Monday, May 30, 2011

The Revolution Will not be Televised


Gil Scott-Heron


Nem a morte do genial Gil Scott-Heron serviu para que salientassem o papel seminal dele como agitador cultural, crítico voraz da realidade adversa das minorias raciais e do seu papel como contestador de um futuro sombrio deglutido pela geléia geral da cultura instantânea da televisão e dos meios de comunicação modernos. The Revolution Will Not Be Televised hoje choca mais pela sua atualidade do que nas palavras cruentas que Gil versejava, parodiando slogans, frases feitas, clichês, toda a superficialidade da comunicação midiática. Scott-Heron morreu mas a sua voz vulcânica ainda ecoa nos ouvidos surdos de um mundo de neuróticos. E tudo isso quando chegamos a um estado de coisas em que o próprio protesto acabou sendo esvaziado pela liturgia de pessoas que protestam pelo prazer fútil do protesto, e não vêem as suas vidas sendo consumidas pela gratuidade com que suas vidas acabam se transformando em simulacros ambulantes, ou como diria Exupèry, como se o comodismo das nossas vidinhas embaladas a vácuo e guardadas em caixotes e valises, tudo em nome do bom tom e da ordem e do progresso da nação, todos nos tornamos, com o tempo, em seres de barro, com um hedonismo longa vida, una sua patética impotência de ser, no seu cansaço, na sua falência da mente. A revolução não passará na tevê, não será composta por músicos brancos, não será lida pelo presidente da Academia de Letras, não será comentada no artigo de fundo de jornal, não será discutida em programas dominicais de variedade, nem em transmissões de jogos de futebol.



Também não passará no lixo cultural do Twitter, nem no Facebook, não vai passar em nenhuma rede social e, mesmo que passasse, ninguém ia se importar: se uma bomba cai sobre uma cidade, o sangue de gente inocente, de corpos em pedaços, sem braços, sem perna, e com as vísceras rubras saindo ventre afora, como acontece com os cachorros atropelados, de crianças morrendo de fome, de tanta miséria mental, de tanta falta de vergonha, de toda a inversão de valores, de como o inútil é entronizado e o essencial vai para a bacia das almas, a revolução não passará na tevê, caro Gil Scott, ela simplesmente não vai passar.

Tuesday, May 24, 2011

O Mentiroso


Eis o homem


Tem aquela famosa cena no meio do show do Royal Albert Hall em 1966 (que na verdade não é no Albert Hall) onde um sujeito na platéia - escandalizado pela barulheira neurótica que Bob Dylan (que faz hoje 70 anos (de idade) transformara a sua apresentação, colocando uma banda de rock no último volume tocando blues pesado depois de um set acústico - sobe na cadeira e chama o menestrel das esquerdas de "Judas". Ao passo que o compositor, enquanto procura o gozador na platéia, responde: "eu não acredito em você. Você é um mentiroso".


Pois a verdade é essa: você é que é o mentiroso, caro sr. Bob Dylan. Mentiroso e oportunista. Você fez todo mundo de bobos. Seu método foi simples. Você viu que a onda do rock tinha passado junto com a cultura dos anos 50 como um juiz nos seus últimos anos de magistratura. Não foi isso o que você falou no Crônicas, seu picareta??

Você é apenas um rábula que vivia rondando universidades até que descobriu que uma garotada que vivia em Nova Iorque havia redescoberto aquele pessoal de esquerda dos Weavers, que todo mundo agora estava curtindo Paul Anka e você não tinha voz nem físico nem carisma para ser um Pat Boone, leu sobre os vagabundos da América beat e virou uma versão moderna deles.

Então você deve ter pensado MAQUIAVELICAMENTE da seguinte maneira: todo mundo acha que esses rapsodos estilo Woody Guthrie são uns sujeitos que fazem puro proselitismo em letras de um engajamento político de algibeira. Já que todos pensam que esses folk singers não passam de um bando de simplórios que acham que vão matar fascistas com um violão rachado E PREGAR UMA PEÇA NOS FARISEUS.

A fórmula era simples: aproveitar a onda da boemia bem vestida do Village que, depois do ressurgimento da onda folk em Newport (ali por 1960) e do recrudescimento de movimentos pelos Direitos Civis, e entrar nessa nova onda.

"Vou virar um folk singer de 18 anos fazendo cara de cachorrinho abandonado, usando botas de guarda-freios embarradas, um boné, uma gaita, vou ouvir todos os discos possíveis de blues, de folk, vou copiar o Dave Van Ronk, Charlie Patton e todo aquele pessoal do Anthology of American Folk Music, vou aprender dedilhados e acordes de blues, vou aprender harmonica, vou ver Genet, Balzac, Gogol, Victor Hugo, o Metamorfoses do Ovídio, a autobiografia do Davy Crockett, roubar discos dos meus amigos, procurar Clausewitz, Faulkner, Poe, Verlaine, Baudelaire, Elvira, a Morta-Virgem, Longfellow e aquele poeta italiano do século 13 (que não era o Dylan Thomas) e entrar em todas essas transas literárias e não ter nenhuma pose de intelectual. Vou ser um intelectual sem biblioteca. Vão me perguntar de onde eu aprendi a toca violão e vou encolher os ombros e simplesmente dizer que foi através de um sujeito de pés de casco de bode na auto-estrada 61".

