Saturday, September 26, 2015

Atavismos


Capa do livro


Lembro quando uma colega de faculdade (a Ariana) me achou no saguão da Famecos, no intervalo (ou no Mazza, não me lembro bem. enfim), isso creio que era no inverno de 1997. Ela era aluna do Juremir, e disse que o Décio Freitas ia dar uma palestra na aula de Técnica de Reportagem. Me agarrou vorazmente pelo braço e me levou para a aula, disse que ele estava lançando um livro. Era o "O Maior Crime da terra", sobre os crimes da Rua do Arvoredo - que comprei na época e li, pálido de espanto, como no soneto.

O Décio revelou um episódio quando ele era jovem repórter no Diário de Notícias, no tempo do Ernesto Corrêa. ele teve a ideia de publicar uma matéria sobre José Ramos e o famoso caso do canibalismo em Porto Alegre. Porém, disse o historiador, muita gente na época foi contra a tal publicação. O diário acabou sofrendo uma espécie de censura prévia por parte de setores religiosos do nosso burgo açoriano. No fim, a matéria não saiu.

Isso em 1963. Reflexão do Décio era a de que, mais do que o crime em si - dois assassinatos, a polêmica questão não era bem a crueza das mortes mas, sim, a bisonha prática do canibalismo involuntário na cidade. Nós, canibais? Não muito. Refletindo, tempos depois, à guisa de introdução ao livro, Freitas notou que o caso da censura à reportagem sobre os crimes da Rua do Arvoredo chamava a atenção principalmente pela mão invisível daquela sociedade provinciana que dedicava-se ao ofício de esquecer certas coisas que a escandalizava.

Ou seja, o tema era um tabu. Claro que os tempos mudaram. Hoje lidamos com esse episódio com certa naturalidade. Contudo, essa mão invisível era tão forte que, por décadas, o caso da "linguiça humana" tinha ares de lenda urbana. Ninguém sabia precisar detalhes sobre o incidente. Hoje temos o livro do Décio - que eu conheci graças àquele convite insólito em pleno saguão da Famecos (ou no Mazza).


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Grande Décio Freitas, um historiador tão pouco lembrado hoje em dia! Lembrei desse causo dos tempos da PUCRS depois de terminar a leitura de outro livro do Freitas, o "O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil". Estava devendo essa leitura há muito tempo, até que a obra quase me caiu no colo, nas bibliotecas da vida. O mais curioso é que, sendo uma espécie de sequência do "O maior Crime...", que havia saído três anos antes deste, em 1997.

"O Homem..." tem a mesma ótica. Na história da Rua do Arvoredo, o historiador analisa o perfil psicológico de José Ramos para tentar entender até onde chegou o bicho homem que, em última análise, é o arquétipo do medico e do monstro. Mesmo que possa sublimar suas pulsões, ele sempre dá corda ao seu atavismo assassino. Os dois livros dialogam com essa mesma questão: a luta entre a civilização e a barbárie.

Esse é o excuso do autor para tentar entender tanto os atos do açougueiro da linguiça humana * quanto ao fratricídio da Revolução Federalista de 1893. Nos dois casos, a fronda intestina entre razão e instinto parece ceder para o lado deste. Sem querer virar uma mera tese naturalista, Décio Freitas analisa, de forma singularíssima (como diria Augusto dos Anjos), a nossa "revolta da degola".

Décio descobriu que tinha uma grande história nas mãos. Pesquisando sobre a Revolução, descobriu que um jornalista da cadeia do Hearst (na época, ele trabalhava para o San Francisco Examiner e o Tribune), Ambrose Bierce, foi mandado para Montevideu para cobrir o que poderia ser uma violenta guerra separatista de uma província do Brasil, o Rio Grande do Sul, com vistas de unir-se com o Uruguai. Décio teve acesso às extensas anotações do jornalista e às reportagens, além de esboços de textos que acabaram censurados ou simplesmente engavetados.

