Thursday, February 25, 2016

Naquele tempo dos Mamonas

Mamonas Assassinas 

Parece mentira que faz duas décadas daquele fenômeno meteórico dos Mamonas Assassinas.

Lembro da primeira vez que eu ouvi eles. Foi em julho de 1995, quando me mandaram de São Paulo uma fita cassete com o primeiro disco da banda. Um primo meu enviou-me via parentes (em primeira mão!), dizendo que ele não parava de rir daquele disco. Claro que, naquela época, aqui no sul, e nem no Brasil, ninguém conhecia eles direito.

Acho que a fita apareceu por aqui quando o conjunto começou a aparecer lá, pela na 89 FM. Aqui, no auge das rádios musicais, você não precisava ter o disco; todas elas tocavam acho que todas, eu digo, todas as músicas. Quando os Mamonas finalmente estouraram no país, eu já tinha o disco na cabeça.

No auge do sucesso, o público dividiu-se. Muitos eram contra, por vários motivos. Era puro besteirol, moda passageira. O que me impressionou ouvindo o álbum foi que eles tocavam de verdade e tocavam bem. Contudo, o tipo de música, mesmo arrancando boas risadas, tinha esse limitador: não dava para levar a sério. Mas tudo muito bem produzido, muito bem tocado.

Porém, depois é que a gente foi conhecer eles e, mesmo com sérias restrições, eles tinham carisma engraçadamente irresistível.

O curioso é que, em fins daquele ano, eu trabalhava/estagiava num jornal de bairro. Para 1996, o pessoal encarregado da publicidade conseguiu parceria com a produção do primeiro Planeta Atlântida. Com a verba, deu para criar uma edição especial de uma publicação semanal, um efêmero jornaleco chamado Interpraias (a gente distribuía por todo o litoral, embora a tiragem fosse pequena, mas isso é uma outra história).

Foi um verão muito louco. A gente se dividia entre o jornal nos dias de semana e pegava a estrada aos fins de semana desde dezembro, catando pautas e tirando fotos para o famoso Interpraias.

Até que chegou o Planeta Atlântida. Nós chegamos de carro lá, lá pelas quatro da tarde de sexta, no primeiro dia de shows. Íamos também distribuir os exemplares no barral da festa, no sábado e domingo. Então o pessoal resolveu dormir e tirar o carro do corpo.

Um dos nossos colegas, à titulo de blague, escreveu um artigo desancando os Mamonas Assassinas e exaltando a Rita Lee, que ia tocar no sábado, com os Titãs. Eu li o texto, e comentei: bicho, se você pensar bem, o que os Mutantes faziam no começo da carreira não tá lá muito longe disso". Eu falei isso só para ver a reação dele; porém, ele coçou a cabeça é disse: "bem, de certa forma...".

Na data aprazada, nós ganhamos os crachás. Mas o pessoal preferiu descansar da viagem e chegar no festival na hora do Kid Abelha (a noite fecharia com os Paralamas, na época do Vamo batê Lata, um baita show). Os Mamonas iriam abrir a noite de shows. Não me prestei a convidar ninguém para vê-los. E eu fui.

No fim, eu fui o único da equipe que assistiu ao show dos Mamonas Assassinas.

E, de fato, a banda era sucesso entre as crianças. O público ainda era pequeno, e muitos papais e mamães com seus filhos vendo o conjunto. Achei o show muito bom. Eles tocaram todo o disco, muito bem tocado, muito bem ensaiado. Mas, olhando em retrospectiva, tudo era muito estranho.

Parecia um show de circo bizarro. Apesar da fama crescente, eles pareciam uma coisa que ainda estava prestes a ser digerida pelas pessoas. Mas, pela presença de palco, eu achava algo encantador naqueles garotos esbanjando simpatia e tocando alto e pesado para aquela plateia de crianças e adultos (que não podiam segurar o riso em alguns momentos).

Depois do Festival, eu passei o resto de fevereiro no litoral e, bem no fim do mês, passei uma semana em Caxias do Sul. Sem que eu soubesse, eles eram atrações num show gratuito os pavilhões da Festa da Uva de 1996. Eu fui à Festa, contudo não me interessei em vê-los de novo. Afinal de contas, o show ia ser a mesma coisa, porém com mais gente e as mesmas músicas. Além disso, certamente que a gente ia ver os Mamonas Assassinas pelo resto da vida.

Lembro que eu saí de noite no centro (no dia do show de Caxias) e encontrei num bar um pessoal que veio da extinta Birreria, que ficava na esquina da Marquês do Herval com os 18 do Forte. Disseram que, depois do show, viram alguns membros dos Mamonas Assassinas no bar. Porém (segundo ele), o pessoal deu pouca importância para eles.

Na madrugada de domingo, eu dormia na casa de minha tia em Caxias quando, no meio da madrugada toca o telefone. Era meu irmão ou minha mãe, contando do acidente. todo mundo acordou. Estávamos perplexos. Não dormimos mais. Diante de mim, a edição da extinta Folha de Hoje de quinta ou sexta anterior, com eles na capa, sobre a apresentação da Festa da Uva.

O que me espantava era a progressão fulminante dos acontecimentos. Ninguém era capaz de assimilar nada. O desenlace fez com que todos os eventos anteriores ganhassem um outro sentido.

Hoje eu fico pensando que, se eles tivessem permanecido, iriam desaparecer em pouco tempo. A fórmula foi totalmente explorada no primeiro disco. O paradoxo de tudo foi que os Mamonas Assassinas tiveram que fazer essa concessão musical para que atingissem o sucesso. Talvez eles mesmo, com o tempo, se cansassem desse sub-gênero de rock. Afinal de contas, por trás de toda a bobagem, eles eram músicos de verdade.


Com o tempo, eu perdi aquela fita. E nunca mais ouvi o disco deles. Mas não esqueci de nada.



Tuesday, February 09, 2016

O "Fim-de-Semana Perdido" dos Rolling Stones


Mick Jagger no Live Aid, em 1985


Os Rolling Stones estão de volta aos palcos - e prestes a aterrisar no Brasil novamente, depois de uma década. Nos anos 70 ou 80 em diante, sempre que eles caíam na estrada numa nova turnê, alguém sempre dizia: "por que eles não param de uma vez?"

