Saturday, May 23, 2015

No Cordão da Saideira





Hoje considerado um gênero defunto, a marcha-rancho é um gênero musical que fixou-se nos anos 30 do século passado. Segundo José Ramos Tinhorão, num famoso livro*, o autor explica que ela nasceu do desejo de alguns compositores do período em recriar e "capitalizar o espírito musical e a beleza dos desfiles de ranchos cariocas".

Na verdade, a história da marcha-rancho se confunda com a própria história do carnaval carioca. Segundo Tinhorão, a primeira foi " A Jardineira. Extraída do folclore nordestino, o título faz referências às meninas pastoras que saíam em cordões, enfeitadas de flores e tocando pandeiros.

Sua primeira adaptação carioca se deu por Hilário Jovino. Ele criou o rancho (com esse nome, a partir da música) como uma espécie de 'paganização' do terno de reis. Lançado em meados dos 1870, eles atingiram o auge na virada do século, ocasião na qual surgiram muitos outros, como o Rosa de Ouro. Este, por sua vez, incumbiria a maestrina Chiquinha Gonzaga de criar o "Abre Alas", que faria bastante sucesso nos tríduos momescos a partir de então.

Chiquinha só não foi a precursora por causa da temporã "A Jardineira". A despeito de ter se tornado famosa nas festas de momo de 1938 - na voz de Orlando Silva, a marchinha (de Benedito Lacerda), como se soube depois, era um plágio de Hilário Jovino. Como provaria Almirante, os versos já haviam sido cantados por um certo Candinho das Laranjeiras, em 1886.

Polêmicas à parte, o fato é que foi a partir dessa época que compositores modernos passariam a a fixar o marcha-rancho (ou de rancho) como um gênero musical. Ao contrário da marchinha de Carnaval, esse estilo era mais vivo e mais lento. Surgindo imbricada à temática momesca, aos poucos, ela foi saindo sutilmente do universo carnavalesco até incorporar-se à moderna MPB.

Sempre altaneiras, nostálgicas, algumas delas se tornariam derradeiros exemplos de música de Carnaval; outras, no entanto, viraram clássicos da MPB. Eis algumas delas:

Paisagem Útil: (Caetano Veloso) Do primeiro disco do compositor baiano, de 1968. Uma Alegria, Alegria ao contrário, pelo dissimulado comentário social, é tipicamente tropicalista, desde o título (é uma brincadeira com Tom Jobim), até a letra, que é um travelling onírico pela zona sul do Rio com um olhar debochado e grotesco sobre a dolce vida fútil do café society até o grotesco da "lua oval da Esso" iluminando o beijo.



Rancho da Praça Onze: (Herivelto Martins) Composta para uma revista, em 1960, cinco anos depois viraria tema de Carnaval, na voz de Dalva de Oliveira



Marcha da Quarta-Feira de Cinzas (Carlos Lyra-Vinícius de Moraes) Do primeiro disco da Nara pela Elenco, do Aloísio de Oliveira. Talvez uma das mais conhecidas canções da dupla. A despeito de ter sido composta em 1963, virou uma metáfora das efemérides pós idos de março do ano seguinte.



Frevo nº 2 do Recife (Antônio Maria) Uma das grandes criações de Antônio Maria, aqui na versão de Maria Bethânia, provavelmente a melhor intérprete dessa marcha.



No Cordão da Saideira (Edu Lobo) Gravada no primeiro disco do MPB-4, é uma das melhores do disco. Assim como o Frevo nº 2 do Recife, a letra é extremamente nostálgica.



Rancho da Rosa Encarnada (Gilberto Gil-Geraldo Vandré-Torquato Neto) inscrita no I Festival da Excelsior, foi desclassificada mas depois gravada por Gil, no seu primeiro disco para a Philips, em 1966.



