Thursday, June 30, 2011

Rave on, Buddy Holly!


Capa do CD


Ouvi finalmente o disco-tributo Rave on Buddy Holly, dedicado ao célebre pioneiro do rock. Sou suspeito para falar, já que sou um ardoroso fã do guitarrista texano. Aliás, se eu for parar para ver, ele é um dos poucos (se não o único) daquela geração que eu ainda ouço.

Gosto do Elvis, mas ele não vale. Dos demais, como Chuck Berry, Little Richard, Eddie Cochran, Bill Halley, Carl Perkins, Jerry Lee Lewis e Gene Vincent, por exemplo, eu tenho a sensação de ouvir uma arte datada. Se formos pensar em Buddy Holly, eu entendo como uma arte do futuro.



Eu explico. É que, como a maioria deles, a música dos primórdios do rock estava calcada de forma considerável no boogie-woogie, no hillybilly e no rockabilly, uma espécie de fusão daquela música caipira branca que tentava encontrar a sua identidade.

O começo, em 1955, quando ele formava, com Bob Montgomery, uma dupla de bluegrass que, sob influência da música Bill Haley And The Comets, já flertava com o rockabilly. Essa fase compreende seus primeiros arroubos, em covers de clássicos da época, como Rip It Up, Baby, Let’s Play House, Good Rockin’ Tonight e Changing All Those Changes (no tributo em versão de Nick Lowe).




Holly passou por eles; no entanto, ele devia mesmo saber que aquilo se tratava de uma arte ao mesmo tempo revolucionária e datada, como quase toda a cultura norte-americana dos anos 50. E Buddy, por ser texano, deveria ser o mais caipira de todos eles. Por sinal, o autor de Peggy Sue chegou a flertar com o rockabilly no começo de sua breve carreira. Basta ouvi-lo cantando Blue Days, Black Nights. Ali, suas raízes do country são evidentes.



Mas Buddy evoluiu rapidamente. Cedo conheceu a música de Bo Diddley. A guitarra primal do compositor de Road Runner seria a base do trabalho de guitarra-ritmo de Holly, e que também ia parar na música dos Stones (que também eram fãs de Diddley).

Falando em guitarra, a mudança radical que o distanciou de seus pares dos anos 50 foi adotar uma Fender Stratocaster quanto todos os demais ainda tocavam em semi-acústicas. Além de ser sua marca registrada, a guitarra de Buddy soava moderna.

Quando o rockabilly ameaçava cair no clichê e enquanto Vincent era incensado como uma espécie de novo Elvis, Buddy misturava a crueza do rock com a doçura contidamente piegas de baladas que versavam sobre amores não correspondidos, em parte prenunciando algo que ia se tornar voga no começo da década seguinte em outras vozes, como as de Frankie Avalon, Neil Sedaka e Paul Anka, que iria compor para ele It Doesn't Matter Anymore.



Nas suas últimas gravações, Holly estava longe do rockabilly e procurava o ecletismo em outros gêneros musicais diversos do rock, como o calipso (Heartbeat), o foxtrot (True Love Ways) e o beguine (Moondreams).

Cedo ele descobriu o pop. Esse movimento seria o caminho a ser trilhado pelo rock a partir de então. Nesse aspecto, não poderíamos culpar Elvis por trair o movimento: Buddy teria feito a mesma coisa. E se Holly não tivesse acenado para essa possível evolução, esse tributo não teria razão de ser.

De todos aqueles pioneiros do rock, o líder dos Crickets nos legou uma rescolta de canções que são partituras abertas: mesmo que muitos dos covers do CD constituam um ultraje aos mais puristas, é nessa idéia que reside o valor das canções. Paul McCartney poderia ter feito uma versão igual à original (como ele fez ao se apresentar em Dallas, ano passado), mas ele mostrou que era possível recriá-la.

Quase todos fizeram leituras particulares dos clássicos de Holly. Os que se mantiveram fiéis, no entanto, souberam emprestar a sua virtude autoral à elas. É o caso de Fiona Apple & Jon Brion, Lou Reed, que nunca soou tão Lou Reed, e Graham Nash, que fez uma comovente versão de Raining In My Heart que, embora de autoria da dupla Felix e Bordilaux Bryant, foi imortalizada pelo guitarrista de Lubbock.

Contudo, a maioria dos intérpretes de Rave On são desconhecidos do público brasileiro. Isso se explica em parte. Muitos deles, como Justin Townes Earle, Cee Lo Green ou John Doe são artistas de um gênero que existe hoje por causa do próprio Holly, o Americana.

É uma espécie de subproduto do country pop que nasceu com os Eagles, nos anos 70, e é um country que modernizou o próprio country, sem os clichês típicos do Nashville Sound. Talvez nisso esteja a força de Rave On: Holly é conhecido por todos por modernizar o rock, mas o seu papel como vanguarda da própria canção americana, misturando o hillybily branco com o rhythm'n blues negro é mais importante ainda e essa é a virtude de Buddy Holly; embora subestimado por ser um rockstar, ele é, sem dúvida, um dos músicos mais influentes do século XX.

Saturday, June 25, 2011

Cemitérios de Porto Alegre contam histórias


Mausoléu de Pinheiro Machado, no Cemitério da Santa Casa

A vida nutre-se da morte, e não a morte que nutre-se da vida. Me lembrei dessa frase do Caderno H do Mário Quintana quando fui participar da Caminhada Orientada do Viva o Centro a Pé, que é promovida pela Prefeitura de Porto Alegre.

Dessa vez, o tema do passeio era a arte cemiterial da Santa Casa e do São Miguel e Almas. A orientadora da vista, arquiteta Gicelda Weber Silveira, que trabalha no setor de projetos de restauração e na Secretaria de Obras Públicas do Governo do Estado.

Na entrada da Santa Casa (pegamos um Carris sanfona com gente até no lustre, contra as minhas perspectivas, dado as chuvas dessa semana e o tempo feio de hoje), ela explicou que o primeiro cemitério da cidade se situava onde fica a Praça da Matriz, então um descampado. Com a urbanização, ele passou para a parte posterior da Igreja da Matriz, onde se situa atualmente a Catedral Metropolitana.

Segundo a pesquisadora, no princípio, os mortos eram enterrados junto às irmandades das suas respectivas igrejas. Com o tempo, fez-se necessário que, por uma questão de ordem, o campo santo deveria ficar fora da cidade. O local escolhido, a partir do século XIX, foi a subida da Azenha.