O que muita gente não sabe é que, em um determinado momento, o então quinteto britânico quase acabou, para não dizer que, de certa forma, acabou. Isso aconteceu há 30 anos atrás, em meados dos anos 80, mais precisamente durante as gravações do seu 18º álbum, o Dirty Work, de 1986.

Quem revolveu falar abertamente do que foi aquela crise foi o próprio Keith Richards, na sua autobiografia Life (1). Em dado momento, ele diz que sentia que Mick Jagger apreciava o seu lado junkie porque, por conta disso, seu estado o impedia de interferir nos negócios da banda. Agora ele poderia dizer que podia tomar conta as coisas.

Porém, para os demais, era como ter que aturar um ex-drogado sóbrio, talvez de cara também pelo fato de não ter como curtir mais a vida como antes. Mais do que isso, Keith notava que Jagger apreciava estar no comando: "Mick tinha se apaixonado pelo poder enquanto eu estava sendo apenas artístico", conta.

O começo do que Richards chama de "A III Guerra Mundial dos Glimmer Twins" começou antes, durante a gravação do Undercover, em 83. Para Keith, Mick tornara-se insuportável, para ele, era Jagger "e os outros". "havia o mundo de Mick, que era um mundo de socialites, e o nosos mundo (...) Os integrantes da banda tinham se tornado empregados, inclusive eu".

Keith compartilhava esse senso de indignação com Charlie. Mesmo assim, tentavam contornar a situação, ou protelar qualquer briga fatal. Segundo ele, a coisa ia acontecer, cedo ou tarde. "Será que nós conseguiríamos segurar essa", conta.

Ele diz que Undercover foi realizado num clima de paz armada, onde eles limitavam-se a trocar farpas, mas evitavam qualquer confronto dirto, já que o esquema de gravação era separado: no geral, ele pré-produzia as faixas à parte, com Ronnie; Mick punha os vocais em horários diversos.

Richards dizia que Mick sofria de Síndrome de Vocalista: depois de anos de bajulações, a coisa havia literalmente subido à cabeça dele. "Mick era incrivelmente carismático e engraçado e espontâneo (...) No entanto, em algum momento, ele se tornou artificial (...) ele começou a agir como se quisesse ser outra pessoa (...) é quase como se Mick estivesse aspirando a ser Mick Jagger, correndo atrás do próprio fantasma. E ainda por cima chamando consultores para ajudá-lo.


A capa do Dirty Work

Fora problemas com a condução dos Stones, ainda havia divergências com relação à direção musical. Desde os últimos discos dos anos 70, Jagger imprimia um rumo mais pop e contemporâneo para o conjunto. No começo, Richards não se envolvia nas faixas de Mick. No entanto, a partir do Undercover, ele passou a questionar frontalmente o gosto musical de seu colega.

"Ele queria superar todo mundo que fazia música disco". Ele acha que Jagger queria prever o gosto do público. "Eu entendia o problema de Mick, porque vocalistas sempre acabam caindo na cilada da competição. O que Rod está fazendo? E o Elton? E o David Bowie? O que será que ele está fazendo?

O estopim foi o contrato com a CBS. Sem que nenhum dos demais integrantes dos Stones soubessem, Mick conseguiu acertar, além do novo contrato com a banda, outro, para três discos solo. Olhando em retrospecto, Richards entende que a carreira solo de Jagger vinha sendo construída há algum tempo, e agora surgia a chance.

Ele sentiu-se lisonjeado. A direção da Columbia acreditava (e ele também, segundo Keith) que poderia ser tão grande como Michael Jackson. "Assim, o verdadeiro propósito do contrato com os Rolling Stones foi que Mick aproveitasse a onda para promover a sua carreira solo".

Para Keith, todos se sentiram traídos. Mick podia ter contado suas intenções antes. Ao contrário, Jagger parecia bancar o comensal dos executivos da CBS ao invés de pensar os Stones junto com a banda. As coisas pioraram em 84, quando Mick e Charlie foram às vias de fato numa reunião em Amsterdam, por um motivo fútil, uma ligação fora de hora. "Onde está o meu baterista?", perguntou Jagger, pelo telefone, chamando Watts. Este, por sua vez, respondeu com um soco.

Foi nesse clima que começou a pré-produção do Dirty Work, em Paris, em 1985. Os ensaios eram constantemente adiados, porque Mick estava ocupado trabalhando em seu primeiro elepê solo, She's the Boss. Keith entende que seu amigo "queimava" todas as suas canções no disco, estava ausente quase o tempo todo.

As sessões começaram em abril de 1985. Assim como ocorrera no disco anterior, Mick gravava os vocais à parte. Keith e o resto dos Stones produziam bastante. No fim, a partir da produção de Ron e Richards, havia o suficiente para dois álbuns. E, pela primeira vez, Keith canta duas faixas num disco, "Too Rude" e "Sleep Tonight".

A despeito de subestimada, "Sleep Tonight" foi um divisor de águas na carreira de Keith. Tanto na sua forma de composição, assim como pelo fato de que, sendo o único cantor presente nas gravações, ele fez a voz guia de todas as faixas. Logo, Richards aperfeiçoaria sua forma de cantar. Com o tempo, ele desenvolveria um estilo à parte do cânone dos Stones para compor suas canções nos álbuns seguintes, como em "How Can I Stop" ou "Slipping Away".

- Então comecei a compor sozinho para o Dirty Work, músicas de diferentes estilos. A atmosfera horrível de estúdio afetou a todos nós. Bill Wyman quase não aparecia mais. Charlie foi passar em tempo em casa [nesse tempo, ele passou a beber e drogar-se constantemente]. Hoje posso ver como as faixas daquele disco eram todas cheias de violência e ameaça: "Had it With You", "(One Hit) to the Body" e "Fight", relembra Richards.

A crise na banda virou pública durante o Live Aid, quando Mick apareceu sozinho no palco, enquanto Wood e Keith tocaram com Bob Dylan num set acústico.

