Tuesday, October 31, 2006

Pirulito e Sabonete



— Governo disse que, a partir de agora, com o novo mandato, acabou a "Era Palocci"...

— E a "Era Marcos Valério"?

Tuesday, October 24, 2006

Revolving

ABRACADABRA!
Fã dos Beatles reconta em livro virtual os bastidores, as histórias e a lisergia do álbum Revolver


O nome Ray Newman pode passar batido a qualquer um: não é jornalista, não é crítico musical, sequer é escritor. Na verdade, é um reles funcionário público de Sua Majestade a Rainha Elizabeth e, como todo inglês, é beatlemaníaco. Na data em que se comemoram os quarenta anos de um dos trabalhos mais emblemáticos de John, Paul, George e Ringo — Revolver — ele resolveu criar coragem e escrever um livro sobre o assunto. Munido de um aparato incomum: entrevistas, livros, vídeo se todo o que se referisse ao tema, Newman escreveu uma obra sumária sobre o álbum. Na partida, ele revela que foi a curiosidade que o moveu a escrever Abracadabra! — The Complete History of Beatles’ Revolver (103 pp). Verdade é que muito do livro (virtual, diga-se de passagem, e pode ser baixado de graça através da página http://www.revolverbook.co.uk ) não é novidade para os fãs — já que a maioria das informações aparece dispersa na bibliografia beatle (no Antologia ou nos livros de Mark Lewisohn, por exemplo) mas, pela primeira vez, todo esse cabedal pode ser encontrado um compêndio, muito bem organizado, aliás, e em formato monográfico.

Monográfico porque ele encerra uma tese peculiar: a de que Revolver foi o último trabalho que amalgamou o espírito do quarteto em cada faixa: para Newman, os Beatles estão juntos — corpo, alma e muito mais — em cada frase, em cada solo, em cada passagem musical, em cada idéia. Mais do que isso, para ele, este álbum foi o trabalho em que esse sentimento os levou mais longe em matéria de ambição musical, e tudo aconteceu num curto porém sólido e crucial período da trajetória deles. Ray entende que aquele período permitiu aos quatro que desenvolvessem a sua criatividade intelectual a zarpar rumo ao infinito de possibilidades e absorver toda a sorte de influências, musicais ou não, catalisando tudo aquilo em sua própria música.


Iondianismo — A primeira contribuição (ou “vertente”) do álbum foi o orientalismo de George Harrison. Depois de atuar no filme Help!, o guitarrista decidiu se aprofundar na música indiana. Comprou vários discos de Ravi Shankar e arranjou uma cítara, adquirida numa loja em Oxford Street chamada Indiacraft. Como fazia desde o seu primeiro violão, resolveu desbravar aquele exótico instrumento à sua maneira. Newman revela que essa estética oriental se disseminava na boemia bem vestida da Londres dos anos 60, a Swinging’ London: "mesmo nos círculos intelectuais mais íntimos de Londres, sempre havia espaço para a cultura oriental ao mesmo tempo", diz.

O escritor também explica que, antes de (e ao mesmo tempo que) George, os Yardbirds tiveram a primazia de utilizar um conjunto de indianos em "Heart Full Of Soul", sob a produção de Jeff Back. Enquanto isso, os Kinks experimentavam esse tipo de sonoridade em "See My Friends". Brian Jones pegaria a cítara de Harrison emprestada e gravaria "Paint It Black" com os Rolling Stones. George, no entanto, queria ir além da simples curtição: resolveu estudar música indiana clássica com Ayana Agandi, da Asian Music Circle.

Ray conta que Harrison também descobriu a religião hindu mas, segundo Newman, de certa maneira, suas experiências com LSD lhe permitiram ter um senso maior de beatitude, que lhe possibilitou maior receptividade dessa filosofia. John Lennon estava mais 'perto' de George por causa do ácido, e "Rain" é uma resposta da musicalidade dividida por ambos, no interesse em criar algo que fosse além dos clichês do rhythm 'n blues. "Tomorrow Never Kows" seria outro exemplo dessa paráfrase 'orientalesca'. Certo dia, Paul e John ficaram ouvindo um disco de música indiana. McCartney disse: "puxa, eles não mudam as cordas? Está tudo em mi, precisamos fazer algo assim!". O corolário dessa união entre indianismos e psicodelia seria entronizado em Revolver: logo depois, se disseminaria pelo universo pop. "Para o público, logo música oriental e LSD não teria muita diferença, seriam quase dois lados da mesma coisa", conclui Newman.