Bob Dylan, esse mentiroso. O plano dele é simples, e todos caíram. ele sabia que a cultura imediata do seu tempo estava com os dias contados, o grande golpe era aproveitar que o folk estava na mesma transa dos movimentos de esquerda. E pensou: "Vou ser o queridinho deles, depois vou esnobá-los". Assim, Bob Dylan, na meca das editoras musicais, começou a fazer barulho e marquetear a sua imagem de Werther com um violão no colo e carinha de menor abandonado. Pegou todo repertório possível de blues e folk e estudou todas as possibilidades de arquivar aquilo, graças à sua execrável memória de elefante, do tipo, pra-esse-cara-decorar-A-Hard Rain-ou-é-gênio-ou-é-um-maluco.

E foi simples: Dylan pegava cançonetas tradicionais obscuríssimas, como No Auction Block (ou Lord Randall, ou Pretty Polly, ou Scarborough Fair, ou o diabo), fazia uma paráfrase marota, escrevia algo ordinário e que todos queriam ouvir, como "quantos caminhos um homem precisa trilhar para tornar-se um homem?".

Foi assim que o sr. Zimermann inventou essa mentira, chamada Bob Dylan. Ele plagiava dezenas de temas folk, escrevia letras de protesto inteligentíssimas e que convergiam para todo o movimento de massas que crescia nos Estados Unidos do começo dos anos 60. Só precisava chamar a atenção de algum produtor de discos, arranjar um empresário (de preferência, inescrupuloso) e dar visibilidade àquele fait-divers peripatético do menino menor abandonado e frágil que, de repente abre a voz fanhosa e canta versos intermináveis denunciando injustiças sociais, políticas beligerantes pró-intervenção ianque no Extremo Oriente, assassinatos covardes de líderes sociais e empregadas domésticas, crônicas de desvalidos e sem culotes da vida afora.

Agora basta enlatar e vender para as massas. Dylan ainda caiu nas graças de um certo Albert Grosmann, que juntou a sua inescrupulosidade (?) com e dele (Grosmann tinha uma transa com o pessoal de Newport e com as editoras do Tim Pan Alley e, do Café Wha! para as prateleiras de discos e programas de tevê era um pequeno passo) e, desse conúbio, Dylan inventou a sua reputação. De uma hora para outra, a juventude americana não queria mais Frankie Avalon, Pat Boone, Neil Sedaka e essa estirpe de cantores fabricados para bobbysockers.

Bob Dylan acabou com eles. e paulatinamente ia acabar com o mercado dos cantores-intérpretes: a partir dali, o mercado queria consumir apenas cantores-compositores. Enfim: o crápula Dylan pôr o mercado fonográfico americano em xeque (a soldo de Havana ou Moscou, diziam) e a moda agora era ser fanhoso e talentoso, ou seja, um ultraje à moral e aos bons costumes.


Como se não bastasse, Bob Dylan não parou de mentir. Do nada, viu que a moda agora eram conjuntos musicais eletrificados fazendo música ligeira, como os Beatles. Mesmo que ele não gostasse, ele fez como fez com Patton, Guthrie, Henry Thomas e todos aqueles folk-singers castiços do tempo do gramofone. Resolveu forjar, da maneira mais abjeta e oportunista, a sua própria versão de uma banda de rock.

Foi quando ele cometeu o acinte de abandonar as jornadas de esquerda e escrever letras surrealistas e sem sentido nenhum, com versos ridículos como "o sol não é amarelo, é galinha", para provocar tanto quem caiu no seu conto do vigário quanto quem não gostava dele.

Sabem aquela querela em Newport, em 1965, quando ele trocou o violão pela guitarra? Ele morre dizendo que não, mas aquilo foi uma manobra WTF prá mandar todos aqueles ingênuos úteis às favas. Mandou o velho Pete Seeger pegar o seu avoengo e ingênuo We Shall Overcome e ver se ele está na esquina da 4th Street com um macaquinho e seu realejo e todos aqueles sombrios perdedores mortos-vivos da fila da Desolação. Ele sabe que ninguém vai matar fascistas cantando isso. A verdade é essa: o Mr Jones eram eles, e eram vocês, que achavam que estavam tão certos do que sabiam e de toda a mensagem e estavam todos por fora. Eu não quero mudar o mundo, eu quero infernizar vocês, senhoras e senhores!

Vocês não sabem nada, ficam citando livros e não aprenderam nada, todos são Judas. Dylan não é um Judas, Dylan é um personagem convencendo a VOCÊS a veracidade das mentiras dele, como diria o Paul Klee: os traidores são vocês, que não têm o que fazer. Vocês estão errados, vocês acreditaram num embuste, numa falcatrua. Não adianta reclamar com ele, reclamem com o SAC. Ele é um produto de consumo como tudo nesse mundo debaixo do sol. Querem ouvir Times They Are Changin'? Me esqueçam, me odeiem, vai ser melhor prá vocês.


Pior: depois de forjar aquele acidente de moto, ele voltou, anos depois, e gravou um disco imitando todos aqueles rednecks quadradões de Nashville enquanto gente como o Johnny Cash, o Waylon Jennings e o Willie Nelson quebravam lanças numa guerra cruenta contra o Nashville Sound, e Dylan resolveu adotar a pose de conservador e pai de família, com musiquinhas do tipo: "deita na minha cama, sua linda". Olha o naipe da parada. Menestrel das Esquerdas pai de família, pintando quadros e querendo dar tiros nos fãs chatos em Woodstock. Menestrel das Esquerdas. E a conta bancária? Vai bem?


