande gozo íntimo e casta alegria da alma ao contemplá-lo, comovido em repetidas vezes!".

Com o tempo, ele acabou doutrinando D. Honorina também pelo lado intelectual. E a dedicação dela por Castilhos era total. A biografia de amos não toca muito no assunto mas, além disso, pelo que comentam alguns estudiosos da vida do Patriarca, D Honorina tinha depressão.


Ele morreu durante uma cirurgia de câncer de traquéia. De certa forma, há quem afirma que ele morreu pelas próprias mãos, já que Castilhos pereceu numa mesa de operação improvisada dentro de sua casa, assistido por três médicos amigos dele.

Ocorria que, por conta da Constituição castilhista, médicos com formação regular tinham os mesmos direitos e prerrogativas que os leigos de diferentes graus de conhecimento. Não havia exigência de diploma ou de outros documentos comprobatórios de aptidão para o exercício profissional. Ou seja, de acordo com a Carta, até um chofer de praça podia operá-lo.

D. Honorina guardou luto até a morte. Guardou consigo todas as cartas que ele lhe mandara. Lia e relia cada uma delas. Três anos depois da morte de Castilhos, ela cometeu suicídio. Foi encontrada num pequeno aposento no fundo do velho casarão onde hoje fica o Museu Júlio de Castilhos. Ao lado do corpo, familiares encontraram um feixe de papéis avulsos: eram as cartas.


Tiveram sete filhos ao todo e viveram felizes. Para sempre.

Tuesday, December 13, 2011

A Garota do Ipad

Como trabalho não muito longe do Centro, faço o percurso da Cidade Baixa a pé: levo cerca de 25 minutos.
Exceto em dias de chuva - ou em casos em que eu tenho serviço externo, aí eu opto sempre pelo ônibus, a fim de evitar a fadiga. Como condução, eu uso o L. 77 Menino Deus.

É engraçado: sempre pegamos o primeiro carro da linha da manhã, acabamos invariavelmente nos acostumando com a fauna habitual de passageiros. São sempre os sete ou oito gatos pingados que, à pachorra, vêem mutuamente a paisagem passar distraída diante de seus olhos.

Por hábito, sento-me sempre no banco confrontante do ônibus, o que me obriga a viajar de costas e, ao mesmo tempo, observar os passageiros que viajam de frente.

Foi quando ela apareceu. Ás vezes sentava além da porta de saída do ônibus, que fica no meio do carro, e serve também como acesso de cadeirantes. Noto que ela está sempre absorta em leituras: mais precisamente, ela passa a viagem toda lendo alguma coisa num Ipad.

Ela poderia ser apenas mais uma naquela fauna pachorrenta de passageiros que pega a linha precisamente às seis e meia da manhã. Porém, ela tinha algo de especial.

Primeiro: ela é linda. Morena, alta, pele branca, lábios salientes, olhos amendoados, cabelos curtos, quase curtos, quase longos, com mechas pintadas de lilás ou cor similar.

Segundo: ela é assustadoramente igual a uma garota que eu conheci - e por quem me apaixonei perdidamente, tempos atrás. O mais assustador é que qualquer dessemelhança só poderia ser notada se as duas fossem colocadas frente a frente. É como se eu tivesse ela novamente diante dos meus olhos, e ou ela tivesse como que por sortilégio me apagado da sua memória, ou eu fosse uma assombração que soubesse o que ela sente, o que ela sonha, os livros que ela gosta, sua banda de rock preferida, seus afetos, seu jeito de falar, sua voz e seu nome.

Mas eu não sei o seu nome. Depois de tantas viagens involuntariamente juntos, eu tenho a sua imagem eternamente gravada em minha mente. Mas não sei quem ela é, não sei seu nome, não conheço a sua voz, ela sente, o que ela sonha, os livros que ela gosta ou sua banda de rock preferida (a banda eu sei, é o Led Zeppelin, vi pela tatuagem do Zoso na perna direita).

Em um mês, eu estava perdidamente apaixonado por ela. Ou, pelo menos, ela era o tema dos meus pensamentos mais meditabundos nos últimos dias. Sempre que eu me alheava de alguma conversa ou tarefa, eu começava a pensar na garota do Ipad.

Tentava interpretá-la pelos seus gestos. Pelos lugares onde ela senta, sua reação quando lê ou ouve música. De vez em quando, ela olha a paisagem, e volta para a leitura.

Hoje nós podemos achar todo mundo pela Internet afora. Mas sem o nome dela, eu jamais a encontrarei. A não ser que eu a interpele.

É engraçado. Meu trabalho consiste em listar nomes de pessoas e telefones de contato. Mas eu não tenho coragem de pedir o seu nome. Não tenho coragem sequer de puxar conversa. O Ipad seria um motivo para puxar papo. Ou poderia falar que ela se parece muito com uma amiga minha. A despeito de ser verdade, soaria como a mais barata das cantadas.

Minha vida é uma intersecção vazia entre o momento em que a vejo partir, descendo a Borges de Mereiros para pegar um táxi-lotação e a espera do ônibus L. 77 Menino Deus das seis e meia, que vai trazê-la novamente diante dos meus olhos.