Capa de Revolver


Vanguarda — Na segunda “vertente” de Revolver estava Paul McCartney, que descobriu no pai de sua namorada Jane Asher, Richard, uma espécie de “mecenas”. Sua esposa, Margaret, era professora de música erudita; além de Jane, sua irmã Claire também era atriz e Peter, o irmão, era cantor. Foi nesse ambiente contíguo à vida cultural londrina que Paul viveu. Ao mesmo tempo, a influência erudita dos “Ashers” aumentou o seu interesse por música erudita, que passou a aumentar depois do sucesso de “Yesterday”.

Newman diz que Paul era comop Brian Jones dos Rolling Stones, pelo menos ao que se refere à curiosidade musical de conhecer vários instrumentos. Para Ray, Eleanor Rigby em parte é uma forma de McCartney ser reconhecido dentro daquele tipo de experiência erudita e de sintetizar não apenas novos conhecimentos sobre música, mas também sobre poesia e teatro numa canção pop.

Carroll e LSD — A terceira vertente do álbum estava em John Lennon, que vivia uma fase turbulenta de sua vida particular (meu “período Elvis”, disse ele), mas que encontrou um caminho diferente através de drogas recreativas, como o LSD. A droga, aliás, foi lhes apresentada (Newman reconta a história do episódio em que ele e George ingeriram ácido involuntariamente). Além disso, a descoberta da droga lhe havia despertado tudo um mundo que ele apenas imaginava desde que conhecera Lewis Caroll e Edward Lear na juventude, imaginando que aquele tipo de surrealismo era uma forma de realidade alternativa. A primeira “grande” expediência com LSD se daria no verão de 1965, em Los Angeles, quando John revelou ter consumido a droga deliberadamente, junto com os Byrds (Roger Mcginn, Crosby, etc) e o ator Peter Fonda (a história é conhecida desde que John a disseminou na entrevista à Playboy, em 1970).

Na ocasião, John revelou que viu Fonda no meio de uma “viagem”, dizendo que havia dado um tiro em si mesmo, e que teria sentido a experiência de estar morto: “I know what is like to be dead”, repetia Peter — frase que foi parar em “She Said, She Said”, de Revolver. Experiências desse tipo, segundo Huxley em As Portas da Percepção postula que experiências religiosas descritas por xamãs ou pastores em diversas culturas, se não são motivadas por algum elemento alucinógeno, pelo menos auxiliam em experiências paralelas. Disso, Lennon descobriu o Livro Tibetano dos Mortos e passou a utilizá-lo como um “manual”. Na obra de Leary, existe um capítulo de como proceder diante de uma sessão psicodélica, que diz: "whenever in doubt, turn off your mind and relax, float downstream".

Enquanto John à sua maneira tentava explorar os limites de estúdio para representar de maneira sonora tudo o que ele descobria em suas “viagens”, Paul radicalizava rumo à música concreta, ouvindo John Cage, Cornelius Cardew e Karlhaus Stockhausen. “Todos estávamos empurrando fronteiras, não como Berio, Cage, mas nós à nossa maneira, eu sempre dizia que amava Stockhausen nas entrevistas!”, relembra Paul. McCartney inclusive perdeu a chance de conhecê-lo pessoalmente em Liverpool, por problema de agenda: ambos tinham apresentações no mesmo horário.

Mas os Beatles acabaram homenageando o grande nome do concretismo musical ao colocá-lo na capa do Sgt. Pepper’s. “Paul estava pronto a dividir as suas experiências, assim como Harrison e Lennon estavam prestes a fazê-lo respectivamente sobre seus conhecimentos recentes sobre música indiana e LSD com ele”, diz Newman. O baixista, por sua vez, fazia experiências com colagens de gravações de rolo à revelia, e tencionava inclusive editar um disco solo sob esse tema, intitulado Paul McCartney Goes Too Far. Muito do que ele trabalhou ali seria reutilizado em “Tomorrow Never Kows”, de John, no sentido de catalisar em sons as idéias psicodélico-apocalíticas de Lennon (John revelou posteriormente que não gostou do resultado no disco). Isso ganhou corpo quando a gravadora EMI recebem tecnologia necessária para dar cabo disso tudo, em mesas que permitiam a manipulação de trechos de sons (os tape loops), através de uma tecnologia nova, intitulada ADT (Aditional Double Tracking).

Ray Newman também conta histórias interessantes: diz que o arranjo de “Here, There And Everywhare” nasceu de um encontro de Paul, que procurava novidades no rés-do-chão da vanguarda londrina, com o produtor dos Rolling Stones, Andrew Loog Oldham e Lou Adler (que trabalhara com os Stones) que, por sua vez, apareceu com um acetato do Pet Sounds, dos Beach Boys. Foi ali que eles conheceram o disco. O trabalho vocal de faixas como “Caroline No”, “You Still Believe In Me”, por exemplo.