Dylan: I don't believe you. You're a liar. Parabéns, seu mentiroso.

Monday, May 23, 2011

O Elixir




Quem primeiro percebeu foi o vizinho.

Ele foi até a rua levar o lixo, quando se encontraram. O senhor do 101 olhou para ele de alto a baixo, depois voltou para a testa, e exclamou: ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. “Não”, ele respondeu, meio tímido.. “É que o seu cabelo está vindo, não lhe parece?”. “Pode ser, pode ser”, respondeu, lacônico, ao fechar a porta. Foi correndo até o espelho do banheiro, e ficou analisando a sua careca, como se fosse um jogo dos sete erros. É mesmo, ele exultou! O cabelo estava crescendo. Observava a careca, de alto a baixo. Parecia espantoso. Em pouco tempo, via uma mecha se ensaiar por sobre seus olhos, como se fosse um pequenino pé de feijão plantado num chumaço de algodão, perdido dentro de um pote de Danoninho.

Estava ficando calvo desde a adolescência. Uma prima o viu agachado, e brincou: “olha essa careca, guri! Vais ficar como um frade!”. E riu. Ele fingiu que não era nada e, de fato, não se importou com queda de cabelo, até que chegou a uma certa idade em que, se continuasse a negligenciar a sua progressiva calvície, não haveria nenhum fio de cabelo para contar a história em poucos anos. Pior: sua careca ganhava mais destaque com o rosto escanhoado. Quando cortava o cabelo, se sentia nu. Parecia ouvir o riso das pessoas. Se sentia frágil, em ver que era apenas um careca hediondo. Logo seria reconhecido como “o careca”, ou “bom cabelo”, entre outros apelidos menos depreciativos.

Sempre que ele via alguém com vasta cabeleira, olhava de esguelho, com inveja. Ficava impressionado com o colosso capilar. Imaginava aquele sujeito com um cabelão de maestro tentando pentear aquela melena indomável como o cavalo de Alexandre em frente do mesmo espelho em que ele mirava a sua testa devoluta no banheiro, irremedialmente pelada e rosada, como um porco recém nascido. Ele mesmo, com a calvície avançada e maníaca, devastando o seu crânio como uma seca inexorável, estava cada vez mais achando que era uma caricatura do Gaguinho. O medo aumentava quando estava sozinho em seus pensamentos, imaginando que jamais chamaria a atenção de uma mulher bonita, a não ser, é claro, por causa da sua inexistente cabeleira.

Um dia andava pelo centro quando encontrou um velho pajé. O homem vendia na rua saquinhos com folhas e ervas, e vidrinhos com extratos de raízes de plantas de nomes impronunciáveis. Não resistiu, e perguntou ao velho índio: “o senhor não tem nada para queda de cabelo?”. O ambulante riu: “queda de cabelo, hein? Vamos ver, vamos ver”. Remexeu uma mochila ao lado, no chão, até achar um pequeno frasco. Puxou e colocou na vista do rapaz. “Aqui, isto vai lhe restituir o cabelo que você perdeu”. O jovem careca não pensou duas vezes, pegou o preço e levou o frasco como se fosse um raro tesouro. E foi correndo para casa, se perdendo no meio da multidão, sem ouvir o pajé que, antes que terminasse de contar as moedas, viu que seu cliente sumira da sua vista.

Na frente do espelho, ele pensou em passar o remédio no cabelo. Passou um pouco na testa. Quando acordou, no outro dia, nada. Esperou mais um dia, e nada de novo. Pensou: “e se essa porcaria for uma poção?”. Olhou o vidrinho. Cheirou. O odor era suave, parecia água de melissa com erva doce. Decididamente, aquilo deveria ser alguma beberragem, foi por isso que de nada adiantava passar no cabelo. Entornou o conteúdo goela abaixo. Uah! Horrível! Seus olhos lacrimejavam! Depois, se sentiu culpado. E se fosse um tratamento para passar na cabeça mesmo, e que levasse algum tempo para que desse algum resultado? E se o tal remédio fosse apenas mais um conto do vigário?

Só se lembrou que tinha ingerido o elixir quando o vizinho exclamou ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. Um raio em sua mente lhe recordou do pajé. Ao mesmo tempo em que tentava explicar alguma coisa, se deu conta que havia acontecido alguma coisa diferente. Não sabia o que dizer, só não queria revelar qualquer ponta de vaidade em dizer ao seu colega de andar que estava tratando a sua progressiva calvície. Entrou em case e viu, no espelho. O seu cabelo estava crescendo! Pensou em ir até o centro e agradecer ao pajé. Mas não. Procurou o frasco com o resto do remédio, que ele havia jogado fora. Estava no lixo, o que fazer? Esperou que o vizinho voltasse para casa, e então, revirou a sacola. Lá estava o vidrinho.