Na sequência das gravações do Dirty Work, Watts tornou-se a segunda defecção. Viciado em álcool e heroína, teve que ser substituído por Steve Jordan. Logo, a parceria de Jordan com Keith se revelaria produtiva, e ambos trabalhariam juntos em vários projetos solo de Richards, como o documentário Hail Hail Rock' Roll, sobre Chuck Berry, e o disco Talk Is Cheap.

As últimas sessões foram amenas, contando com a participação de Bobby Womack, Tom Waits e Jimmy Page que, voltando ao tempo em que era músico de estúdio, tocou a guitarra-líder em "(One Hit) to The Body".

Porém, nas vésperas do Natal, a bomba: Ian Stewart tem um enfarte fatal, durante exames de rotina. Dias antes, ele havia sentido-se mal. Morreu na sala de espera da clínica.

Novo round da III Guerra aconteceu logo depois do lançamento de Dirty Work, em março de 86. Jagger vetou uma turnê do disco, como era comum com os Stones. Pior, ele comunicou a decisão à banda por carta. Entre as alegações, ele citou o estado de saúde de Watts e, para a irritação de Keith, o desejo de seguir divulgando seu novo trabalho solo.

Mais: seus projetos para 1987 eram um novo disco e uma turnê mas sem os Rolling Stones. Charlie Watts, sempre o oráculo do grupo, falou para Keith:

- Ele está acabando com vinte e cinco anos de banda.

Na imprensa, Mick dizia que os Stones não podiam ser a única coisa em sua vida, e que ele conquistou o direito de poder se expressar de outras formas. Ou "os Stones são uma pedra de moinho pendurada em meu pescoço".

O resumo dos anos 80 para o conjunto: de 82 até o final da década, nenhuma turnê. De 85 até 89, um hiato total.

Para Keith, era o fim. Mick Jagger saiu em turnê em os Stones. A partir daí, a troca de farpas na imprensa virou algo constante, aliás, para o gáudio da própria imprensa. Afinal, a última coisa que eles queriam é que os arrufos entre os Glimmer Twins terminassem. Um dia, um repórter gracejou a Keith: "quando vocês vão parar de brigar?".

- Pergunte para a jararaca - ele respondeu.

Richards dedicou o resto dos anos 80 com os X Pensive Vinos, aprendeu a compor para ele e a cantar como nunca havia feito antes, já que escrevia para Mick. Ao mesmo tempo, mesmo engolindo todo o despeito de ver seu parceiro esnobando os Stones, ele decidiu que, nessas condições, não voltaria mais. Contudo, meses depois, com um telefonema e muita diplomacia, um armistício ocorreu em Barbados.

A primeira decisão foi a de parar de fazer o jogo da imprensa britânica lavando roupa. A segunda: você e eu podemos voltar a fazer música juntos?

"Em pouco tempo, tudo foi esquecido", conta Richards. "Menos de duas semanas depois daquele primeiro encontro, nós estávamos gravando o nosso primeiro álbum em cinco anos, Steel Wheels. Depois de quase ter dissolvido os Stones para sempre, Mick e eu agora tínhamos mais vinte anos de estrada pela frente".

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Se há males que vem para o bem, a verdade é que, depois de resolvidas as justas entre os dois, até mesmo Richards viu que poderia desdobrar o seu papel como músico além dos Stones. Isso influenciaria o som da banda a partir dos anos 90, quando a própria cena pop deixou de ter um norte. Mesmo assim, é possível notar certas relações fronteiriças nos discos posteriores: boa parte da produção de Keith em discos como Bridges to Babylon eram contribuições tão originais que fugiam ao cânone dos Stones.

O final do álbum, totalmente produzido pelo guitarrista, é quase uma suíte solo à guisa de bônus track. Porém, ao mesmo tempo, Mick pôde desenvolver amiúde os seus projetos solo nos anos posteriores (como o Goddess in the Doorway), porém marcando bem essa região limítrofe entre o cânone stoniano e a sua música.

Quando do lançamento de "Don't Stop", em 2002, Mick falou (2):

- Para mim, fazer um disco solo ou dos Stones é o mesmo, com uma diferença. Quando componho para a banda, não me importo se a canção soa como algo deles, ao passo que, se eu componho, mas não gravando com os Stones, eu não quero que ela possua clichês associados com os Rolling Stones; assim, eu tento evitá-los com todas a forças.

Na ocasião, enquanto gravava Goddess in the Doorway, ele citou "Don't Stop" como um exemplo de música que passou da fronteira da produção solo para o clichê stoniano

- Eu deixei ela de lado e pensei comigo: "isso parece com os Stones. Talvez seja útil nos próximos meses, mas foi deixá-la de fora e não a registrarei porque ela ficará melhor com os Stones.

O lado curioso é que, como se fosse um acordo entre os Glimmer Twins, existe um espaço nessa relação fronteiriça que é constantemente negociada na gravação dos álbuns depois do Dirty Work. Nesse "acordo", Mick pode continuar trazendo sub-produtores para suas músicas, porém Keith não se envolve. Foi o caso de "Saint of Me", do citado "Bridges...", onde Waddy Wachel faz o dublê de Richards durante as sessões. Ao mesmo tempo, Jagger não teve nada a ver com "Thief in the Night". A diferença é que, ao contrário de seu parceiro, Keith ultrapassa constantemente a fronteira da produção solo para os Stones quando o intérprete é ele. Enfim, ecos daquele fim de semana (não tão perdido assim) dos Stones, nos anos 80.




(1) Keith Richards, Life (com James Fox). Editora Globo, 2010.

(2) http://timeisonourside.com/SODontStop.html Acessado em 2/2/2016.

Sunday, February 07, 2016

Depois do Último Trem


Menudos


Em junho de 1989, eu fui numa cinemateca assistir pela primeira vez ao filme Magical Mystery Tour, dos Beatles, no Sesc. Lembro que eu havia ganhado um ingresso sorteado pelo programa Beatlemania 99, da antiga rádio Bandeirantes.

A experiência foi curiosa na época, mas mais por razões que transcendem o filme em si. Na verdade, estávamos em plenos anos 80 e, assistir a um musical de uma banda de rock dos anos 60 era estar na contramão da história. Aquele encontro de fãs da banda inglesa parecia algo tão insólito e apócrifo como uma reunião de uma confraria rosacruz.