Devido a interesses ianques na região do Prata naqueles tempos, não é difícil entender por que Hearst iria interessar-se por uma guerra aqui, neste fim de mundo. Pelas descrições, Freitas concluiu que era o famoso satirista Ambrose Bierce, que morreu cobrindo a Revolução Mexicana em 1914.

O homem esteve em Porto Alegre, entrevistou Júlio de Castilhos, Silveira Martins, Joca Tavares e Gumercindo saraiva (pouco antes de morte, em combate, nos estertores da guerra).

O livro narra, pelo ponto-de-vista do Bierce, que não difere muito do do Freitas, com riqueza de detalhes, o que foi a loucura miltarista do Castilhos pró-Floriano e o delírio coletivo dos líderes federalistas, na maioria caudilhos de muita liderança porém de pouca ilustração, e que não tinham uma noção global do que estavam defendendo, fora o fato de que a adesão dos Republicanos gaúchos ao governo central coibia o contrabando, e todos os caudilhos da Campanha viviam do contrabando.

Assim como Décio torna-se uma espécie de alter-ego do dr. sarmento Leite jovem, analisando José Ramos em "O Maior Crime da Terra", em "O Homem que Inventou a Ditadura..." ele se projeta na imagem do prático e cínico Bierce. Como estrangeiro, o jornalista americano pôde colocar-se acima dos acontecimentos, analisando a Revolução sem procurar heróis ou bandidos: aliás, muito pelo contrário. O desenrolar dos acontecimentos, seguindo os passos do repórter nos revela um ambiente sombrio, rarefeito, que vai desde o miasma que era a Porto Alegre nos fins do Século XIX até o delírio em marcha de mentes e corações dos protagonistas daquilo que seria considerada a mais infame guerra civil brasileira de todos os tempos.


Bierce vê que a bandeira dos federalistas era essa. Na verdade, o Décio mostra que não tinha mocinho na história, a mentalidade dos líderes políticos era genocida e estreita. Ele descreve a loucura que foram os genocídios das degolas coletivas em Rio Negro (em Bagé) e Boi Preto. ele descreve a degola, os combatentes capturados ficavam num chiqueiro para abate, um a um, sendo degolados nus, depois de terem até as roupas do corpo confiscadas. e ninguém ousava enterrar.

O correspondente dos jornais do Hearst conta que chegou em Boi Preto (em Palmeira das Missões) e era um cheiro de carne em putrefação que se sentia a quilômetros de distância. E essas contingências de guerra que ele descreve em 93 já existiam antes, nos Farrapos, porém não como aqui, 10 mil mortos, 700 degolados contando os dois lados, maragatos e pica-paus.

O que choca Bierce, Décio Freitas, e provavelmente o desavisado leitor é que, apesar de copiosa bibliografia sobre o tema (como “Voluntários do martírio, narrativa da revolução de 1893”, de Ângelo Dourado. ou “Maragatos e pica-paus – guerra civil e degola no Rio Grande”, do Carlos Reverbel), a dinâmica de livro-reportagem do "O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil" que, a despeito do título um tanto burlesco, assim como "O Maior Crime", aborda também um tema desagradável (ou "desagradável").

Assim como a "mão invisível" que quis esquecer o canibalismo porto-alegrense quando Décio produzia a matéria sobre o assunto, a Federalista também é outro tabu. Sousa Docca, historiador são-borjense, negou-se a publicar capítulo sobre a "revolta da degola" em sua História do Rio Grande do Sul. Décio explica:

- Geralmente ufanos de suas passadas revoluções, os gaúchos sentem-se contrafeitos face à guerra civil de 1893-95, diz. - a fantástica orgia de bestialidade promovida pelas duas facções políticas estigmatizou o conflito como uma guerra bárbara e suja.

No livro, Décio levanta a questão do contrabando como causa determinante do conflito. Treze anos após nossa independência, foi esta uma das causas da Guerra dos Farrapos. Terminada a revolta, o Imperio criou uma tarifa de fronteira, mas apenas fazia vista grossa para a instituição do contrabando no estado. A fronteira era uma área vital de livre-comércio.