Fechou a porta, foi até uma pena e lavou o frasco. Abriu a tampa e, exultante, bebeu todo o resto do elixir. Horas depois, ele começou a sentir um certo torpor nos braços e pernas. Foi deitar-se. Quando acordou, outra surpresa! Tinha todo o seu cabelo redesenhado por sobre a sua antiga careca! Era um milagre! Pensou em ir até o pajé, e lhe pagar mais pelo presente. Mas preferiu passear com a nova melena. Os conhecidos olhavam, e não acreditavam. “Como se explica? É peruca? Interlace?”. Nada, ele respondia. Dizia que tinha uma doença que lhe impedia o crescimento da massa capilar, mas agora, graças à Medicina, estava curado. Baixava a cabeça para que as pessoas vissem. Era cabelo de verdade, não era entrelaçamento, muito menos peruca. Ele sabia que, pior do que arranjar uma garota por não ter cabelo era tentar arrumar mulher de peruca, e passar a vergonha de confessar que ele era um reles Kojak da vida.

Mas agora ele não era mais um careca, tinha cabelo e franja na testa, como um compositor, um poeta. Feliz da vida, foi dormir. Dormiu um sono longo, como se fossem séculos, sonhos lúcidos, ilustrados, cheios de passagens enigmáticas e histórias entrecortadas, mas sem nenhum sentido. Acordou estranho. Foi até o espelho. Não pôde acreditar. O seu cabelo havia crescido consideravelmente em apenas uma noite de sono. Achou que realmente havia dormido durante dias a fio. Olhou para o relógio: não, haviam se passado apenas nove horas. Seu cabelo parecia o de um velho hippie. E via pelos ralos nas mãos e no peito. Não, não era possível. Horas depois, seu cabelo parecia uma longa cabeleira de crente pentecostal. E agora? Não pensou duas vezes: foi procurar o pajé.

Algo lhe dizia que ele adiantou o processo. Alguma coisa indicava que ele fez a coisa errada. Chegou no local, nada do velho pajé. Perguntou a outro ambulante, ao lado. O que aconteceu com o pajé que vendia ervas aqui ao lado?”. O vendedor chegou perto, e disse: “aquele índio maluco? Parece que ele se meteu numa briga, se meteu com uns polícias, e acabou sendo degolado”. A resposta lhe gelou a espinha. Insistiu se era verdade. Era. O índio se chamava Jeremias, era um curandeiro, foi confundido com um traficante, e morreu fulminado com três tiros. A degola ficava por conta da alegoria do outro vendedor. Mas isso não resolvia nada. O que seria dele agora? Seu cabelo estava cada vez maior. Se sentia observado. As pessoas o olhavam como se ele fosse um esquizofrênico, com uma longa cabeleira depressiva. Amedrontado, pegou um táxi.

Chegou em frente ao espelho. Pegou uma máquina e rapou seu cabelo. Em seguida, lavou a cabeça. Estava normal, de novo. Em minutos, o cabelo cresceu, consideravelmente. Cortou, cortou, cortou até que, exausto, dormiu. Aquilo parecia um pesadelo. No outro dia, sua cabeça pesava, se mexeu, e não pôde. Levantou os braços. Era o abominável homem das neves. Correu para o espelho do banheiro. Parecia um velho druida, o cabelo envelhecia 1a media em que crescia. Pior: quanto mais ele rapava, com mais fúria ele voltava. Agora, seu cabelo aumentava em espessura nas costas, braços, pernas e tórax. Estava virando um monstro capilar. Chorou, desesperado. Fechou cortinas e janelas. Ninguém poderia ver aquilo. Ele queria apenas ser atraente, mas virou uma atração de circo. Se sentia mais desesperado do que quanto estava apenas calvo.

Sentiu saudades de quando era apenas um careca simpático. Agoras, não podia sair de casa sem antes passar máquina em todo o corpo; se passasse, ele sabia que seus pelos cresceriam consideravelmente. Não foi mais ao trabalho. Cortou os telefones. A campainha tocava, ele colocou um aviso de que não estava em casa. Na verdade, queria fugir, mas estava fadado àquele trabalho de Sísifo, de se depilar e ver todo o cabelo crescer, na mesma medida. Além disso, a casa toda havia se transformado num enorme tapete de cabelos cortados. Cada vez mais desesperado, ele cortava tudo, incessantemente, enquanto via o cabelo ressurgir ao mesmo tempo. Não queria que ninguém o visse. Não conseguia pensar, não conseguia comer ou se comunicar, queria apenas sumir, não queria sair, se saísse, poderia ser preso como um babuíno de zoológico. Já não sabia mais como aquilo ia parar. Dormia achando que era um pesadelo ambulante. Aquilo não era de verdade. Não podia ser verdade. Acordava cada vez mais cabeludo e peludo.