O cemitério da Santa Casa, inaugurado em 1850, foi o primeiro a aglutinar todas as irmandades. Ele foi construído em estilo europeu, com as paredes construídas como catacumbas. No centro, se situariam os mausoléus.

No entanto, nossos aristocratas não exigiam muito luxo em matéria de arte sepulcral. Nossos barões eviscondes eram mais simplistas, em contraste da perspectiva estética da burguesia que a sucedeu. Túmulos como o do Barão de Camaquã se limita ao símbolo heráldico, por exemplo; apenas o brasão, representando o seu respectivo grau nobiliárquico, o diferenciava dos demais ex-viventes.

Foi com a ascenção da burguesia porto-alegrense que surgiu a geração dos grandes mausoléus. Os pequeno-burgueses ficavam com as catacumbas e os sem culotes eram enterrados na terra, mesmo.

Se os nobres destacavam sua nobreza para diferenciá-los, a "burguesia" realçava o seu grau de importância e prestígio amealhados em vida para tranmutá-la em arte funerária: banqueiros, comerciantes, engenheiros, industriais, enfim, todos transformavam seus jazigos em mozaicos onde cinzelavam sua reputação em mármore e bronze para a eternidade.

O castilhismo também teria o seu destaque nos cemitérios. Os exemplos mais notáveis são os dos túmulos dos patriarcas do antigo PRR no Estado. No de Júlio de Castilhos, uma mulher, símbolo da Religião da Humanidade, pranteia o ditador chimango, morto em 1903; no de Pinheiro Machado, a deusa da República e um séquito de moleques vela o cadáver de bronze - coberto de pátina do senador gaúcho, assassinado em 1915. Seu corpo, seminu e mal acomodado sob um dossel, parece que acabou de expirar da facada traiçoeira de Manso de Paiva.


Túmulo do governador Daltro Filho, de Augusto Caringi

As famílias mais tradicionais (da época) e os líderes políticos (idem) são os que nos recepcionam, na entrada da Santa Casa. A ascenção do borgismo veio com uma leva de grandes artistas de escol, de Leoni Lunardi até a família Friedrichs. Da arquitetura à escultura, uma aula de como eles explicavam a morte e a política.

Mais adiante, o túmulo de Plácido de Castro, guerrilheiro gaúcho que conquistou o Acre e morto por traição, em seu leito de morte, quis que seus restos não fossem enterrados lá. No túmulo, a deusa da Justiça abaixa a espada ao lado da balança onde há um saco de moedas, denunciando a perfídia de seus algozes.

O auge da arte funerária em mausoléus vai do começo do século passado até os anos 40. Misturam-se motivos neoclássicos - ligeiramente pagãos - com outros, profundamente católicos, emoldurados em estilos que versam entre o art noveau e o modernismo.

A exaltação ao civismo e ao patriotismo, típicos da política de antanho, estão sintetizados no túmulo de Daltro Filho. O governador, vestido de pala, posa ao lado de um soldado. A grandeza épica do túmulo parece rivalizar com os do Père Lechaise.

Na frente do jazigo do Patriarca, encontro, à direita, outro, todo em mármore. Numa placa, o nome de José Pinheiro Borda, um dos idealizadores do Beira-Rio. Na entrada original do São Miguel e Almas, à esquerda, o do patrono do Grêmio, Fernando Kroeff.

Gicelda Weber explicou que o da Santa Casa, à medida em que avançava, foi mudandoo seu estilo, de muros de catacumbas com o de galerias. Esse é o estilo que seria empregado definitivamente no da irmandade de São Miguel e Almas, que é dissidente da Santa Casa.

Fundado em 1908, foi construído por Armando Boni, oriundo de Parma (Boni, morto em 45, tem um túmulo no local). Mestre do concreto armado, Boni trouxe da Europa o modelo de galerias, projeto pelo qual seria o precursor, no Brasil, a partir de 1930.

Nos mausoléus do São Miguel, a estatuária ganha extrema plasticidade, com anjos, mulheres, querubins, anjos femininos cobertos por mantos diáfanos, tornozelos, pés à mostra e silhuetas de seios, crianças que choram consoladas por madonas inconsoláveis a prantear eternamente por seus mortos, como num eterno carpir que comove a qualquer futuro passante, num amálgama de sensualidade e contrição, escatologia e poesia.

A partir dos anos 30, Boni expandiu o formato de galerias, evoluindo na direção inversa à santa Casa; esta subia a Oscar Pereira, enquando aquela descia, até onde hoje ficam as capelas, a cafeteria e a entrada principal. Hoje, círios de 100w velam os mortos ao som de colherinhas nas xícaras de café...

Da década de 40 em diante, esse paradigma de exuberância entrou em desuso, à medida em que os valores mudavam. A filosofia da arte se rendeu à praticidade e aos princípios religiosos mais elementares: segundo Gicelda Weber, algumas religiões preferiram um estilo mais sóbrio e pastoral, em sintonia com a natureza, como no cado dos cemitérios-parque. Outros, por sua vez, optaram por entronizar o modelo de galerias, como é o caso do João XXIII, situado na descida do morro da Oscar Pereira, nos limites da Azenha com a Glória.

Quando todos voltávamos para o Centro, no Carris (o passeio acabou cinco para o meio-dia), me lembrando da estátua do Pinheiro Machado ganhando uma coroa de flores de uma criança, me lembrei de outra citação, dessa vez do Tio Bicho, personagem do Erico Verissimo (que está sepultado no São Miguel, embora não tivesse tempo de vê-lo), no O Arquipélago, última parte de O Tempo e o Vento: "a morte é uma preocupação exclusiva dos vivos".

PS: funcionários do São Miguel à princípio tinham ordens de proibir filmagens e fotos. O pessoal foi salvo por algum telefonema excuso da equipe da TV Record, que nos acompanhou durante o passeio.

PS2: Não pude anotar mais detalhes porque minha caneta emperrou na metade de nossa incursão peripatética.

Friday, June 24, 2011

Seguindo os passos de Camilo Mortágua


O Cinema Castelo

Camilo Mortágua, de 1980, é o último grande romance de Josué Guimarães. O livro contra a trágica saga de uma família de estanceiros do Alegrete que vive o fim da aristocracia rural gaúcha durante o primeiro quartel do século passado.