Porta-Estandarte (Geraldo Vandré-Fernando Lona) Em 1966, ela venceu o II Festival da Música Popular da TV Excelsior. Essa é a gravação original, uma marcha-rancho "de protesto" bem da época, da pena de Vandré, falando sobre "o dia que virá".



Máscara Negra (Zé Kéti) Dalva de Oliveira retornaria em 67 com Máscara Negra, música de Zé Kéti que, mesmo sendo um tema carnavalesco moderno, acabou incorporando-se ao cancioneiro do gênero. A despeito da letra grande, virou sucesso desde então, com sua metáfora de amores fugazes e não correspondidos e commedia del arte, tão caros à mitologia momesca.



Bandeira Branca (Max Nunes-Laércio Alves) O terceiro sucesso de Carnaval na voz de Dalva de Oliveira, e justamente numa época em que o gênero estava há anos em franca decadência como música comercial - remontando aos tempos da Era do Rádio, com Lamartine Babo, Nássara e Braguinha. Max Nunes e Laércio Alves compuseram aquele que foi o último sucesso carnavalesco. A gravação também seria o canto do cisne de Dalva, que morreria dois anos depois.



Noite dos Mascarados (Chico Buarque) No começo da carreira, Chico teve uma primeira tentativa em marcha-rancho com "Canção para uma Manhã de Sol", segundo ele, francamente inspirada em Marcha da Quarta-feira de Cinzas. Em 67, ele gravaria Noite dos Mascarados (com Odete Lara e o MPB-4), que seria a sua marcha.



Eu quero é Botar meu Bloco na Rua (Sérgio Sampaio), Lançada em 73, Sérgio fez um misto de toada com o refrão em tempo de marcha-rancho. Não vendeu nada na época. Porém, tornou-se uma espécie de hino do desbunde durante a repressão dos anos 70





* José Ramos Tinhorão, Pequena História da Música Popular Brasileira. São Paulo, 2013 (7ª edição)

Monday, May 18, 2015

A Ipanema morreu






A Ipanema acabou. Ouvi ela desde o começo, nos anos 80. Até a última música, hoje de madrugada. Era um hábito. Naquele tempo, investia-se muito nesse tipo de mídia. Era o tempo das loucuras. O formato FM ainda era ligeiramente experimental, e permitia voos, como foi a Eldopop nos anos 70, e a Fluminense nos 80. Junto com a porto-alegrense Ipanema, era a rádio dos magros: ninguém dava nada para aquela magrinhagem com cara de roqueiro.

Mas eles mostraram que existia um público enorme numa cidade que saía do inverno cultural da ditadura e redescobria o rock. O mais interessante na Ipanema era aquele espírito de ir na contramão do esquema das gravadoras. Às vezes, alguém desencavava um Trio ou um Duruti Column, e aquilo virava sucesso, daqui a pouco aquilo virava uma febre sem jabá.

A Ipanema era aquela rádio que a gente chegava da escola (quando eu morava na Duque), do cinema ou da natação no Grêmio Nautico União, morto de sede de descer o Moinhos até a Independência até o centro, chegava na cozinha, pegava a garrafa d'água na geladeira, deitava na cama, ligava o reciever e deixava o som baixinho. Sempre tocava alguma coisa que a gente gostava de ouvir. Stones, Sabbath, Deep Purple, um bloquinho de Zombies na Hora do Rush.

Ou 5 da manhã, depois de encher a cara no Crocodilos, no Bambus ou no Ocidente, chegava doido em casa (eu fazia o percurso amigo punk, cortando a Redenção rumo ao Santana, onde eu morava) e curtia o fim da programação da madrugada com um Echoes do Pink Floyd.

Podiam dizer que era uma rádio de doidões, que a gente ouvia a Ipanema só para se drogar, ficava chapado (de fumar um baseado inteiro sozinho) por horas boiando com o corpo em decomposição mas o cérebro campereando campo afora na cama ouvindo Aqualung e percebendo nuances que a gente nunca tinha reparando antes, de cara.