Acordou sentindo falta de ar. Abriu caminho para as narinas, não conseguia achar o nariz. Enfiou as mãos dentro das narinas, ele tinha pêlos dentro do nariz. Não conseguia respirar, mexeu a língua, ele tinha pêlos enormes, pareciam pêlos de javali, por toda a língua. Tentou se dirigir até o espelho do banheiro, se resvalando na imensa peruca que o seu pequeno quarto havia se transformado, com a sua melena e todo o cabelo cortado pelo corredor. Via apenas os seus olhos inchados, no meio do espelho. Puxou um banco, e ficou sentado ali mesmo, olhando para si mesmo, com o seu cabelo preto com uma mecha branca de metros em fio, caindo ao lado do seu nariz, esperando que o ar lhe faltasse. A sua língua era uma hedionda bola de tricô, respirava alto, olhando para os seus olhos, tentando se lembrar do seu rosto antigo, da sua antiga e saudosa careca. Não pensava mais nele. Ele não era nada. Sabia que iria morrer o que sempre achou que fosse, como uma curiosa atração de circo. Pensou nos olhos castanhos de Marisa, nos seus olhinhos meigos, na sua voz doce e no seu sorrisinho de dentes falhos. Sabia que iria morrer, mas não tinha medo, porque ia morrer pensando em Marisa, que era pequena, meiga, e usava uma bandana preta. A lembrança do sorriso dela lhe deixou alado, leve como uma pluma, por um instante. Mas ela nem ao menos sabia o seu nome. Mas nada mais importava agora, Marisa. Ma-ri-sa. Três sílabas que ele guardava, com todo o seu ardor e paixão, no cofre do seu coração. Ele pensava em Marisa, pensava alto o nome mais lindo que ele jamais ouvira, e se sentia amortalhado de tanto amor por ela. Ele morria feliz. Finalmente feliz. Havia sido salvo pela doçura dos olhos dela e pelo sorriso lindo e tímido de Marisa, o seu mais intenso e derradeiro amor. Marisa.

Monday, May 09, 2011

Crossroads


O rei do Delta Blues


Robert Johnson, cujo centenário é celebrado essa semana, foi entronizado como o maior músico de blues de todos os tempos e definidor de um gênero musical que é a quintessência da alma americana.

No entanto, ele seria apenas uma lenda de um rapsodo do sul dos Estados Unidos e se não fosse por um engenheiro de som visionário chamado H. C. Speir. Como produtor musical numa época em que a Indústria Cultural não se prestava nem como um conceito em sociologia, como diletente, ele saiu à cata de músicos itinerantes que vagueavam pelo Delta do Missisipi.

Speir tinha uma loja de discos em Farnish Street, num bairro negro de Jackson e era uma espécie de descobridor de talentos para selos como a Decca e a Vocalion, numa época em que a virtude de se gravar discos se valia mais pelo exótico do que por um processo ostensivamente ditado pelo mercado.

Para isso, ele usava um equipamento especial para a gravação de demos de artistas que ele achava na rua, registrando tudo em acetato, e mandando para as matrizes dos selos. Foi assim que, sem querer, ele registrou a arte viva e pulsante do blues sulista, de Mississippi Sheiks, Blind Joe Reynolds, Blind Roosevelt Graves, Geeshie Wiley até Charlie Patton, por exemplo.

Muitas dessas gravações foram lançadas em 78 rotações, e mais tarde compiladas em seleções que marcariam época, comono Anthology of American Folk Music, uma seleção desses "acidentes fonográficos" que se tornariam um evangelho para as novas gerações.

O próprio legado musical de Robert Johnson acabou sendo relançado na mesma época do Anthology, porém pela Columbia Records, em 1960, por honra e graça de John Hammond que, assim como Harry Everett Smith, o idelizador da antologia folk que fez a cabeça de gente como Bob Dylan, Dave Van Ronk e o Kingston Trio, se interessou em fazer um revival daqueles discos avoengos.

Talvez Charlie Patton, considerado como o pai de todos os "delta blues singers", seja o maior erxpoente do blues. Contudo, a faustiana lenda em torno da figura de Johnson, como se sabe, é devoradora: o seu carisma viria de sua própria figura transbordante, misteriosa e efêmera, que seria a inspiração de muitos músicos de rock a partir dos anos 60.


Eric Clapton conta que ganhou o King Of Delta Blues Singers de um amigo, e levou tempo para decifrá-lo. No entanto, assim como aconteceu com a maioria daqueles rapsodos do Mississipi, o músico inglês se apaixonou pelo fato de que a genialidade de todos eles era inversamente proporcional à sua reputação. Todos eram subestimadíssimos, e o jovem Clapton se ressentia disso. Por que ninguém dava bola para aqueles gênios do blues?

Robert Johnson, como todos os outros, viveu rápido, foi desassistido, porém misteriosamente aprendeu a tocar violão de forma miraculosa e, graças a um produtor musical maluco, teve suas canções gravadas.

O que seria de Johnson sem H. C. Speir? Depois de ouvi-lo em sua loja, mandou que Robert fosse de mala e cuia para San Antonio, Texas, para uma sessão em San Antonio, no Texas. O contato seria com Ernie Oertle, que o esperaria lá mesmo.

A primeira sessão (de duas) se deu em 23 de novembro de 1936, no quarto 414 daquele hotel, onde a Brunswick (uma subsidiária da Decca) havia improvisado um estúdio. Johnson empunhou seu violão diante do microfone contra a parede e gravou Come On In My Kitchen, Kind Hearted Woman Blues, entre outras.



Um ano depois, ele faria a sua derradeira sessão, já como artista da Bruswick, em Dallas. No total, seriam 12 canções, algumas contando com outtakes (tomadas alternativas da mesma música). Das duas sessões, onze discos foram lançados com Johnson ainda vivo. O material todo só seria relançado, depois de vinte anos de obscuridade, a partir dos anos 60, quando o autor de Crossroad Blues e Me And Devil Blues seria redescoberto.