O texto se divide num momento presente, nos primeiros dias da Revolução de 1964, onde o protagonista mora em uma pensão na avenida Azenha, esquina com a Cabo Rocha. A rua, um antigo ponto de meretrício da capital gaúcha, ficava onde hoje existe a Freitas e Castro. Foi um dos mais populares bas-fonds porto-alegrenses, com seus michês e seus cabarés, até o começo dos anos 60, quando a municipalidade desalojou todo o trottoir para longe dali.

A pensão de Dona Consuelo, situada em cima do Café Viseu, fica defronte ao antigo cinema Castelo, que se situava onde hoje fica uma agência bancária. Josué Guimarãees soube retratar com olhos de cronista os últimos dias da boemia de sem culotes daquela região outrora histórica: foi ali, em 1835, que ocorreu o primeiro confronto entre farroupilhas e o Império.


Foi o 'oficial' Cabo Rocha, que comandou o ataque, quem emprestou o nome do logradouro, cujo nome, de tão associado à vetusta zona de meretrício, acabou sendo então alterado pela Prefeitura para Freitas e Castro, nos anos 70.

Ao entrar durante três noites no Castelo, enquanto assiste uma fita barata de uma montagem B de um filme sobre Cleópatra, Mortágua, personagem trágico por excelência, volta no tempo e, sentado numa das poltronas, como num delírio, ele vê a história de sua vida sendo projetada na tela grande.

O patriarca da família, Quirino, se muda para Porto Alegre e constrói um palacete na avenida Independência. Naquele tempo, a avenida vivia o esplendor das grandes mansões de famílias do high life porto-alegrense, como os Greco (donos do primeiro carro da cidade), os Godoy e a família Torelly. Felicíssimo de Azevedo diz que a área era desejada por ser "o mais lindo arrabalde da cidade de onde se goza a mais bela vista".


A Independência, na altura do Colégio Rosário

Algumas daquelas mansões, que representavam a aristocracia da cidade foram demolidas, devido à exploração imobiliária. Em Camilo Mortágua, a mansão da família não foge à regra. Mas como toda regra têm suas exceções, alguns palacetes ainda resistem ao tempo, como a Casa Godoy, em art noveau, que foi tombada pelo Patrimônio Histórico, e a Torelly, onde hoje fica o Secretaria Estadual de Cultura.

Eis a característica primordial da obra de Josué: Porto Alegre antiga é revisitada em dois momentos. Dos anos 10 aos anos 50, quando ele narra a funesta saga dos Mortágua, passando do antigo comércio da cidade até a flanérie dos grandes espaços urbanos da capital.

A loja de Camilo e seu sócio, Edmundo, fica na Andradas, que catalisava quase todo o comércio e a vida cultural da cidade. Existem várias referências à Rua da Praia antiga na obra, desde o restaurante do Palácio do Comércio até o Cinema e Confeitaria Central, dos itmãos Medeiros, que ficava onde hoje é um curso supletivo, na esquina da Andradas com a General Câmara.

Na história, para salvar a reputação de sua família, Camilo funda uma olaria para vender material de construção, e procura terreno onde floresceram casas do tipo, na antiga Cidade Baixa. Uma das olarias remanescentes daquele tempo hoje é um centro comercial, na avenida Lima e Silva.


O Areal da Baronesa, hoje Cidade Baixa

Josué Guimarães escreveu Camilo Mortágua no verão de 1979. Antes de pôr suas mais de 400 páginas no papel, ele sonhou a história toda em seus mínimos detalhes. Contou à Ivan Pinheiro Machado, editor da LPM todo o enredo de memória, como costumava fazer com seus livros aos seus amigos mais chegados. Quando o texto estava claro em sua mente, ele escrevia tudo, do começo ao fim, dispensando originais.

Ao contar a história, ambos pararam diante do casarão da Bordini com a 24 de Outubro. Ali seria a casa do inescrupuloso Comendador, diretor do Banco da Província, pai de Leonor e sogro de Camilo. "Uma hora depois, diante do Parcão (Parque Moinhos de Vento),a história terminou. Ficamos parados num silêncio comovido, consternados com o fim do grande Camilo", diz Pinheiro Machado.

Thursday, June 23, 2011

Borges de Medeiros e a bailarina


Carlos Reverbel

Em suas Memórias, João Neves da Fontoura (1889-1963) dedicou o primeiro volume — "Borges de Medeiros e seu Tempo" — ao líder republicano, que é o seu principal personagem. Discípulo do líder positivista, João Neves resgata em sua obra alguns dos principais episódios da vida pública do então presidente do Estado do Rio Grande do Sul, com farta documentação. Também reconta os fatos que tiveram desfecho na formação da Aliança Liberal e os antecedentes da Revolução de 30.

Nas Memórias, o político cachoeirense revela, com indisfarçável convicção, que foi o correligionário mais próximo de Borges, "Suas conversas eram sinceras e abertas comigo", revela. Mas ressalta: "Contudo, ele jamais ultrapassava os limites de conversação que ele próprio demarcava".

João Neves entendia que tal atitude se evidenciava mais por uma questão de virtude do que de educação. Em outras palavras: como diziam alguns, menos chegados: "o Velho Borges é mais fechado que baú de solteirona". À respeito do caráter confessional do livro com relação ao perfil do antigo presidente do Estado, o escritor e ensaísta Carlos Reverbel escreveu que, na carência da bibliografia sobre Borges de Medeiros, as Memórias de João Neves da Fontoura talvez reúnam as melhores páginas já escritas a respeito do poderoso chefe republicano, em que pese a relação da dependência partidária e a afeição pessoal que os vinculava.

"Borges foi um solitário no poder", diz o memorialista. "Assessores mesmo, nunca os teve". Mesmo assim, não é raro encontrarmos histórias e curiosas sobre o caudilho positivista. Uma delas é bastante ilustrativa.

Em fins de 1925, quando entrava no penúltimo ano de mandato, Borges de Medeiros convidou o engenheiro Sérgio Ulrich de Oliveira para secretário de Obras Públicas. Na época, a escolha foi interpretada como sinal quase estratégico de que este seria o seu substituto na presidência do Estado.

Para João Neves, Sérgio era um homem “correto”, impoluto e, além do mais, seu confidente. Um bravo sem bravatas, estando sempre na frente quando surgissem perigos: "um cavalheiro inclusive na despreocupada elegância pessoal com que se trajava".