O pessoal jovem não sabe mas, nos anos 80 (no tempo do Julinho), não tinha MTV, não tinha CD, não tinha dinheiro. A mesada não dava para comprar discos. A gente gravava tudo em fita. Enchia o saco da Kátia Suman ou do Nilo Cruz (que atendia a gente ele mesmo) para pedir a música tal ou para saber qual era o nome da música aquela.

A gente vivia os 80 e o pessoal de verde-oliva ainda mandava. Havia a censura nas rádios. Me lembro que Faroeste Caboclo, que tocava em todas as rádios do dial de Porto Alegre, era cortada no verso "olha prá cá, filha da puta, sem vergonha". Porém, enquanto todas as emissoras tocavam a versão interdita, a Ipanema rodava a original.

O mesmo acontecia com Nêga Bombom", dos Cascavelettes. Era mais uma auto-censura das outras rádios, temendo qualquer represália por parte dos verde-oliva. Mas a gente morria de rir ouvindo Menstruada nua e crua, nos 94.9, enquanto alguém me dizia: "por que esses caras não fazem músicas normais?".

A Ipanema foi uma escola quando a gente não entendia nada de rock, e não existia tevê a cabo, as revistas de música rareavam e não havia a internet. Lembro do Base Sonora, que a Kátia apresentava aos domingos, das sete às oito da noite, sempre com um disco na íntegra. Gravava muitos programas naquele tempo - final dos 80, fora o Clube do Ouvinte que, no fim das contas, era outra forma de conhecer uma banda nova. Me lembro de ouvir o Maggot Brain pela primeira vez naquele tempo.

Não tinha como achar o disco original. Coisas do Leonard Cohen, do Gentile Giant, Kinks, Hendrix, Funkadelic mal tinham saído em disco no Brasil. O que foi lançado, há anos estava fora de catálogo. Eu gravava o Base numa fitinha Basf e depois escrevia o nome do disco do programa.

Fora isso, a 94.9 surgiu e protagonizou uma época em que a cena local floresceu num misto de pós-punk shynthpop new wave rock, cujo paroxismo foi o disco Rock Garagem. Produzido pelo Ricardo Barão, ele seria a peça de resistência de um movimento que abriu espaço para um bando de artistas que, em sintonia com aquilo que acontecia na Vanguarda Paulistana e no Rio, iria ser chamada de BRock.

Era o tempo em que shows de conjuntos como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, RPM e arredores lotavam ginásios, com gente até no lustre. A Ipanema, que até o começo, aos olhos de muitos, era um tiro na lua, atingiu o auge em termos de sintonia como a voz de uma geração. Uma zeitgeist que explique o que foram aqueles loucos anos 80 em Porto Alegre precisam colocar a Ipanema como a pedra angular daquele movimento.

Muita música a gente descobriu na Ipanema. Me lembro uma vez, numa madrugada insone e bêbada, depois de litros de vinho tinto no balcão da Lancheria do Parque, depois de um Echoes, dá um intervalo do operador e entra um som que eu liguei outro dia e fui pedir depois qual era, e me disseram que era "Sittin' on the Dock of the Bay", com o Otis Redding. Foi a primeira vez que eu ouvi o Otis, isso lá por 87.

Até porque isso era o rádio. Você podia estar numa festa hipster, na casa da namorada, no carro, no meio de uma sinuca ou no meio de uma suruba, vomitando vinho barato com a cabeça na privada de um banheiro de uns amigos numa república mas, se tem um aparelho de rádio, você podia perguntar docemente: "porra, bicho, posso escolher uma rádio, essa merda da Atlântida aqui não dá?". Botava na Ipanema baixinho e curtia o bode. Tinha sempre um consenso entre os amigos: "bota na Ipanema".