A vejo cada vez mais linda. Ela difere de minha amiga (ex-amiga?) apenas pelo jeito de se vestir, quase como uma garota que transa tatuagem, roupas de brim escuro e tênis converse. De resto as duas são iguais. São tâo idênticas que eu fico bobo. Bobo não: eu fico extremamente comovido. Para mim, ela já não é uma garota qualquer. É alguém que o destino pôs diante de mim, é a unica explicação lógica em tanta falta de lógica.

Ambas poderiam ser iguais, mas só quem poderia estabelecer alguma conexão seria eu. Justamente eu. Coube a mim que os deuses me colocassem nessa situação absurda. É como se eu tivesse em paga de um amor não correspondido uma garota igual.

Mas eu não me iludo. Apenas não estava preparado para isso. Sei que eu não sou o tipo dela e mesmo que não seja, tenho sérias dúvidas sobre a minha capacidade de conquistá-la de qualquer maneira, ainda mais sabendo que eu não tnho nenhum contato com a garota do Ipad a não ser por conta das breves vigileaturas de ônibus da Cidade Baixa até o Centro.

Mas a minha paixão é devastadora. É um absurdo alguém da minha idade fulminado por um amor platônico. Até a Bíblia diz que há um tempo para tudo, mas para isso, pelo visto, não há tempo. E eu não sou nem serei o tipo dela. É um castigo pesado demais para meu pobre coração.

Estou muito velho é para paixões platônicas, isso não faz o menor sentido. O que eu realmente deveria fazer era deixar o meu medo de lado e fazer uma loucura. Dizer que eu não consigo esquecê-la, que ela é a garota mais linda que eu já vi, que eu queria abraçá-la e dizer que eu não sei viver longe dela. Eu não consigo mais viver sem você, eu quero você perto de mim, quero pegar em sua mão e sonhar os mesmos sonhos juntos, e passear com você nas nuvens numa tarde ensolarada de primavera e etc.

2

Não penso em outra coisa. Meu dia acaba quando eu chego em casa. Abro a janela, olho para o céu e penso na garota do Ipad. A paixão que eu sinto por ela é diferente, tem que ser diferente. Fico numa saudade absurda num misto de ternura, temor, esperança, desconfiança, felicidade e desespero.

Ela talvez desconfie das minhas intenções pela forma como eu a observo como quem na verdade não observa. Não observa observando. E contemplo aquela garota com jeito de menina de bochechas grandes e corpo de mulher, mas com um trajar ligeiramente pueril, como que de estampa. Ela tem uma beleza de estampa.

O tempo pára quando eu a vejo. É como se fosse um encontro marcado completamente fora do espaço e do tempo. O tempo pára e eu só consigo escutar os meus suspiros. Um amor platônico. De repente, parece ser a melhor coisa da vida. De repente, sou raptado por um desses movimentos do coração que me transformam num adolescente porém consciente dessa situação absurda e (talvez) com um entendimento diverso do que é estar nesse estado e numa situação hitchcockiana de ver a mesma mulher pela segunda vez como que ressussitada e (talvez) mais jovem.


3


Agora ela está de óculos. A semelhança é cada vez mais impressionante. Só que ela provavelmente notou que eu a observo o tempo todo naqueles míseros 10 minutos que me ligam da parada de casa até o Centro. Mas agora ela senta atrás do carro, cada vez mais loinge, cada vez mais longe de mim. Se eu tinha alguma chance agora ela é remota: só na cara de pau para sentar porto dela e longe de onde eu fico. Que fazer?



4


Ela desapareceu. Não pega mais o ônibus. Acho, aliás, tenho certeza que ela estudava, certamente passou de época e não vai mais precisar acordar cedo. Estou desolado. Eu sabia que isso ia acontecer, e aconteceu.

Toda a expectativa desapareceu. Agora o ônibus parece cada vez mais cheio, de familiar só a cara de uma moça que sobe com um senhor de chapéu e sempre em mangas de camisa, na parada da Sofia Veloso.

Quando volto para casa a pé, ou peranbulo pela Cidade Baixa ou Menino Deus, quando passa o 77 eu corro a vista nos ocupantes do ônibus, quase que instintivamente. Inútil. Aquele pequeno momento mágico não se repete. Não é a mesma hora, não são os mesmos passageiros, não é o mesmo motorista, não é a mesma paisagem matinal, não irei mais vê-la, o tempo vai passar e eu nem vou lembrar dela daqui a alguns meses, sei lá, anos.

Claro que não. Vou lembrar dela toda santa vez que eu cruzar com um ônibus 77 ou quando pegá-lo, vou olhar para todo o interior procurando por ela. Aliás, vou esquadrinhar Porto Alegre inteira em busca da garota do Ipad, nem que eu tenha que encher a cidade de outdoors berrantes com um pedido de procura-se em letras garrafais, vou passar o resto da minha vida procurando essa garota, nem que seja apenas para saber o seu nome.


5

Se vocês estiverem num ônibus da linha 77 e se depararem com uma moça morena, alta, pele branca, lábios salientes, olhos amendoados, cabelos curtos, quase curtos, quase longos, com mechas pintadas de lilás, usando uma camiseta preta com estampas douradas, um jeans bermuda e com uma tatuagem Zoso na perna direita e lendo distraidamente um Ipad, por favor, não me deixem tão triste.


Avisem-me que ela voltou.