O memorialista diz que era natural que a escolha de Oliveira para aquela pasta parecesse, sem exagero, uma das melhores expressões, de conjunto, no seio do Partido Republicano. "insigne advogado, exercia a profissão com os rigores de uma ética exemplar".

Ou seja: tratava-se de um homem público de estirpe, bem ao estilo borgiano de viver “às claras”. Ou nas palavras de Carlos Reverbel, tanto pela pessoa quanto pela firmeza de caráter, ele reunia todas as condições para empunhar as rédeas do governo, estando assim, perfeitamente à altura de recebê-las das mãos de Borges de Medeiros, na sua “austeridade e na sua intransigência”.

Era inclusive quase certo — para não dizer verdade inapelável — que Sérgio de Oliveira seria o futuro presidente do Estado do Rio Grande do Sul, mesmo que o velho Borges mantivesse a boca fechada à respeito do assunto, como era de seu feitio de “baú de solteirona”.


Um dia, aconteceu a desdita. Em fins de 1926, bem na época em que a chapa republicana para a Câmara dos Deputados estava sendo organizada, Borges de Medeiros mandou chamar Oliveira, informando que ele estaria incluído na respectiva nominata. “Para surpresa geral, no dia seguinte, Sérgio exonerou-se da secretaria de Obras, recolhendo-se na sua casa, em Uruguaiana”, diz João Neves.

Nunca foi possível saber exatamente quais eram as esperanças que Borges depositava em seu ex-secretário. Mas para o memorialista, grande foi a decepção do presidente gaúcho. Mais: logo depois, começou a correr um boato de que Sérgio de Oliveira havia perdido a oportunidade de chegar ao Governo do Estado porque teria se enfeitiçado por uma bailarina espanhola, que fazia ruidoso êxito no Clube dos Caçadores, o conhecido grande cabaré da época, que ficava na rua Nova, beco que virou zona de meretrício, e que, anos mais tarde, foi aberto e passou a se denominar rua Andrade Neves, no centro de Porto Alegre.

Mesmo que o ex-secretário fosse viúvo e tudo tivesse ocorrido na mais esmagadora discrição, foi o que bastou para que Borges de Medeiros optasse por outro nome para substituí-lo. E este nome não foi outro senão Getúlio Vargas, então Ministro da Fazenda de Arthur Bernardes.

Na opinião de João Neves, a história pode ser explicada de outra forma, sem cor de pilhéria que lhe pintaram. Para ele, o que faltou a Sérgio de Oliveira para galgar o posto mais alto do estado não foi o Clube dos Caçadores e suas bailarinas espanholas; o que faltou mesmo foi ambição política.

Uma coisa é certa, porém: feitiço ou não, o episódio mostra que, por um detalhe, a história de 1930 para cá poderia ter sido um pouco (ou muito) diferente. “De tudo o que acabo de narrar, decorre uma inevitável filosofia”, conclui João Neves da Fontoura, no fim do capítulo 25. “Como teria sido diferente a história contemporânea do Brasil se, em lugar de Vargas, o senhor Borges de Medeiros houvesse dotado, em 1927, a candidatura de Sérgio de Oliveira para a Presidência do Rio Grande!”...

Thursday, June 16, 2011

Paixões de Fla-Flu


O livro

À primeira vista, um livro tratando da discussão bizantina a respeito da rivalidade entre Beatles e Rolling Stones é algo que não vai trazer nada de novo. Além do mais, nenhum fã ardoroso de cada uma das bandas não vai ceder um milímetro sequer de sua devoção em favor do grupo arqui-rival.

O problema é que essa eterno debate ganha essa dimensão porque os respectivos fanáticos de cada um dos dois conjuntos nutre uma cega paixão de fla-flu, muito embora existam aqueles que gostam tanto do quarteto de Liverpool quanto do quinteto londrino.

Já que o assunto soa batido, os editores do livro The Beatles vs. The Rolling Stones - A Grande Rivalidade do Rock'n'roll (Globo, 192 páginas) tiveram uma idéia diferente: repassar toda a trajetória dos cavaleiros de Sua Majestade Britânica e a do séquito de Sua Majestade Satânica e repassá-la, em detalhes, no ponto de vista de dois jornalistas musicais sob a forma de um diálogo contínuo.


A idéia de fazer um livro nesse estilo também não é lá muito nova. Afinal de contas, os diálogos de Sócrates, lá na Grécia Antiga, foram compilados por Platão, sob a mesma natureza.

É daí que surge o diferencial do livro: ao lermos suas páginas, Greg Kot (beatlemaníaco e stonemaníaco enrustido) e Jim Derogatis (Stonemaníaco e beatlemaníaco idem) contam como descobriram as duas bandas, cada um tem uma preferência clubística e o livro é todo um debate continuo, um diálogo corrido, tipo uma entrevista gravada ou um bate-papo ode boteco.


A diferença é que, nutridos de vasta informação complementar com relação à citações de outros livros de referência no assunto e contando cada um com seu respectivo vasto conhecimento musical, Jim e Kot travam um duelo inteligente, falando desde as influências das duas bandas, passando pela estética dos Beatles com relação aos Stones, o apeeal promocional. O estilo de cada integrante de cada banda é comparado: Paul e Bill, Ringo e Charlie, George e Keith, e por aí vai.


Os dois mandam muito bem e graças a Deus, não levam nenhuma das duas bandas prá compadre e mostram que gostam e sabem apontar coisas que eles consideram baixos na carreira das duas bandas. Ou seja, se não sobram polêmicas entre si (ambos concordam e discordam m tempo todo, ao mesmo tempo em que o leitor ri e concorda e discorda da mesma maneira, numa divertida esgrima a três, onde a vontade de meter o dedo na conversa é inevitável.

Ambos acreditam, na comparação entre os seus respectivos discos duplos, Exile e White Album, por exemplo, que, ao contrário do segundo, o álbum de 1972 possui um feixe, uma coesão textual e um conceito sólido cinzelado pela maestria de Keith Richards. Ao mesmo tempo, o Álbum Branco, na ótica deles, mais parece uma colcha de retalhos, tentando fazer um rescolta de canções sem um vetor comum.