Outra é que o dentista que lhes forneceu LSD pela primeira vez foi um sujeito chamado John Riley, e que clinicava em West London, porém não se sabe como ele tinha acesso à esse tipo de droga, mas sabe-se que era um dos “alternativos” da Swingin’London, e conhecia Syd Barrett e Roman Polanski. A versão conhecida é a de que a fornecedora de Riley era uma coelhinha da Playboy que ele namorava na época. Ela era conhecida como uma fotógrafa canadense e estava na mesa em que LSD foi servido à John, George e suas esposas. O resto da história é conhecido: os quatros saíram doidos pela cidade afora, entraram num conhecido pub da época (Ad Lib) já sob forte efeito da droga:

— Me lembro que foi a melhor sensação de minha vida, eu estava apaixonado, mas não era por ninguém — era por tudo, tudo estava correto, tudo estava em perfeita sintonia, e eu queria revelar a cada um lá dentro que eu amava a todos — gente que eu nunca tinha visto antes — disse George, sobre o ‘passeio psicodélico’.

Porém, o verdadeiro “Dr. Robert” não era Riley; ele atendia pelo mesmo nome da música: ele se chamava Robert Freymann, clinicava em Nova Iorque e era o fornecedor de drogas de várias celebridades.

Citado em Abracadabra, John diz apenas consumiu ácido cinco meses depois dessa involuntária experiência. Quando disse que o fez ‘deliberadamente’, revelou que havia lido e se inteirado de todos os efeitos. A concepção de letras como I’m Only Sleeping” estaria, conforma Newman, ligada à tendência dos usuários da droga em falar de “morte do ego” (“she makes me feel like I never been born”) e de sono profundo ou contemplação, alucinação, religiosidade.

Mas Newman entende que a droga não lhe deflagrou essas imagens, como no chá com bolinhos de Proust: para o autor, John já buscava por todas essas imagens desde o princípio, e o LSD foi o paroxismo dessa sensibilidade. “Os Beatles queriam ir além com Revolver: queriam refletir o mundo através da influência das drogas”. Ou ir além, tentando compreendê-lo através de um insight caleidoscópico. Em dado momento, não só a banda mas todos ao seu redor estavam envolvidos com ácido — mas ninguém foi mais fundo do que John. Mesmo em períodos de excesso de consumo, comenta o autor, Lennon produzia mais e mais.

Talvez o paroxismo da estética “beatles” com o psicodelismo estava em um tema como “And You Bird Can Sing”. Embora uma balada instrumental no velho estilo, a letra é insondável. Já “Tomorrow Never Knows”, que pode soar como uma faixa experimental à parte do corpo do álbum, é considerado por Ray Newman a síntese daquilo que seria o último trabalho genuinamente realizado em grupo, catalisando as idéias de Paul em música concreta, de George em orientalismo, de John em psicodelismo — e tudo sob a batuta de George Martin.


Deus no megafone — Martin, aliás, seria o oráculo dessa mudança: o desnível entre a velha música do quarteto com a nova era de cinco saaras. A partir dali, o produtor assumiria o papel fundamental no trabalho do quarteto. Antes, seu papel se resumia a realizar pequenas milagres, como fazê-los tocar mais alto, mais suave, editar três takes em uma só canção, povoar um disco com revocalizações ou um solo de piano aqui ou ali para reforçar determinado trecho solo. Agora, George não mais se limitava a capturar a sonoridade mas, sim, parar a música que existia apenas na cabeça dos Fab.

Afinal, a formação musical do mago de Abbey Road se tornou mais importante à medida em que a ambição dos Beatles crescia, já que nenhum deles sabia realmente ler música e, portanto, tinham um conhecimento mais empírico fora do rock tradicional. Ou, como disse alguém a respeito nesse período: Martin “se tornou o primeiro produtor a trabalhar um disco faixa por faixa — criando não apenas um novo produto, mas uma nova arte”. Ou como Paul disse em entrevista, na ocasião do lançamento de Revolver: “tem sons ali que que ninguém fez ainda...ninguém mesmo...nunca...”. Na época, um crítico chegou a dizer que a tecnologia impressa no álbum foi capaz de fazer John Lennon parecer “um Deus cantando através de um megafone gigante”.

Mais do que isso, aquele era o momento certo em que cada um deles poderia dividir as suas experiências pessoais entre si, mais do que antes, e não mais da mesma forma, como ele os intitula como o "grupo quintessencial", nos trabalhos posteriores. O novo álbum, que se intitularia Abracadabra! (o que explica o título do livro), seria, antes de mais nada, um disco 'futurista'. Para Newman, Revolver é a síntese de Lennon, McCartney, Harrison e Starr, em três caminhos que se fundiram, amalgamando LSD, Índia e avant-garde.