A Columbia lançou primeiramente dois elepês com parte da produção de Johnson, em 1960 e em 1969. No entanto, uma edição crítica com todas as gravações só viria à lume em 1990, já em formato digital. The Complete Recordings tem as 29 originais, mais 13 outtakes. Junto com aqueles 78 rotações do Hot Five e do Hot seven do Louis Armstrong, dos anos 20, juntos eles compreeendem o evangelho da música negra americana no século XX. O resto é lenda.

Saturday, May 07, 2011

Quando Porto Alegre Virou Rio


Guaíba subiu mais de quatro metros




Quem entra distraidamente no Portão do Largo Glênio Peres do Marcado Público de Porto Alegre talvez nem repare em um marco, situado na parede da entrada, à esquerda, que fica mais ou menos na altura do culote dos transeuntes.

Se ele reparar bem, o marco mostra exatamente onde chegaram as águas do Guaíba há exatos setenta anos, quando as chuvas que caíram no estado, entre abril e maio de 1941 chegou a 791 mílimetros, equivalente à metade da média anual na cidade.

A capital já havia assistido a cheias anteriores, como em 1905, 1912, 1914 e 1928. Mas em 41, as águas fizeram com que o Guaíba, que é o depositário de vários rios, como o Jacuí, o Gravataí, o Sinos e o Caí, subiu mais de quatro metros. Em poucos dias, toda a região ribeirinha de Porto Alegre ficou debaixo d'água: desde Navegantes e São João até a Praia de Belas eas paragens circundadas pelo Arroio Dilúvio, que ainda não havia sido canalizado.

A situação mais funesta se deu no Centro que, ao contrário de hoje, catalisava toda a vida da cidade. Em pouco tempo, as principais ruas da urbe ficariam submersas, obrigando as pessoas a trafegarem pela Rua da Praia e adjacências de barcos, como em Veneza.

As chuvas começaram pouco antes da Páscoa de 41, em meados de abril. As autoriades em geral, no entanto, subestimaram a situação, principalmente quando o mau tempo deu mostras de arrefecimento, no começo de maio. Foi quando, além de mais e mais chuva, o vento minuano sul que soprava tenazmente sobre o estuário do rio acabou represando as águas contra o seu curso natural, rumo à Lagoa dos Patos.

O auge da tragédia se deu na segunda, 5 de maio: o Guaíba avançou contra a cidade, subiu a rua da Ladeira e ganhou a Rua da Praia. Aquele trecho, embora muitos não saibam hoje, era a Times Square porto-alegrense - um afamado ponto de encontro da boemia bem vestida da cidade, englobando diversas lojas, cafés de estirpe, como o Colombo e a Confeitaria Central, além do respectivo cinema, de mesmo nome.

Nilo Ruschel, no seu livro Rua da Praia, narra a história de um comerciante que precisou de ajuda do famoso Antoninho, garçom da Central, para salvar o seu arquivo de papéis em seu escritório, tendo que nadar debaixo d' água, como um escafandrista.

Ao sul da Andradas, as águas haviam reduzido 90% da capacidade da Usina de eletricidade do Gasômetro, deixando o Centro às escuras. Antes, o Guaíba havia se vingado da construção do Cais, estragando toda a fiação subterrânea dos gundastes, paralisando todo o serviço de carga e descarga do Porto.

Mais: toda a comunicação telefônica e telegráfica com o interior foi interrompida. O caos no Centro também atingiu os seus dois jornais, o Diário de N otícias, que ficava na esquina da Gen. Câmara e a Caldas Júnior, que levou a pior: o estrago nas suas impressoras fez com o que o "róseo" parasse de circular por uma semana.


Na Praia de Belas, o rio avançou ferozmente contra o Colégio Pão dos Pobres, onde consta que um cônego veio a falecer afogado. O antigo Aeroporto São João também ficou submerso, e o tráfego aéreo, ainda incipiente, teve de ser deslocado para o campo de pouso da Air France, em Cachoeirinha.

Quem mais sofreu foi a população mais remediada, e que, na época, vivia na região ribeirinha conhecida como o Areal da Baronesa e a Ilhota, onde hoje fica parte da Cidade Baixa e Menino Deus. A área, que já era alagadiça por natureza, desapareceu porque ali desaguaava o Arroio Dilúvio, quase onde ficava a Ponte de Pedra.

Para ajudar os desabrigados, o prefeito-interventor Loureiro da Silva e o governador Cordeiro de Farias, junto com o Exército e a Brigada Militar, realizaram uma força-terefa, deslocando os atingidos para escolas ou até mesmo para debaixo do Viaduto Otávio Rocha. Ao mesmo tempo, emissoras de rádio arrecadavam fundos junto aos ouvintes, para a aquisição de mantimentos.

Cordeiro de Farias teve que pedir auxílio federal. Não havia mais artigos de primeira necessidade e o que ainda restava era vendido a peso de ouro pelos comerciantes, obrigando a Prefeitura a forçar os comerciantes a tabelarem os preços. As fábricas paravam. Só na Renner, cerca de 2 mil funcionários tiveram que cruzar os braços.