Ao mesmo tempo, os dois autores entendem que o trabalho acústico tanto da pré-proodução do disco dos Beatles quanto de vários momentos do trabalho são o ponto alto. Ao mesmo tempo, Derogatis entende que a falta de coesão no acabamento final do White Album é análogo à alegada inconsistência dos projetos stonianos posteriores ao próprio Exile (nesse ponto, eu é que discordo dele com relação a isso).

No meio de críticas, eles defendem, com unhas e dentes, a excelência dos dois bateristas na ótica de musicisistas, Charlie e Ringo, com argumentos interessantíssimos. Tanto pelo estilo cool de Watts como uma espécie de falso pusilânime, em tocar como um jazzmen, sem saliências, sem ergueras baquetas além dos pulsos, mas se impor na banda, tanto ao enfrentar Jagger ao ser chamado por seu frontman de "o baterista da banda" quanto pela própria afirmação deste, de que "sem Charlie os stones acabarão".

E também não faltam elogios ao subestimado (como músico) Ringo, de ser vigoroso em dar a energia necessária em determinados momentos de certas canções, com seu ritmo ligeiramente sujo nos címbalos. Ou a sua técnica primal em Tomorrow Never Knows e as viradas cerebrais de Rain, da fase Revolver, a preferida de Greg.

O divertido de The Beatles vs. The Rolling Stones - A Grande Rivalidade do Rock'n'roll é, a despeito do assunto batido, justamente isso: o fato de que são duas paixões que movem multidões. E que, como acontece em qualquer grande rivalidade clubística, ela não termina quando o juiz apita o fim do jogo. O livro termina mas, para o leitor, o debate certamente continua.

Wednesday, June 15, 2011

Meme e Mímese

De acordo com a Wikipédia, meme é termo cunhado em 1976 por Richard Dawkins no livro O Gene Egoísta. Ele é, segundo o verbete, para a memória o equivalente ao gene na genética, a sua unidade mínima. É considerado como uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro, ou entre locais onde a informação é armazenada (como livros) e outros locais de armazenamento ou cérebros.

Cito esse conceito porque podemos entender a Memética é uma espécie de protociência (inspirada da genética) que analisa como uma unidade de informação é disseminada de forma exponencial.

Seria uma ciência moderna que estuda a dinâmica dos processos linguísticos e a sua cognição e reelaboração pelos receptores.

Chomsky dizia que a linguagem "errada" é fértil e tende à perpetuidade e a sua propagação (ou algo assim) e a recíproca seria verdadeira. Claro que ele se refere a isso como linguísta. A gramática é normativa e deve ser observada; a linguagem é dinâmica. Essa seria a diferença ífundamental, para que não se discuta a diferença de níveis de linguagem, língua formal e a gíria, o falado e o escrito.

Afinal, todos lembram que, no começo da Internet, havia uma forte resistência ao chamado "miguxês", que er aum misto de escrever com apuro (já que amaioria das pessoas se viu diante de um teclado sem ter noções de datilografia) ou criar um código particular, entronizada pelo uso contínuo da conversação virtual.

Glosando o mote do Chomsky, a afirmação dele pode ser alicerçada pela memética, que é uma protociência que analisa como signos ou linguagem escrita acaba sofrendo uma clivagem e uma mutação crítica (fazendo uso da intertextualidade como ironia ou deboche à clichês ou frases feitas, que, a rigor, são memes em potencial) e criativa dentro do meio virtual.

Isso se dá ou se daria misturando neologismos, níveis de linguagem diversos utilizados de maneira humorística ou até mesmo intertextualidade “empírica” onde boa parte dos receptores-emissores criam um código internético comum disseminada de maneira viral como unidades informativas, motivos condutores de informação que são processados, reprocessados e disseminados em escala exponencial pela rede afora.

Um exemplo é o uso da expressão TODOS CHORA em caixa alta e escrita sem a devida concordância. Ela foi disseminada viralmente causando um efeito de chiste e sendo imitado por centenas de usuários da internet que sequer conseguiriam conceber qual foi a origem desse meme. incluindo as suas possíveis variações ou inclusões em textos de internet. O erro, à guisa de chiste, é plenamente aceito, no ãmbito da imitação e da comicidade. Isso daria uma tese aristotélica sobre a mímese, por isso eu paro aqui.

Chomsky dizia que a linguagem "errada" é fértil e tende à perpetuidade e a sua propagação (ou algo assim) e a recíproca seria verdadeira.

Para a maioria das pessoas, "Meme" parece uma expressão vinculado à internet e a linguagem escrita e icônica da rede, mas é não é ou não seria.

"Nem só de pão viverá o homem". é um versículo do Evengelho de São Mateus mas...também é um meme, propagado como um provérbio, sendo este entronizado também pelo tempo e pela cultura ocidental. O próprio uso de intertexto pode remeter à memética. "A alegria é a prova dos nove a a tristeza o teu porto seguro". O verso de Torquato Neto em Geléia Geral se remete à uma expressão intertextualizada no poema, remetendo a outro poema - este, por sua vez, do poeta modernista Oswald de Andrade.

Por isso que essa tese é compreensível, embora o conceito pareça anacrônico. A memética, como ciência do vir a ser, apenas tenta instrumentalizar a geléia geral da linguagem humana num "novo" campo de estudo, como aconteceu com a semiologia, há um século atrás, com Pierce e saussire.

E afinal de contas, tudo cai nessa mesma geléia geral, já até o conceito de meme é um meme.

Tuesday, June 14, 2011

Convite para Enterro

Não contei aqui do dia em que a minha vizinha morreu? Foi tão engraçado! Ela leu no jornal uma mulher com o mesmo nome e sobrenome dela — menos o último, que era a diferença entre as duas, não foi publicado no necrológio. A coitada da mulher fazia o buço no espelhinho do bidê, no recesso do seu lar. Bate a campainha. Era a vizinha de cima. Disse: "Ai amiga! Que bom que estás viva, fiquei tão aflita!". "Como assim?", quis saber. Aí a outra mostrou o jornal. É aquele tipo de coisa que é raro, mas sempre acontece, principalmente para quem se chama João da Silva, por exemplo. As duas olhavam para a página onde estava escrito "CONVITE PARA ENTERRO. A família de...".

Súbito, as duas se abraçaram, num uivo grosso, uma emocionada, a outra apavorada. Olhei a porta entreaberta da casa da vizinha, esbugalhado: "O que está acontecendo, mas que raios?". Não resisti, e arrisquei: "Quem morreu?".