Na época eu não pensava dessa maneira. Porém, olhando em retrospectiva, a impressão que tenho é a de que os anos 80, com a sua trêfega necessidade de celebrar o presente, suas estéticas e seus modismos, tinha por objetivo querer relegar tudo o que veio antes ao pasado mais remoto possível.

Os anos 80 eram como uma espécie de trem que todos deveriam pegar. Quem perdesse o trem, iria desaparecer no tempo, iria virar estátua de sal. Lembro de como todas as minhas coleguinhas de sala de aula nas Dores vestiam-se como se fossem figurantes do último clipe da Madonna. A moda, a música, tudo tinha a urgência da última moda, tudo muito colorido, tudo com ombreiras e muito sintetizador. Os anos 80 foram os últimos anos loucos. Todos viviam como se tudo ali fosse eterno.

Até quem veio dos 70 converteu-se aos 80. É só ver a quantidade de gente do progressivo que virou pop. Todo mundo pegou aquele trem. Por isso, recordo daquela noite na cinemateca. Imagine alguém gostar de Beatles em 1989? Os Beatles eram coisa do passado. Quando eles saíram em CD pela primeira vez, naquele ano, para os anos 80, era como se a Deutsche Grammofon relançasse as 9 sinfonias do Beethoven com o Herbert Von Karajan. Era uma coisa de velhos ranhetas.

Como naqueles tempos não existia internet, de certa forma, nós éramos naturalmente condicionados pela cultura do rádio e da tevê. Por conta disso, todos eram cada vez mais e sempre influenciados pelos ditames da moda. Para os anos 80, não existia o passado. Por causa disso, ninguém recordava de uma década atrás.

Creio que até como reflexo daquele contexto histórico, em que toda uma indústria do entretenimento floresceu de forma exponencial nos anos 80, a cultura de massa no Brasil dadas as facilidades tecnológicas da época, houve um boom astronômico de novidades, um pau-de-sebo cultural. Algo que se desenhava nas décadas anteriores mas que, nos anos 80, tornou-se algo extremo.

Acho que os anos 80 ainda são algo a ser estudado, ainda mais se pensarmos que estávamos, de certa maneira, chegando na fronteira tardia da pós-modernidade. Porém, aquela mudança constante em busca do progresso chegou a um limite. Depois, nos anos 90, é como se houvesse a dissolução desse modelo, até que chegássemos ao advento da internet (comercial) e da cultura adjacente à isso.

O aperfeiçoamento progressivo da Internet como repositório e como formadora de bases de dados, em contraste com o fim de elementos que sustentavam aquela cultura que floresceu nos anos 80 (o rádio e a tevê em rede aberta) fez com que houvesse uma mudança curiosa: tudo aquilo que foi recalcado e esquecido pelo trem retornou, como uma ressaca bíblica. É como se houvesse uma libertação. Algo sintomático com relação a isso é a moda retrô, que apareceu justamente a partir de meados dos anos 2000.

A moda foi deixando de ter a mesma importância de antes, a música deixou de ser ditada necessariamente pelas emissoras de rádio FM que, com o surgimento da Internet e agora, com o advento de dispositivos móveis, perdeu totalmente o seu poder de influência.

A Internet permitiu que o mundo pudesse relembrar décadas e décadas de uma cultura que foi aparentemente apagada - quase que propositalmente - pelos anos 80. Claro que não há por que culpá-los; isso foi um processo lento de modismos sobre modismos e o passado foi sendo trancafiado e represado.

O parâmetro, por sua vez, era sempre o presente. Hoje, quando a Internet joga tudo o que a gente quiser no nosso colo, nós temos acesso a tudo, sem exceção. Podemos discernir o que é ruim do que é bom, ou descobrir que muito do que foi relegado ao passado nos serve hoje. Lembro de uma loja de disco usado no Viaduto da Borges. A Free. Lembro de um disco dos Doors, creio que o L. A Woman.

O disco ficou por anos na parede da loja. A gente olhava para aqueles discos como quem olha para a máscara mortuária do Júlio de Castilhos no museu. Com o mp3 e a publicação de livros como o 1001 Albuns You Must Hear Before You Die, as pessoas passaram a redescobrir aquela música do passado. Se eu for agora na Livraria Cultura, eu posso achar o mesmo L. A Woman dos Doors novinho e lacrado para levar para casa, como se tivesse sido lançado mês passado.

Como explicar isso? A Internet fez com séculos de cultura jorrassem para o oceano, como a lama da Samarco. Há 30 anos, eu precisava fugar dos anos 80 como se eles fossem a própria polícia do pensamento do Orwell e entrava numa reunião secreta (quase interdita) assistir ao "Magical Mystery Tour". Em 1989, os Beatles era uma cultura defunta. Semana passada, eu vi, numa feira de material escolar um caderno com a capa do Sgt. Pepper's.

E os anos 80? Lembro que, de forma massiva, as rádios nos faziam ouvir todo aquele Italo disco, Euro Disco, OMD, Fancy, Sandra, Seventh Avenue, Rick Astley, Frankie Goes to Hollywood, que fim levou tudo isso? Parece que o mundo deu voltas e os anos 80, que fizeram de tudo para recalcar todo o passado e impor uma cultura urgente do novo e do moderno foi posto na mesma balança de toda aquela geléia geral e, ao que parece, não pesou. Hoje, até os anos 80 foram enquadrados e vendidos como produto cultural, e até aquele disco do Menudo que você tinha e depois jogou envergonhado no lixo agora os filhos da minha vizinha ouvem no Youtube.

Não pensem que trata-se de ressentimento de minha parte. Mas isso serve para constatar o seguinte: a própria cultura da moda pela moda foi perdendo efeito não necessariamente com o tempo; poderíamos usar os diversos conceitos de pós-modernismo para explicar isso, muito embora esses mesmos conceitos não levem em conta a revolução que foi a Internet em nossas vidas, principalmente no sentido de fazer com que todo o processo massivo e impositivo da mídia ao que se refere à modismos sofreu uma inversão considerável. Como viver num mondo sem a moda da próxima semana?