A Viação Férrea, que ficava onde hoje está a Rodoviária, também suspendeu atividades. Os trilhos estavam submersos, a viagem à Santa Maria fora suspensa. Para viajar, os porto-alegrenses eram obrigados a se deslocar de barca até o Vale dos sinos para então retomar o trajeto pelos trilhos.


O ápice da tragédia foi o alagamento do maquinário do Gasômetro. Mesmo depois de reformas para evitar sinostros desse tipo, as águas tomaram a usina de assalto, deixando Porto Alegre toda sem luz. Mesmo que os operários tentassem criar barreiras de tijolos, o Guaíba entrava por todos os lados, até que chegou no estoque de carvão: xeque-mate. A muito custo, os operários conseguiram salvar duas bombas do total de oito.

Na noite de 8 de maio (o primeiro dia de sol), os bondes pararam, os postes apagaram e a luz das residências foi sumindo, até o Centro ficar às escuras e debaixo d´'agua. A Praça XV de Novembro, onde fica o Abrigo dos Bondes e o Chalé, era um lago onde vapores podiam trafegar sem risco de encalhar; as fotos da época são inacreditáveis. Porto Alegre virou rio.


As águas não subiam, mas também não baixavam. O problema agora era outro: o risco de que a força das águas tivesse destruído a rede cloacal, expondo à população à toda a sorte de epidemias, como a de tifo, que aconteceu na enchente de 28, e que atingiu 20 mil pessoas. Logo, a Secretaria da Saúde passou a vacinar a população. Por conta disso, 55 mil porto-alegrenses foram imunizados contra a tifo e varíola.

A partir da segunda quinzena de maio, a cidade começava a contabilizar o estrago. De acordo com a Delegacia Regional de Recenseamento, 15 mil residências foram destruídas, atingindo cerca de 70 mil pessoas (que, segundo o censo de 40, contava 272 mil habitantes). Pelo menos 600 estabelecimentos comerciais tiveram prejuízos materiais. Segundo o livro A Enchente de 41, de Rafael Guimaraens (Editora Libretos, 2009), o prejuízo total foi de 60 mil contos de reis, ou US$ 30 milhões.

No dia 20 de maio, às águas já haviam baixado ao nível da cheia de 1928, algumas empresas retomariam suas atividades; outras, contudo, não abririram mais as portas. a ajuda governamental, transubstanciada em moratória de dívidas e a criação de linhas de crédito para os capitães não ajudaria a todos, já que muitos não tinham nem como recomeçar do nada.

Junho chegou e Porto Alegre ainda contava 4 mil desabrigados pela enchente de 41.

Depois de seis enchentes terríveis, a triste constatação: Porto alegre teria que proteger-se das próximas. Ainda naquele ano, técnicos do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) sugeriu um sistema de diques e, no Centro, uma cortina de concreto.

No entanto, o projeto só seria concretizado (desculpem o péssimo trocadilho) nos anos 70. A primeira decisão municipal, por sua vez, foi a canalização do Arroio Dilúvio. em seu curso original, ele descia pela Sebastião Leão até desaguar na Ilhota, onde hoje fica o Ginásio Tesourinha, até chegar no Pão dos Pobres. Com a canalização, o Dilúvio foi ligado diretamente ao Guaíba, no atual aterro da Praia de Belas.

Concluído em plena Ditadura Militar, o Muro da Mauá (como é chamado) surgiu numa época em que esse tipo de obra pública era plenamente viável, dado a facilidade em se obter empréstimos internacionais a juros baixos. O muro, por sinal, é a piece de resistence de um sistema de diques e casas de bombas que 68 quilômetros, protegendo a capital do Rio Grande de outro desastre como a que ocorreu há setemta anos, naquele maio de 41.

Inaugurado em 1974, o "muro" tem 2,5 quilômetros de extensão, três de altura e três abaixo do nível do chão. As suas dimensôes são embasadas nos índices de 1941.Porém, como a opbra foi outorgada à população num período discricionário da história recente, como diz Guimarans à guisa de conclusão do livro, "a presença daquele cinzento e ostensivo monumento de concreto armado foi transformado numa espécie de ícone do obscurantismo, um entrave tecnocrático a conspirar contra a saudável relação da cidade com o Guaíba".

Monday, May 02, 2011

MEDÉIA

(CENA ÚNICA)


PERSONAGENS: JASÃO, MEDÉIA E A AMA DE MEDÉIA.



Cenário — Cozinha. Uma mulher lavando os pratos. Seu marido entra, abre a geladeira, e toma água gelada direto do gargalo da garrafa de plástico.



JASÃO (Encontra Medéia na cozinha. Dispara um olhar inquieto para a esposa e, depois de suspira) Querida, o que você acha do Creonte?

MEDÉIA (Admirada) O Creonte? Ué? Por que diabos você quer a minha opinião a respeito dele? Eu, hein?

JASÃO (Sério) Por nada, meu bem. (Confidencial) Então quer dizer que você não acha nada a respeito dele?

MEDÉIA Não (À parte) Acho ele inclusive um chato.

JASÃO (Solene) Acaba de suspirar. Bateu as botas. Morreu!

MEDÉIA (Esbugalhada) Não! (Leva as mãos à cabeça) Meu amor! (tropeçando nas cadeiras) Meu amor! Não!

AMA DE MEDÉIA (Irrompe) O que está acontecendo? Dona Medéia, o que aconteceu?