Aí elas me explicaram tudo. Mas o mais engraçado estava por vir. Horas depois, um distante parente de Florianópolis queria saber quando era o enterro, aos prantos. Ligava para todo mundo, já que ninguém tinha o telefone da dona Margarete. No dia seguinte, familiares de São Borja já preparavam a viagem (ela não falava com eles há anos). Passou-se dois, três dias. Hirta, a vizinha tentava desmentir a desdita para todos, mas já era tarde. Era tanto conhecido para convencer, que ele capitulou. Disse: "Já sei. Vou à missa de Sétimo Dia, e explico tudo!". A outra apoiou a amiga, nesta hora “difícil”. Acontece.


Dias depois, mais pêsames: da gerente do spa, do oculista e do pediatra do filho. E ela contava os viúvos: o amigo do primo, o rapazote dos tempos dos bailes da Reitoria, os colegas do curso de Belas Artes, que debandaram para o Rio de Janeiro. Amigos de parentes que moravam no Espírito Santo, a secular tia de Minas e a tia-avó, de Santa Maria. A notícia se espalhava com lenta velocidade. Todos mugiam, compungidos de dor:

— Como, mas como ela pôde morrer? Me deixar assim, sem nem ao menos me dizer adeus? Nós, que éramos tão amigas, tão unidas, meu Deus, que jogamos bingo juntas, no verão passado! Ela ia tão bem, tão disposta e cheia de vida, Deus meu!

E com o pensamento distante, como se buscasse entender o que estava acontecendo:

— E ela me confidenciava que ia comprar um apartamento na Cavalhada com o dinheiro que tava prá receber, do Governo!

No dia do enterro, um costureiro amigo dela foi ao velório. Era um magrão e cabeludo, parecido com. Pois o cara chegou completamente bêbado, visivelmente fora da casinha, vestindo um pulôver de gola rolê e com o pescoço enrolado numa echarpe cor-de-rosa aos berros (ele é muito espalhafatoso. Assim são os cabelereiros). Entrou numa das câmaras do Cemitério, e cavalgou de desespero em cima do caixão, aos berros:

— Que vá tudo para a puta que pariu! Essa vida é uma merda, mesmo! Margarete, minha querida, tu não podes ter morrido assim! Ai! Me larguem! AAAAAAi! Laaarguem! Ai!

Um senhor lhe explicou, muito constrangido:

— Meu senhor — interpela com voz sumida, ao colocar a mão no braço do rapaz inconsolável, como se precisasse um esforço hercúleo para proferir palavra numa hora daquelas — Aqui é o enterro de um menino. Quem sabe o senhor não tenta na outra capela?

As notícias chegavam, numa velocidade esmagadora! O primo espírita dela, o Serginho Borboleta (saudoso Borboleta, por onde anda aquele santo senhor do Ateneu?), disse que já havia contatado com ela no plano astral. Disse: "Ela está muito bem, lá no Céu, com a santa paz de Deus". A dona Margarete não sabia onde se meter. "Eu falei com ela do além. Está tudo bem, lá". Depois, disse que ela sempre foi uma santa, etc e tal. Que agora, depois de tantos argúrios por este vale de lágrimas, ela iria descansar em paz. A bisneta foi consolada, dizendo que sua “bisa Marga” agora era um estrela, que ia tricotar para Deus lá no Céu, etc, etc, etc.

No Sétimo Dia, ela tomou coragem — teve que ser convencida pela outra vizinha, pela vendedora de Avon do 512, a costureira do bairro e pelo zelador - e foi à sua missa...
Sugeri que fosse com algodão nas narinas, para "dar mais realismo à cena". Quase fui apedrejado, como uma adúltera bíblica. Entrou na Igreja. Lá dentro, familiares, amigos, parentes distantes, todos (os que não sabiam) e os parentes da verdadeira Margarete, reunidos. Um padre que suspirava por ela desde os tempos do catecismo, compareceu. Coitado, morria de amores ao vê-la a tocar “Manhã de Carnaval” no violão, lá em Cidreira, e ele, um padre. Todos sabiam que ele amava a defunta, em sua plena juventude, quando ela se parecia com uma Anita Eckberg (em tempo: faz tempo). Era um longo e cristão amor antigo e docemente platônico, no seu enlevo de celibatário apaixonado. A missa estava cheia. Gente de toda a parte. Na verdade, já estava antes. Foi enchendo, enchendo. Parece que ia ter ainda um casamento, depois.
Tinha gente até no lustre — como dizia o profeta. Eis que, inesperadamente ela se insurge no meio dos bancos, e grita, entre confusa, aturdida e emocionada:

— Gente, gente, eu não morri, eu não morri, eu estou aqui! Foi um engano! O nome era igual, mas eu....

Foi uma debandada geral. Um medo pânico se instaurou naquela casa santa. O estouro da boiada dos pobres presentes, que pareciam se deparar com o Gasparzinho ou coisa parecida. Mulheres sapateavam em surto histérico, como bailarinas flamencas. O padre se jogou dentro do confessionário, como se visse o próprio Judas. Coroinhas corriam em todas as direções, como se fosse uma visão do diacho. Uns não entendiam nada, nada.


— Mas que porra tá havendo??— berrou uma velhinha, coçando a cabeça, entre intrigada e divertida.

Senhoras cavalgavam de horror nos bancos. Diante do pânico, um menino saiu correndo, tropeçando em tudo: “é a loira do banheiro, é a loira do banheiro, é a loira do banheiro!’. Dona Arlinda, coitada, urinou-se. Outros tropeçavam em tudo o que viam — santeiros, freiras, mesas (um se jogou de bico na pia batismal), pilares. Um horror apocalíptico.

Isso ela me contava, com um sorriso amarelo. "Você ainda ri, seu sem-vergonha?", perguntou. Eu disse: "E você queria afinal que eu fizesse o quê, você deveria Ter explicado antes, né. E olha só, além do mais, a senhora está aí, viva e chutando!". Enquanto ouvia, ela dava um suspiro e carinha de “eu mereço!”. E fui embora. Antes de sair, ela se lembra: me segura pelo braço, e segreda: "Olha aqui, Marcelo, não conte isso prá ninguém, prá ninguém, hein, menino, senão eu vou morrer de vergonha! Vão pensar que eu sou maluca". Sem escolha, fiz o juramento, colocando a minha mão esquerda sobre uma Bíblia imaginária, e bradei:


— Dou minha palavra.