Em tempo: parece que o "Magical Mystery Tour" vai sair em Blue Ray....




Wednesday, February 03, 2016

A Turnê do fim do mundo


Cartaz da Winter Dance Party


O 3 de fevereiro é sempre lembrado como o "Dia em que o Rock Morreu". Nessa data, como se sabe, um grupo de músicos, encabeçados pelo guitarrista texano Buddy Holly, desapareceu num acidente aéreo.

Muito se escreveu e muito se escreverá a respeito da tragédia e a respeito da meteórica trajetória de intérpretes que desapareceram tão jovens. Porém, existe o outro lado pouco explorado da história: o de que todos os envolvidos na infame "Winter Dance Party" pagaram caro o preço do seu pioneirismo como artistas de rock. A tragéria, além de ceifar a vida de três grandes estrelas promissoras de um gênero que havia surgido no começo dos anos 50, expôs as más condições de trabalho a qual eles estavam sujeitos.

Poderíamos chamar o "dia que o rock morreu" de acidente de trabalho, acidente típico e acidente de trajeto. Para tanto, basta fazer a crônica da morte anunciada que foi a turnê. A maioria dos artistas contratados embarcou nela para ganhar maior visibilidade. A exceção era Buddy Holly. Ao contrário dos demais, ele já tinha um nome consolidado internacionalmente (e, com efeito, não precisava submeter-se a este expediente), porém estava processando seu ex-empresário, havia se mudado para Nova Iorque, iria ganhar um filho, e precisava de dinheiro.

O planejamento era de cobrir vinte a quatro cidades em pelo menos duas semanas. O que não se esperava é que o inverno americano de 1959 fosse ser tão rigoroso. Todos foram embarcados num velho ônibus (escolar, diga-se de passagem) sem calefação e sem a menor infra-estrutura para carregar uma trupe de músicos com seus instrumentos, como se fossem mambembes.

A turnê começou em Milwaukee, Wisconsin, em 23 de janeiro. Logo, eles se viram num problema logístico: a distância entre as cidades e suas respectivas datas. Em alguns casos, eles teriam que fazer mais de 500 quilômetros de um dia para o outro, sem possibilidade de parada para, pelo menos, lavar roupas.

O ônibus até tinha calefação, mas ela quebrou logo no começo. Numa questão de dias, quase toda a equipe estava doente. Ao mesmo tempo, o tempo piorou, e tempestades de neve foram companheiras de viagem. Dion (dos Belmonts) lembrava que, durante as tormentas, era impossível ver a paisagem pela janela.

A temperatura caía fortemente. Dion fala que ele e Buddy Holly dividiam o mesmo cobertor. Para suportar as baixas temperaturas, bebiam uísque. Até que, no fim da primeira parte da viagem, o baterista oficial da turnê, Carl Bunch, teve congelamento de pés e mãos. Foi prontamente hospitalizado em Ironwood, no Michigan,. Em seu lugar, outros tiveram que ir para as baquetas - e Ritchie Valens era um deles. Ele tocava bateria para Holly, e vice-versa. Agora, imagine o leitor um headliner virando músico substituto? Só em 1959.

Então a trupe chegou em Clear Lake, no Iowa, numa segunda, dia 2 de fevereiro. A cidade não fora listada nas dataa aprazadas. Contudo, os promotores da Winter Dance Party conseguiram agendar uma apresentação na cidade, visando preencher uma data vazia entre duas cidades.

Holly, que recém havia chegado em Clear Lake, ficou logo sabendo que teria que tocar naquela noite. Ele, que já estava frustrado com a canoa que era a turnê, topou a empreitada. Porém, dessa vez, ao invés de seguir viagem no ônibus, iria fretar um aeroplano - à revelia do contrato e às próprias custas, de Clear Lake para North Dakota. O objetivo, além de livrar-se do transporte rodoviário sem calefação, era o de ganhar tempo e poder lavar os trajes.

Como não bastasse uma turnê em pleno inverno (e não no meio do ano, durante o verão, por exemplo, e que certamente atrairia maior público), a neve era o impeditivo permanente. Como o avião estava fretado, a despeito do mau tempo, eles decidiram voar. E o resto é sabido de todos.

O que não se sabe, e o que não aparece em textos sobre o caso, além de investigações sobre o acidente em si, é a respeito de buscar quais foram os verdadeiros algozes de tal desdita. Alguma lei protegia os músicos em caso de acidente?

Como se sabe, o dever de indenizar vem da teoria do "risco gerado", ou seja, se é o contratante quem cria o risco por meio de sua atividade econômica, a ele caberia responder pelos danos causados, independente de dolo ou culpa.

Certo é que, como a iniciativa de deslocar-se por conta própria foi de Holly e dos demais ocupantes, os produtores da Winter Dance não tornaram-se réus de juízo. Mas a crônica dos bastidores mostra quais eram as condições a qual todos estavam submetidos.

Se não houve culpa pelo fato de que todos aceitaram submeter-se a trabalhar em tais condições, pode-se observar que, nesse fatídico episódio, não houve cuidado, por parte dos promotores do evento, de observar um mínimo de normas de segurança e obrigar os músicos contratados a trabalhar além do limite, causando todo o desgaste físico e psicológico - e que, no fim das contas, evitaria que Holly e os demais fretassem transporte alternativo (também em condições adversas e extremas), causando o acidente fatal.

Se foi possível tirar alguma lição dessa absurda e malfadada turnê do fim do mundo, foi a de que Ritchie Valens, Big Bopper e Buddy Holly não morreram em vão. Ou, pelo menos, como mártires da música, pereceram para que coisas do tipo não se repetissem nunca mais.

Tuesday, February 02, 2016

Legião Desconhecida


Legião Urbana

Eu tenho uma concepção da discografia da Legião Urbana que pode er dividida em duas fases: a primeira, que corresponde aos primeiros três discos (o primeiro, o "Dois" e o "Que País É Este"). Esses têm em comum todo aquele comentário social que moldou a imagem da banda, e que dialoga de certa maneira com a temática política dos demais conjuntos de rock dos anos 80.