A República quis pôr fim àquilo; porém, a repressão iria naturalmente desarticular um gigantesco esquema. Toda a produção escoava pela fronteira. Mais: muitos brasileiros eram donos de terras no Uruguai. Em Rivera, 80% dos campos eram "de propriedade de rio-grandenses". Muitos estanceiros, como Silveira Martins, viviam de passar gado de um lado para o outro.

Ambrose Bierce já havia visto esse filme. os gaúchos estavam apenas seguindo o exemplo da revolução da independência norte-americana, motivada pelos impostos e pelo contrabando. Mas, além do fato de que os ideais dos maragatos não eram tão "nobres" assim, como a bandeira do parlamentarismo, o intrépido repórter dá voz aos caudilhos federalistas Joca Tavares e Gumercindo Saraiva. Para eles, o seu credo, como a do (in) verossímil Capitão Rodrigo Cambará, é a "revolução". Apenas quer a "liberdade pelos humildes". E só.

No fim, entrevistando Apolinário Porto Alegre - um desafeto de Castilhos, depois perseguido pelo Governo com a vitória dos pica-paus, Bierce concorda que todas as guerras são iguais - execução de prisioneiros, carcheios (o butim). Mas, a Federalista ia além. A escalada de mortes e a degola fratricida era estimulada por ambos os lados. Castilhos e Silveira Martins, diz Freitas, sabiam das degolas e jamais as tinham condenado. Castilhos, aliás, ele explica, chegara a estimular, por escrito, as degolas. Era a doutrina da regeneração política pela degola...ambos sabiam que ela fazia parte da (atávica) cultura da morte, arraigada no Rio Grande do Sul".



* No fim, o artigo sobre os crimes foi liberado pelo Diário, porém, a relação entre as mortes e a fabricação de deliciosa iguaria que maravilhou os porto-alegrenses naquele ano de 1863 ficou COMO "inconclusivo".

Monday, September 21, 2015

O Passarinho


Às vezes, depois da almoço, eu vou estudar num paradisíaco saguão do anexo do campus. Ali, há sofás macios, espaçosos e devolutos para jibioar à vontade nas primeiras horas vespertinas, principalmente depois das 13 horas, quando o período das aulas da tarde começa, e os corredores ficam sonolentos e vazios.

O saguão tem um pé direito grande, equivalente a dois andares. O espaço equivalente à divisória deles corresponde a um espaço que contempla uma visão privilegiada da rua, através de um janelão, cuja seção superior é composto por vidros que naturalmente não podem ser abertos. Esse mesmo janelão é dividido, na altura da separação dos respectivos andares por uma estreita soleira de concreto. Recuado, o andar de cima parece um mezanino com vista para a tarde fatigada que passa.

A visão é idílica; é possível enxergar, a partir das copas das árvores rentes ao frontão do prédio, o Planetário, a esquina da Ipiranga e seu movimento de carros e ônibus, o prédio antigo da Psicologia. De cinco em cinco minutos, o São Manoel encosta na parada logo em frente, e descarrega magotes de alunos.

Hoje eles foram surpreendidos pela chuva. O tempo pareceu seco pela manhã. Depois das dez, começou a precipitação. A chuva era esparsa; depois, o tempo abria, como se fosse formar-se finalmente uma tarde de sol aberto. Logo, nuvens escuras (azuladas) apareciam. Troveja: e todos correm para proteger-se da tempestade em marcha.

Foi quando ele apareceu. Um dos sabiás que cantam pelas copas das árvores da praça ao lado, não sei como, acabou entrando prédio adentro. Sem saída, foi parar no topo do janelão.

Lá de cima, ele tinha uma vista melhor que a de qualquer um de nós. Porém, viu que o vidro proibia. O rufar de asas chamou a atenção de uma moça, sentada num sofá do outro lado do saguão. ela tentou fazer contato com o pássaro assobiando. distraído, tirei os olhos do livro que tinha no colo e olhei para ela. Sorrindo, a moça apontou o bichinho perdido, lá no alto.