Friday, June 10, 2011

O ovo de Colombo do Coojornal


Oito anos de experiência

Meados dos anos 70. Durante os anos de chumbo do regime militar, um grupo de jornalistas decidiu mudar o status quo da imprensa brasileira - em parte amordaçada pela censura prévia e em parte transmutada em imprensa oficial compulsória. Ou, para quem se lembra, era abre aspas e tome declaração de ministro e press-release.

Foi quando surgiu o Coorjornal, em 1975. A publicação, um marco na história da imprensa no Brasil, virou livro: “Coojornal – um Jornal de Jornalistas sob o Regime Militar (Libretos, 272 páginas)”. Em 33 reportagens, ele redimensiona a importância dessa experiência pioneira no país.



A idéia era renovar em vários aspectos: o primeiro, sair do esquema "viciado" da grande imprensa. O outro, criar um sistema de auto-gestão participativa, numa época em que uma empresa jornalista era a imagem e semelhança de seu dono - como era o caso da Caldas Júnior, com relação à Breno Caldas. O dinheiro que ficasse para depois: o começo, o meio e o fim seria a informação.

Pois foi justamente dentro da Companhia Jornalística Caldas Júnior que nasceu o Coojornal: inspirados no italiano Il Giornalle, de Milão, um grupo de funcionários da antiga Folha da Manhã decidiu criar uma versão brasileira. As primeiras reuniões se dariam na casa de José Antônio Vieira da Cunha.

Contudo, para consolidar o empreendimento sob o signo de cooperativa, era necessário registrá-la no Incra. O Instituto naturalmente contestaria a viabilidade de um órgão do gênero que não ordenhasse vacas ou não colhesse grãos. Depois de muita burocracia, o Incra permitiu o nascimento da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, pioneira no gênero. Afinal de contas, a sua fonte de lucro era de natureza puramente intelectual.

O segundo passo foi transformar a Verbo, uma pequena empresa, dirigida por Elmar Bones e Jorge Polydoro (que também eram associados), com a transação do seu controle acionário. Através dessa dinamização, a cooperativa iria se desenvolver como uma espécie de prestadora de serviços não apenas de jornalismo, mas de comunicação social, administrando outras publicações, livros e audiovisuais.

A Coojornal também permitia que qualquer jornalista tivesse espaço, desde que dentro dos princípios do novo órgão, que contava com uma assembléia geral. O jornal começou como um boletim; quando ele chegou na sua nova edição, chegou finalmente às bancas. No meio de uma imprensa quase oficialesca, o pequeno grande Coojornal surgiu como uma publicação de oposição ao governo. Ao invés de abre aspas, entrevistas; ao invés de press-releases, reportagens.

Era, pois, um novo nicho de leitura: a imprensa podia pensar. Não tinha o fime propósito de ser um jornal engajado, mas dentro do contexto da práxis do jornalismo brasileiro naqueles anos políticos do Brasil dos anos 70, ele representava a contradição e um caminho a seguir. É imprensável para os jovens calouros de comunicação, nos dias de hoje, lidar com episódios lamentáveis como conviver com censores no meio de uma redação ou receber ligações sugerindo que não se tocasse "em determinado assunto".

Foi nesse contexto que o Coojornal floresceu. Ao adotar uma postura que representava justamente a contradição àquele paradigma. Tanto que ele era chamado de o "Estadão dos nanicos", e viveu seis efêmeros oito anos lutando pela liberdade de expressão. E essa ousadia cobrava o seu preço.

Houve três episódios marcantes no Coojornal no tocante à censura - justamente quando havia um viés político. O primeiro deles foi quando o órgão publicou matéria sobre os profissionais que tiveram seus direitos cassados a partir da Revolução de 1964.

A série de reportagens sobre o Movimento de Libertação Nacional Tupamaro, a famosa guerrilha urbana uruguaia dos anos 70. A pauta fez com que o extinto Serviço Nacional de Informação (SNI), capitaneada pela imaginação fértil do General Golbery do Couto e Silva, passasse a investigar a cooperativa sob a acusação de que o órgão estivesse trabalhando a soldo do MLN-T.

O ápice foi a publicação da matéria sobre a Guerrilha do Araguaia e a morte de Carlos Lamarca, um assunto que para as Forças Armadas era mais do que um tabu: Lamarca era orvelianamente um nome a ser esquecido. Mas esse era o espírito do jornal. Ele iria publicar tudo aquilo que a grande imprensa se recusaria a mandar para o papel. em determinado momento, choviam colaborações na redação. Todos sabiam que se um Correio do Povo não publicasse, o Coojornal publicaria.

Naquela tempo, décadas antes da Internet, eles utilizavam de vários expedientes para conseguir as matérias, que eram transportadas por terceiros. O caso mais curioso foi quando repórteres paulistanos recrutaram um sujeito que iria embarcar para Porto Alegre, e lhe confiaram um envelope pardo que, ao contrário dele, não chegou ao seu destino. Ao chegar, ele disse primeiro que havia extraviado o material. Diante da incredulidade dos editores do Coojornal, ele confessou que havia jogado fora depois de irresistivelmernte passar os olhos nos papéis. Então confessou que tinha medo de ser revistado e preso com a encomenda. Rasgou o envelope em pedacinhos e puxou a descarga do banheiro, como se estivesse fazendo a toalete de um pacote de haxixe...


Claro que essa liberdade iria causar muitos problemas para a cooperativa - e causou. Dois associados, Osmar Trindade e Rafael Guimaraens foram condenados a cinco meses de prisão por divulgarem relatórios do Exército sobre a atuação dos soldados no combate à guerrilha. Além deles, Elmar Bones e Rosvita Sauerssig foram postos no cadafalso.

No entanto, apenas Trindade e Guimaraens foram condenados por "corrupção ativa" (acusados de comprar os documentos de um oficial) e "prevaricação" e publicização de material sigiloso. Caso é que ambos foram para a cadeia por "maus antecedentes"; eles já respondiam por "crimes de imprensa" que sequer tinham sido julgados. Como não havia celas especiais no Presídio Central de Porto Alegre, eles foram encarcerados no Madre Peletier.