Ou passava a tarde estudando para a prova com a Ipanema baixinho, daqui a pouco, dava uma pausa, ouvia a Hora do Rush, para ver o que o Mauro ia pôr de especial - era discotecagem total, da melhor qualidade, escolhida a dedo, fora do esquemão das outras rádios, era a gente de walkman dando um soco no ar, como o Pelé, no meio da calçada cheia de gente, quando tocava aquela.

Joquim, nau da loucura no mar das ideias, quem nunca viajou torcendo ´por ele, ouvindo na Ipanema?

Fora a nostalgia: coisas que a gente torcia o nariz na época mas que, hoje, bate uma saudade insuportával. Inclusive as músicas mais chatas do Rock Garagem. Hoje, todas são boas. Zappa, Bowie, Charly Garcia, eu aprendi a ouvir na Ipanema.

Por trinta e dois anos, ela foi uma espécie de catalisador cultural do que foi a cultura bonfiniana da boemia bem vestida, da galera estudantil de Porto Alegre. Era a época do Deu prá Ti, anos 70, virada para os 80, quando o traveling dos verdes anos ia da esquina maldita para as bandas de cá da João Telles: o João, o Lola, a Lancheria do Parque, o território livre do Ocidente, os focos de resistência cultural do Berlim-Bonfim.

Uma cultura que hoje é atavismo, mas cuja resistência é provar que não ficou no passado.

A Band FM surgiu em 82, para sacudir o marasmo da cidade. Nasceu literalmente no centro daquela mudança - perto da Santa Terezinha, defronte do parque Farroupilha. Um ano depois, a Bandeirantes compraria a Difusora FM dos Associados, transformando a banda dos 94.9 na capital na Ipanema, uma aventura sem precedentes na história do rádio.


Lembro de uma vez que eu fui no Planeta Atlântida 98. Quando eu tava entrando na Saba, havia um pessoal distribuindo adesivos. Depois que eu passei na catraca, olhava para o adesivo e ria, ele dizia, com o característico logo: "Ipanema 94.9, a rádio do planeta". Achei o máximo. No quarto onde eu passava o verão (um bangalô em Imbé), colei o adesivo, me sentindo um pequeno enragé. Nós íamos às festas da oposição. Mas, éramos, militantes da Ipanema. O adesivo ficou colado por lá até hoje.

A Ipanema morreu. Longa vida à Ipanema.

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Fiz uma lista de músicas que são a cara da Ipanema, e que eu cresci ouvindo nos anos 80. Elas foram a guia musical de muita gente naquele tempo. Não tenho a pretensão fazer uma seleção definitiva (mandem músicas). Muitas delas têm a ver com a própria Ipanema, muitas eu ouvi pela primeira vez lá. A história da rádio está nas suas músicas e, por isso mesmo, nós somos parte dela. Todo mundo é filho da Ipanema.


A lista aceita acréscimos (por via de esquecimentos)


Nelson Coelho de Castro - Armadilha



Os Eles - Levaram Ele
Led Zeppelin - Kashmir
Zé Ramalho - Avôhai
David Bowie - Let's Dance
Garotos da Rua - Meu Coração não Suporta Mais
Replicantes - Festa Punk
Taranatiriça - Reverber
Frank Solari - Play That Rock
Bebeto Alves - Pegadas
Rolling Stones - You Can't Always Get What You Want
U2 - New Year's Day
Durutti Column - Jaqueline
Replicantes - Nicotina
Ira - Tolices



Lloyd Cole & The Commotions - Rattlesnakes
De Falla - Não me Mande Flores
Saracura - Nada Mais
Lobão e Os Ronaldos - Corações Psicodélicos
Jethro - Tull - Aqualung
Siouxsie & The Banshees - Cities In Dust
Echo and the Bunnymen - Lips Like Sugar
R.E.M. - Man on the Moon
The Jesus And Mary Chain - Psycho Candy
Arnaldo Baptista - Cê tá pensando que eu sou Lóki