A segunda, eu chamo da fase do "desbunde do Renato Russo", e que respectivamente corresponde aos três discos seguintes (o "As Quatro Estações", o "V" e o "O Descobrimento do Brasil"). Nessa etapa, a temática política quase que desaparece em favor de uma espécie de busca espiritual, ou seja, mais centrada no subjetivo do que nas palavras de ordem da primeira fase.

Não quero dizer aqui que são fases objetivamente distintas ou desconheço qualquer fato que explique essa mudança que, na minha ótica, é evidente. Lembro que, em algumas entrevistas, eles mencionam essa mudança, que naturalmente não parece ser meramente programática; mas, antes, tem a ver com o próprio desenvolvimento da banda como artistas em busca da sua evolução musical e, mais precisamente, na criação poética e na escolha de temas que , embora esparsos, são ligeiramente recorrentes: uma religiosidade que se mostra de forma simbólica na escolha de temas afins de religião e filosofia.

Vou me deter em alguns exemplos interessantes desse "programa" proposto pelo Renato Russo em algumas canções desses três discos da fase do desbunde: "Monte Castelo", do "As Quatro Estações", "Metal Contra as Nuvens", do "V", e "A Fonte", do "O Descobrimento do Brasil".


Em "Monte Castelo"< fica evidente a tentativa de diálogo com Camões e Paulo (São Paulo para os íntimos) de Tarso na escolha da temática do amor. Parece que a música quer que sejamos convidados a cotejar as duas visões do tema como um só. Um detalhe interessante é que o wit que causou essa guinada espiritual em Renato Russo está comentado no encarte do disco. Ali, ele explica que achou por acaso uma daquelas bibliazinhas dos Gideões. Á despeito de toda a simbologia cristã embutida em "As Quatro Estações", minha impressão é a de que, ao invés de mero proselitismo religioso, ele quer demonstrar que é possível ter uma visão humanística e até mesmo mística dos textos religiosos.

Como no diálogo entre a Carta dos Coríntios e o Soneto 13 de Camões, ao mesmo tempo em que temos que aceitar a proposição e a imperiosidade do amor (ou caridade), temos que lidar com o amor e suas contingências, como no jogo antitético do poeta português, que tão bem define o indefinível. Sem amor eu nada seria, porém tão contrário a si é o mesmo amor? Logo, parece que tanto a concepção do apóstolo quanto a do autor dos Lusíadas nos obriga a, mesmo que por caminhos tortuosos, entender o amor como um ato de fé.

Ao mesmo tempo, esse diálogo entre Paulo de Tarso e Camões pode fazer com que o ouvinte/leitor possa ter uma outra visão do texto religioso, menos pedagógico ou doutrinário e mais poético - talvez mais pelo anacronismo que essa fusão possa sintetizar em "Monte Castelo", eivada de uma religiosidade deliciosamente pagã.


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Se é possível encontrar elementos relativos à tradição cristã na poética do "As Quatro Estações", no "V", a Legião Urbana (mais precisamente Renato Russo) tematiza, na primeira parte do disco (nas três primeiras faixas) episódios relativos à cultura medieval e,mais precisamente, sobre o embate entre o religioso e o secular.

Isso fica evidente em "Metal contra as Nuvens". O próprio título propõe essa separação. Existe uma interpretação apócrifa (nunca foi endossada por nenhum membro da banda) de que, pegando o moto da faixa instrumental "A Ordem dos Templários", ao contrário do que foi dito à época a respeito, "Metal.." refere-se ao embate entre os Templários (o "metal") e o Papado (as "nuvens", representando o Céu).

As origens desse embate entre céu e terra remontam ao conflito entre os reis germânicos (guibelinos) e os guelfos (partidários da Sé), duelo político que terminou em guerra e na consequente vitória os segundos e do fortalecimento do papado. O episódio seguinte ao fim do conflito com o Sacro Império, a Sé voltou-se contra a Ordem dos Templários, cuja reputação e poder fugia ao controle do Papa.

A letra fala perda (de riquezas), de exílio, separação e desejo de recuperar essa mesma riqueza. Pois essa interpretação (apócrifa) de "Metal Contra as Nuvens" entende que ela refere-se à perseguição dos Templários (sob a acusação de heresia) por parte do Clero, com os auspícios de Filipe IV de França que, por sua vez, desejava apropriar-se dos bens dos Templários.

Através de um processo infame, perpetado em conluio entre Clemente V e Felipe o Belo, os grão-mestres da Ordem foram presos, torturados e condenados à fogueira.

é lógico que é apenas uma interpretação, muito embora a temática dos Templários tanto na capa quanto em algumas letras e no encarte sejam evidentes, permitem essa leitura, ao mesmo tempo em que seja possível que cada um entenda a letra à sua maneira. Ademais, faz parte da mística do rock progressivo (e "Metal Contra As Nuvens" é pretensamente progressiva e talvez o disco todo não girou em torno dessa temática por razões comerciais) singrar temas tanto enigmáticos e simbólicos quanto escapistas.

Certo é que existem pistas no "V" e toda o mistério envolvendo os espaços vazios de interpretação no lado A do disco permitem toda a sorte de conjecturas. Uma delas, passando pelos Templários, como uma Ordem monástica, e essa era uma das suas acusações de heresia (de acordo com algumas fontes), a de que eles tinham uma concepção cristã eminentemente mística e calcada em ritos de mistério, ou seja, diversas da Doutrina da Santa Sé.


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Uma das faixas mais lado B do disco mais lado B da Legião Urbana, "A Fonte", deve o seu caráter hermético (como acontece em "Metal...") pelo fato de ser outra charada musical da banda. Na verdade, como em "Monte Castelo", Renato Russo faz um amálgama de fontes diversas glosando o mesmo mote numa letra só.