Ela tentava chamar a atenção do animal. Perdido, ele fazia um movimento repetitivo de ir do topo dos janelões, bicando o vidro ao mesmo tempo em que tentava manter-se no ar como um desajeitado colibri - provavelmente sem entender o porquê de, a despeito de ver a transcendente paisagem à sua frente, ele não conseguia sair dali.

Cansado, o sabiá pousa na soleira (ou uma divisória à guisa de soleira para passarinhos perdidos). Minutos depois, tenta de novo. Vai de cima a baixo batendo as asas e bicando a janela, até voltar ao ponto de partida. Toda vez que ele parte para a sua empreitada, nós (já éramos três) olhávamos o movimento pacientemente desesperado do passarinho.

Depois de umas cinco ou seis vezes, muito empertigado, como se estivesse se sentindo vítima de um complô, ele põe-se a cantar, como que contrariado. A chuva parou, ele precisa cantar para avisar que a chuva parou. Mas ele não entende por que não consegue sair dali.

...


Quando ele canta, nós, que já estávamos meio cansados de observar suas investidas contra a janela, ficávamos a contemplá-lo, lá no alto, cantando para a tarde, não se sabe se para cumprir tabela ou porque ele estava, naquela altura dos acontecimentos, um tanto contrariado com aquela constrangedora situação.

Nós abrimos as janelas do andar de baixo, para que, talvez ouvindo o bulício da rua, ele entendesse que, ao contrário das janelas de cima, as do nosso andar estavam abertas. Mas, não: ele continuava naquele movimento de bicar o vidro de cima. Às vezes, tentava estribar-se nas divisórias, mas sem poder equilibrar-se, o sabiá acabava voltando à soleira.

O seu canto - que ressoava, de forma incomum, de dentro do prédio, chamava a atenção dos passantes...

Notei que ele se exasperava porque era assistido por gente que o observava lá de cima. quando chegava alguém, ele se assustava. Quando o movimento sumia, o pobre bichinho voltava às suas divagações e ao seu canto sem graça, da soleira dos janelões...

Muito tempo já havia passado; o remanescente era eu, que já havia terminado o livro e velava o sabiá em sua busca pela liberdade. Fazia conjecturas: pensei que ele fosse se cansar de vez, e tocar o chão. Ele permanecia ali na soleira mais pelo seu atávico e sábio medo dos seres humanos.

De repente, acho que ele parou para pensar a sua condição. Parou de fazer aquele tresloucado movimento sobe-e-desce e de embalde bicar o vidro. Começou a olhar fixamente para a balustrada do 'mezanino' do terceiro andar.

Respirou fundo, e deu um salto perfeito, da soleira até a balustrada. Virou-se para a rua; agora, com outro ponto-de-vista, ele pôde contemplar todas as janelas. Com efeito, notou finalmente que as do segundo andar - bem abaixo de onde ele estava antes, estavam abertas.

Fiquei pensando que, às vezes, nós somos como esse pássaro. Ficamos insistindo em saídas, soluções, modelos e processos que, na verdade, são, como diria o escritor norte-americano Scott Fitzgerald, apenas um passo à frente rumo ao nosso passado. E, no fim das contas, levamos anos andando em círculos até chegarmos a uma epifania sobre qual caminho seguir ou sobre o nosso destino.

E que, depois de muito tempo insistindo em causas perdidas, descobrimos que perdemos muito tempo de nossa vida breve em algo inútil e contraproducente. Às vezes, morremos sequer sem chegar à essa epifania fatal. Tudo por causa de um ponto-de-vista estreito e limitado - por algo ou por nós mesmos.

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Num voo em curva, nosso herói condoreiramente bateu asas da balustrada, desviou-se da fresta da janela mal aberta e alçou um intrépido voo até às árvores do Planetário, onde foi cantar o fim da tarde e de uma semana de chuva na cidade. Adeus, passarinho.