A tremenda injustiça imputada à eles causou comoção nacional. O Jornal do Brasil publicou artigo da advogada de defesa de Osmar e Guimaraens, alegando que a população tinha o dever de conhecer a sua própria história. Zero Hora publicou uma série cobrindo o caso e o Globo publicou uma nota de protesto em nome dos partidos de oposição ao governo na Câmara. A nota questionava, por exemplo, que os jornalistas foram enquadrados e condenados, ao passo que os militares envolvidos no caso sairam ilesos.

Além de casos extremos como esse, os profissionais do Coojornal sofriam ameaças, intimidações e eram seguidos e vigiados. A pressão da polícia era ostensivamente diáfana. Até a edição com os relatórios das Forças Armadas, a publicação contava com doze anunciantes. No mês seguinte, restaram apenas dois. Se a pressão não ocorria diretamente contra a redação, os agentes iam acossar os próprios anunciantes, alegando que o Coojornal era "comunista" ou " a soldo de Moscou".

O Coojornal conseguia sobreviver a despeito desse tipo de perseguição, da falta de pessoal (a cooperativa, que chegou a contar com mais de quatrocentos associados, em determinados momentos, não contava com uma redação fixa; menos da metade trabalhava na elaboração do jornal. Ou seja, havia um problema interno que contrastava com a qualidade do material publicado: havia a dificuldade de pensar o Coojornal pragmaticamente como empresa.

Outra razão do começo do fim foi que muitos realmente queriam um órgão engajado politicamente, ao mesmo tempo em que se vislumbrava a realidade da Abertura. Era a luta da arte pela arte pela militância.

Por conta dos veteranos, a tese do jornalismo pelo jornalismo desbancou a segunda. Em 1983, a Assembléia da cooperativa se reuniu pela última vez, proclamando o fim daquela mitológica aventura jornalística. O número de presentes àquela ocasião (apenas vinte membros) já demonstrava o desinteresse geral. Em setembro daquele mesmo ano, o presidente em exercício da cooperativa, envia ao Incra um requerimento, formalizando a liquidação do Coojornal.

Ficou apenas a lição de fazer jornalismo com inteligência, longe de amarras, de modelos desgastados e entronizados de cima para baixo, combativo e inteligente e efêmero, não resistindo ao destino de toda publicação típica da imprensa alternativa: marcar época, apresentar novos paradigmas e influenciar toda uma geração de jornalistas a partir dali. Parece brincadeira, mas jornalismo já foi algo sério. Cabe ousar.

Tuesday, June 07, 2011

As cartas de Rilke


O livro


Cartas a um Jovem Poeta é como um conto do Borges, curto porém denso: exige mais do que uma simples leitura.

Nos anos 60, era o livro de cabeceira da juventude e de nove entre dez meninas que frequentavam a boemia bem vestida do Encouraçado Butikin (as "mininas da Independência", como diria o Luís Fernando Verissimo), só perdendo para o Pequeno Príncipe ou as orelhas do Marcuse. O curioso é que diante da obra poética de Ranier Maria Rilke (1875-1926), esse pequeno volume é quase uma obra "menor" e, num curioso paradoxo, popularmente difundida, desde a sua publicação, há mais de oitenta anos.


O livro (LPM Plus, 96 páginas), compilado por Franz Kappus, é uma rescolta da correspondência do jovem poeta com o célebre autor das Elegias de Duíno entre 1903 a 1908, compreendendo, ao todo, dez cartas.

Como todo iniciante, na flor dos seus dezenove anos, Franz queria mostrar seus versos a Rilke e, naturalmente, granjear algum conselho literário. Em resposta, Ranier disse que, antes de mais nada, ele deveria perguntar a si mesmo sobre a sua missão como artista, e de não se deixar levar por críticas. "A arte é boa quando nasce de uma necessidade", diz ele. "Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele se estende às raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever".


Mas o mais sublime em Cartas a um Jovem Poeta é que, a despeito de, a princípio, soar como um mero roteiro para um jovem escritor se iniciar nas belas letras, na verdade, à medida em que os dois se mostram íntimos, o discurso de Rilke alça voo a algo mais transcendente. Dessa forma, o pequeno livro acaba se tornando uma lição de vida.

Rilke tinha menos de 30 anos quando ele começou a trocar cartas com Kappus, mas mesmo assim, sua ótica madura e a sua ética de vida e visão estética são inefáveis. O tempo é necessário, a solidão também. "Ser artista significa não calcular nem contar, amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera", explica.

Pois a melhor parte das "cartas" são as respostas do velho bardo às angústias do jovem poeta, as incertezas com relação à sua carreira e ao futuro e as vicissitudes da vida. Num dos trechos mais belos do livro, Rilke fala a Kappus sobre a importância da solidão e o aprendizado do amor.

Sobre a solidão, ele diz: "as pessoas (...) resolveram tudo da maneira mais fácil (...) contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo (...) sabemos muito pouco, mas temos que nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la".

Na sétima carta, versando sobre o Amor, o autor de O Livro das Horas diz que amar alguém é mais extrema provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. "Os jovens precisam aprender a amar", revela Rilke.

E o tempo de aprendizado um longo período de exclusão, de modo que o amor é, por muito tempo, solidão, isolamento, uma oportunidade para amadurecer, "tornar-se algo, tornar-se um mundo". Por fim, ele explica: " a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante". Isso que Rilke escreveu essas palavras contando apenas 29 anos!

Franz Kappus certamente viu que o valor daquelas cartas, escritas entre 1903 e 1908, tinham vida própria - tanto que elas sequer necessitam da correspondência de seu interlocutor. Todas aquelas lições de vida que o velho-jovem bardo escreveu, ao correr da pena, são perenes e dizem à alma de qualquer um. E, 1929, três anos depois da morte de Rilke, o jovem poeta finalmente publicou-as em livro.

Cartas a um Jovem Poeta até poderia ser considerado um livro "menor" diante da obra poética do autor praguense. Mas não é. È tão vital quanto a sua lírica e, de certa, forma, um caminho para conhecer um dos maiores poetas do Século XX - se não o maior.

Friday, June 03, 2011

Pirulito e Sabonete



- Viúva do Frank Sinatra revelou que ele tomava 12 banhos por dia, pode isso?

- Úé, se eu tivesse a Doris Day, a Peggy Lee, a Ava Gardner e mais nove ou dez amantes por dia eu ia fazer o mesmo.