Como nesse trecho:

Ao lado do cipreste branco
À esquerda da entrada do inferno
Está a fonte do esquecimento
Vou mais além,não bebo dessa água
Chego ao lago da memória
Que tem água pura e fresca
E digo aos guardiões da entrada
"Sou filho da Terra e do Céu"

Esses versos de "A Fonte" são quase uma paráfrase de um poema órfico, que é este:

"Encontrarás à esquerda da Mansão do Hades, uma fonte,
E a seu lado, um branco cipreste.
Não te aproximas deste manancial.
Mas encontrarás um outro junto à Fonte da Memória,
De onde fluem águas frescas e, diante das quais há guardiões.
Diz-lhes: "Sou um filho da terra e do céu estrelado;
Mas minha raça é do céu (somente). Vós próprio o sabeis.
E - ai de mim! - estou ressequido de sede, e pereço. Dai-me rapidamente
A água fresca que flui da Fonte da Memória".
E eles mesmos te darão de beber do manancial sagrado,
E desde então tu dominarás entre os outros heróis".

O Orfismo é uma religião de mistérios que floresceu na Grécia no período clássico. É citada na obra de Platão e consta que teria influenciado a filosofia da hélade a partir dos pré-socráticos.

O Orfismo tinha por objeto divindade de Orfeu, e gira em torno de iniciações que revelavam o que acontecia com a alma depois da morte. Nesse sentido, o ponto principal e a viagem de Orfeu ao Inferno, e falavam sobre a mortalidade da alma e o dualismo entre corpo e alma e o juízo final após a morte. Tudo isso foi introduzido pelo Orfismo na cultura grega do período clássico. Ou seja, ao contrário do que acreditavam os arcaicos, havia uma bem-aventurança para a alma, ao invés do vale das sombras dos poemas homéricos.

Algo muito parecido do que viria a tornar-se doutrina nas religiões cristãs, não escondendo a sua origem. Por sinal, esse estudo comparado entre filosofia grega e doutrinas cristãs seriam o norte de boa parte da produção da filosofia patrística, ou dos primeiros doutores da Igreja.

E qual é a diferença? A diferença é que o Orfismo era uma religião de segredos popular na Grécia (séc V) e influenciou Platão e Pitágoras (com relação à metempsicose a transmigração das almas). Por isso que, quando os apóstolos foram pregar o Evangelho na Grécia (entre eles, Paulo de Tarso, em Éfeso e Corinto) os gentios eram bastante refratários àquela pregação. É que, com certeza, muitos deles já já tinham tinham ouvido toda aquela potoca apostólica como praticamente um pastiche da já difundida liturgia órfica.

Por conta dessas coisas, Orfismo é bem parecido com a doutrina paulina - porém difundida como religião de mistério, não como doutrina. O trecho do poema órfico citado em "A Fonte" é uma espécie de texto fúnebre e refere-se à forma de como deve-se proceder ao descer ao Hades: "sou filho da terra e do céu estrelado, mas minha raça é celeste apenas". Este poema deveria ser recitado pelo iniciado.

Já a "fonte do esquecimento" (de onde vem o título da música) refere-se à explicação órfica (e platônica, que bebeu do orfismo) do esquecimento das vidas passadas. O texto órfico faz menção à esta fonte, que todos devem beber antes de reencarnar.

A sugestão de "não beber dessa água" aparece em algumas lâminas com partes do mito, alegando que beber da fonte da memória, a fim de escapar do ciclo de reencarnações. A memória (anamnesis) aparece, por exemplo, em Sócrates, como base da explicação para a teoria da reminiscência através da prática filosófica. Desta forma, segundo o Platão da República, os tolos bebem com voracidade da fonte do esquecimento, enquanto os sábios o fazem de forma comedida.

Por fim, cabe ressaltar que o Orfismo enquanto corpo de ideias religiosas(no tocante à escatologia, por exemplo), influenciou tanto a filosofia clássica quanto aos Padres da Igreja (patrística).

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Da mesma forma curiosa com que textos e episódios referentes à cultura religiosa e religiosidade aparecem em "Monte Castelo" e em "Metal Contra as Nuvens" de forma simbólica e velada, vemos esses incidentes em "A Fonte". As três letras, por sinal, parecem dizer mais ao leitor/ouvinte do que possam parecer à princípio. Essa talvez, seja a faceta mais interessante dessa fase "desbundada" da Legião Urbana.

Monday, February 01, 2016

A Ilha Misteriosa


Todo verão a imprensa publica uma matéria sobre as lendas da Lagos dos Barros, que fica no caminho de Porto Alegre até as praias, pela Freeway. Essas lendas são tão batidas que nem preciso listá-las. No entanto, lendo um texto na Zero Hora a respeito do mesmo assunto batido, lembrei-me de uma outra história, mas sobre a Lagoa dos Quadros, perto de Xangri-Lá.

Um senhor que eu conheci há uns seis anos me contou a história. Ele me mostrou um mapa rodoviário, e falou:

- Essa é a Lagoa dos Quadros, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Ela fica entre Maquiné e Capão da Canoa e é contornada pela BR-101, como você pode ver.

Não conheço bem cartografia, mas me chamou a atenção, em primeiro lugar que, nesse mapa, a lagoa tem uma linha rta à esquerda, por onde passa a estrada.

- Isso é real? Por que ela tem essa reta?

- Não é um recorte natural, como você pode ver - disse ele.

Depois ele me mostrou no Google:

- É assim só no mapa, na foto de satélite tá diferente. Em satélite, aparece o contorno natural, com uma aquela ponta e uma ilha.

Aí eu comparei com o Mapa Rodoviário. Ué! A ilha não aparece.

Pelo que eu pesquisei, por incrível que pareça, a ilha não aparece em nenhum mapa da Internet, nem no da Fepam, nem de um do Ministério do Meio Ambiente que, segundo o meu amigo, teria sido cartografado pelo Exército (confesso que achei que apenas o IBGE fizesse esse tipo de trabalho, mas não o questionei). A não ser que seja um lapso, e todos tenham embarcado num erro crasso por tabela, a verdade é que, como nesse mapa da 4 Rodas, em nenhum mapa a pequena ilha misteriosa aparece.

Eu anda precisaria checar em mapas que não fossem da Internet, embora o do Governo, aparentemente são meras reproduções dos originais. Mas, graças ao satélite do Google, dá para ver a ilha. Ela parece ser tomada por vegetação, exceto por uma parte, onde parece haver um telhado.