JASÃO (Sardônico) Nada, foi a minha mulher aqui. O marido dela acabou de bater as botas.

AMA DE MEDÉIA: Mas, seu Jasão!

JASÃO (Com exaltação) Não tem mas seu Jasão coisa alguma! O amante dela, você quer saber quem é o amante dela? É o Creonte, aquele careca e gordo que vem comer aqui em casa de vez em quando!

MEDÉIA (Arremessa a caçarola na parede, derrubando o calendário das Edições Paulinas. Olha para ambos, com o dedo em riste com raiva) Sabem de uma coisa? (em tom desafiador) querem saber? Hein?

JASÃO (Alterado) Fala, desgraçada! Fala bem alto, prá todo mundo, porque a gente quer saber. (olha para todos que se amontoavam para ver a cena). Vocês não querem saber o que ela tem para dizer, pessoal, hein? (virando-se para Medéia) Viu? Todo mundo quer saber.

MEDÉIA (Debochada) Pode rir, filho da mãe! Eu traí você com aquele gordo careca. E daí? Ele era muito melhor do que você! Ele me come melhor! Melhor! Mil vezes melhor! (olhando para a ama) Eu gozava com ele, tá entendendo? Gozava! (para Jasão) Você? Olhe para você! Você nunca chegou aos pés dele! Eu vou ao enterro do Creonte! E ninguém aqui vai me impedir! Eu sou mais viúva do que a mulher dele! Aquela broaca! Uma mulherzinha de nada. Ele gostava era de mim! (com o olhar perdido em algum ponto da parede) Eu sou mais gostosa, sou melhor de cama, ele me dizia isto! Eu sou redondinha! Ela é uma tábua seca! Eu tenho peitos. Peitos!

AMA DE MEDÉIA (Berrando) Ai meu Deus. Ai!

MEDÉIA (Enxugando o rosto) Agora que o meu amor morreu, eu não tenho de mais nada (espetando o dedo para Jasão) Nada!

JASÃO (Farto) Agora chega! A comédia acabou! (olhando para todos) Fora daqui!

AMA DE MEDÉIA (Aos prantos) Pare, seu Jasão, o senhor está descontrolado!

JASÃO (Em tom ameaçador) Descontrolado é o cacete! (os vizinhos saem)

MEDÉIA (Dolorosa) Filho da mãe...

Engole esse choro, vagabunda! Já deu teu espetáculo para todo mundo! Então o Creonte era um sujeitinho insignificante, não é? Era insignificante e comia o teu feijão! Pois saiba que eu menti.

MEDÉIA (espantada) Mentiu o quê?

JASÃO Menti.

MEDÉIA (Intrigada) Mentiu o quê?

JASÃO: (Acendendo um cigarro) Ele não morreu coisa nenhuma. Quis provar você, e caíste bem direitinho, sua adúltera idiota.

MEDÉIA (Esboça um sorriso desconcertado) O quê? Ele está vivo?

JASÃO Está sim (Expelindo nicotina) mais vivo do que eu.

MEDÉIA (Cobre a boca com as mãos) Oh, meu Deus!

JASÃO (Num ímpeto) Deus o cacete, sua cretina! Olha, olha aqui na minha cara, e responde: é o teu machinho, é? (Apertando Medéia) É teu macho, é? Fala, desgraçada!

MEDÉIA (Se desvencilhando de Jasão) Me larga, bruto!

JASÃO: Que foi? Tá com medo agora, a mulher sem medo está com medo, agora?

MEDÉIA (Pendurada pelos cabelos) Frouxo! (Leva um tapa) Frouxo! (Outro) Frouxo! (Mais outro) Frouxo! (Se esgueira, e cai sobre o braço protegendo o rosto, que se parte sobre a ponta da mesa) Ai! Deus sabe a quem cabe toda a culpa!

JASÃO: (Desferindo-lhe outro soco) Sabem também como é tenebrosa é a tua mente! (Novo soco e Medéia cai inerte sobre a mesa, abrindo o móvel em dois)

MEDÉIA (Rilhando os dentes) Pode vir, desgraçado! Vem, me chuta, acaba comigo! Pode vir, me mata! Me mata! Creonte é o meu amor sim, ele é o meu primeiro e único amor, e eu amarei ele na morte, e sei que ele chorará por mim, porque ele me ama mais do que a sua mulher!

JASÃO (Furioso) Toma!

MEDÉIA: Sim, eu amo ele e te odeio, ele é mais homem do que você, e você é um nada perto dele! Você é um nada, nunca foi nada, nunca vai ser nada! (Esconde o rosto para novo ataque de Jasão. O soco lhe faz abrir os braços e derrubar o rádio da estante da cozinha. A queda faz com que o aparelho ligue em alto volume) Meu amor! Ai! (Cai no chão. Jasão chuta Medéia várias vezes, que apanhava calada)

JASÃO (Descontrolado, chuta o rosto de Medéia ) Frouxo, é?
MEDÉIA (Num derradeiro suspiro) Creonte! (morre sob repetidos chutes de Jasão)


CORIFEU (Enquanto o coro se retira) Dos píncaros do Olimpo Zeus dirige
O curso dos eventos incontáveis. E muitas vezes os deuses nos deixam atônitos
Em seus desígnios. Entretanto, se concretiza a expectativa e vemos afinal, o esperado).