Pelo peixe que me venderam, aquela marca - não sei se alguém vai conseguir fazer um zoom além desse, mas há uma mancha azul com algo ligeiramente parecido com uma piscina (?), e em outro ponto da ilha, há algo parecido com um píer.

Claro que eu aqui estou apenas reproduzindo o relato de uma fonte, sem fazer maiores checagens. Segundo ela, a maioria dos viajantes não repara na tal ilha, ninguém tem acesso à ela, não existe balonismo ou nada do tipo nessa área, e o acesso àquela ponta, segundo meu amigo conspirador, é vedado a qualquer pessoa.

A ilha era para ser área de preservação ambiental e, ao que parece, é. Mas, se aquilo que aparece ali no Google é uma piscina — já que a tonalidade de azul difere da da lagoa, e aquilo ao topo é realmente um pier, então seria essa ilha uma propriedade particular disfarçada? E, se for, o que acontece lá dentro? A rigor, 'geograficamente', ela não existe, ninguém a conhece. Ela não consta como atração turística - e poderia ser - nem no site da Secretaria de Turismo.

Outra história que ele me contou é que ele pertencia a um grupo que foi fazer um trabalho de Biodiversidade e Ecoturismo em Maquiné. Quando eles pediram para acessar o cume de um morro, para poder fotografar a lagoa, disseram que não era permitido subir lá.


Agora, ele não soube dizer desde quando existe essa pretensa propriedade particular ali e se o crime coincide com o tempo em que existe alguma atividade lá dentro. A questão é que, segundo ele, existe alguma atividade escusa lá — e que, a despeito de existir relato sobre o que acontece lá — é uma história que é escamoteada por bastante gente.

Mas, como a ilha oficialmente não existe e, se existe (ilha de Schrodinger?), é "área de preservação ambiental" e se algum tipo de embarcação aporta ali, ninguém fica sabendo. Os mapas não dizem nada e ela aparece agora por causa do Google.

Outra que eu ouvi do meu amigo conspirador é a de que, assim como o rio Tramandaí, a Lagoa dos Quadros tinha uma saída para o mar. Para que nenhuma embarcação entrasse lá, ela foi aterrada — para que ninguém tivesse acesso à ilha misteriosa.

Ou seja, ela seria uma laguna (!?)

Claro que eu estava cético o suficiente para perguntar como e quando, já que isso, pelo menos, deveria constar na memória local. Não se faz uma coisa dessas secretamente da noite para o dia. Aí ele não soube me dizer.

Eu perguntei:

- Bem, se ela foi fechada, para onde vai a água que entra na lagoa?

- O canal foi feito para substituir o fechamento do rio original

Essa eu não consegui acreditar, mas achei interessante que ele tinha resposta na língua para a "conspiração" do aterro do rio.


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Agora começa a história, ou melhor, a lenda por trás da coisa toda. Ou seja, se o que eu trouxe foram observações ligeiremente imbricadas à alguma realidade objetiva, daqui em diante, é a conspiração, com todos os requintes de fantasia a que ela tem direito.

O meu amigo conspirador então baixou a voz, olhou para os lados, empertigou-se e disse:

- Na verdade, na verdade essa ilha esconde um submundo de massivo tráfico de drogas, cassinos, sexo, orgias com direito a prostituição infantil e tudo o mais. Os frquentadores dali não gente da alta roda, socialites, somente gente do mais alto escalão de todos os estratos da sociedade, cúpula das Forças Armadas, universidades, governos, etc. Todo mundo ao redor é subornado para fazer vista grossa e falsear a realidade. Ou seja, por conta da quantidade de dinheiro e do grau de gente envolvida, essa história nunca será desvendada. Nunca.

- Sim, mas como tudo isso pode passar despercebido? - perguntei.

- Ora, é certo que, para que isso tudo possa acontecer, toda atividade ali é encoberta por uma rede inextrincável de subornos de autoridades, prefeitos, secretários, gente que vive lá, etc e tal.

E continuou:

- Mais: o site do Hagah é em homenagem à um famoso cartógrafo chamado Hans Heinengen, ou seja, o Hagah é a mãe de uma rede de cartógrafos cujo objetivo é falsificar mapas em todo o mundo. E isso implica dizer que a RBS (estava (?) está por trás dessa história.

- Eita.

- Da mesma maneira a Fepam, Governo do Estado, UFRGS, PUCRS e Banco Mundial (Banco Mundial subvenciona projetos de Biodiversidade para a Fepam e detém projetos no Litoral Norte) também - continuou. Na verdade, esses projetos são tudo fachada para se colocar uma mão, ou melhor até, um braço invisível do crime ali. E imagine que a lagoa fica ao lado de Atlântida, onde a fina flor da sociedade bem vestida aqui do Rio Grande veraneia...

Enfim, como ele explicou, rola muita grana ali para que ninguém saiba de nada.

O sujeito ainda me adiantou que descobriu que o (ex) apresentador da RBS (olhem só) Lauro Quadros é bisneto do sesmeiro (antigamente, as terras do estado eram doadas pela Coroa Portuguesa em sesmarias, a grandes comerciantes e a militares, para que eles se fixassem e povoassem o Rio Grande do Sul) que dá nome à misteriosa lagoa. Ele disse que tentou contatar o Lauro para que ele lhe desse explicações sobre a ilha e sobre o que havia lá. Através de uma secretária, ele disse que não sabia de nada e não poderia falar sobre o assunto.

- Eu inclusive encontrei o Lauro fazendo cooper na praça da Encol - ele me dizendo - e apresentou-se dizendo que era o cidadão que o havia procurado para esclarecer a história, mas o Lauro não quis papo e respondeu que estava ocupado, e seguiu correndo praça afora, o que, prá mim, isso aumenta mais a conspiração...

Depois o meu amigo conspirador disse que iria trazer mais provas sobre a ilha misteriosa da Lagoa dos Quadros, mas nunca mais o vi. Não sei por que ele sumiu. Mas você, meu caro leitor, que chegou até aqui, não deve estar estranhando isso. Aliás, essa postagem é séria? Aliás, pergunte a você mesmo antes de ir até lá.

E agora, qual é a lagoa mais misteriosa, a dos Barros ou a dos Quadros?