Talking Heads - Psycho Killer
Vitor Ramil - Joquim



Love And Rockets - No New Tale To Tell
Deep Purple - Fireball
The Art of Noise - Peter Gunn
Fluxo - Nosso Amor Dançou
Caetano Veloso - Terra
TNT - Estou na Mão
Grand Funk Railroad - Some Kind of Wonderful
DeFalla - Instinto Sexual
George Thorogood - Bad To The Bone
Moreirinha E Seus Suspiram Blues - Expresso Blues
Rainbow - Stargazer
Graforréia Xilarmônica - Patê
Colarinhos Caóticos - Útero



Violeta de Outono - Declínio de Maio
Saracura - Nada mais
Barão Vermelho - Rock'n Geral
New Order - Blue Monday
Engenheiros do Hawaii - Por que Não
Orchestral Manoeuvres In The Dark - Pandora's Box
Legião Urbana - Por Enquanto
Júlio Reny - Cine Marabá
Bebeto Alves - Mais uma Canção
Devo - Peek-A-Boo
Taranatiriça - Rockinho
Nei Lisboa - Berlim Bonfim



The Human League - Heart Like A Wheel
Cazuza - Faz Parte do meu Show
Nenhum de Nós - People Are
Pink Floyd - Echoes
Nelson Coelho de Castro - Zé (Naquele Tempo do Julinho)
Graforréia Xilarmônica - Nunca Diga
Vitor Ramil - Joquim
Engenheiros do Hawaii - Segurança
Liverpool - Por Favor Suecesso
Talking Heads - Stop Making Sense
Os Cascavelletes - Menstruada



Bauhaus - Passion Of Lovers
Fito Paez - Dinosaurios
Nei Lisboa - Faxineira
Chuck Mangione - I've Never Missed Someone Before
Echo and the Bunnymen - The Killing Moon
Marisa Monte - Não quero Dinheiro
Creedance Clearwater Revival - I Heard it Through the Grapevine
Eric Clapton - Cocaine
Trio - Sunday you need Love Monday be Alone
Ry Cooder - Canción Mixteca
Jimi Hendrix Experience - Hey Joe
Júlio Reny - Amor e Morte
Nei Lisboa- Mônica Tricomônica
Cazuza - Um Trem para as Estrelas
Urubu Rei - Nêga
Raul Seixas - Al Capone
Paralamas do Suecsso - Selvagem?
The Cure - Push
Charly Garcia ´No me Dejem Salir
Bob Marley - Waiting in Vain
Bixo da Seda - O Trem .

Sunday, May 17, 2015

Something in the Way


Poster do filme


Quando assisti ao documentário Kurt Cobain, Montage of Heck, exibido pela HBO no começo desse mês, na verdade, não achei tão avassalador como parte da crítica entendeu. Até porque, de certa forma, como o próprio líder do Nirvana dizia, ao execrar solicitações de entrevistas, que tudo estava nas letras das suas músicas.

O filme é interessante pela coragem dos pais de Cobain, principalmente Don, seu pai, em colaborar com Montage of Heck, seu relacionamento com sua primeira namorada, Tracy, e seus vídeos caseiros com Courtney Love.

Uma parte da trajetória de Kurt me remeteu à autobiografia de Eric Clapton. Assim como o guitarrista do Cream, ele também teve um episódio de rejeição por parte dos seus pais. Mas mais do que isso, ele talvez nunca tenha sido capaz de elaborar a separação dos pais. Esse episódio iria assombrá-lo pelo resto da vida.

Por conta dessa rejeição, Eric, que transformou a escritura de sua biografia uma espécie de análise, deixou claro o quanto essa rejeição protelou que ele tomasse conta de sua vida, e de como isso o tornou num alcoólatra, e de como isso quase o levou à morte.

Cobain, por sua vez, tornou-se introspectivo, irascível, instável, ele sublimava toda essa frustração em desenhos - que vemos pela primeira vez em Montage of Heck, e em sua música. Visões dessa rejeição nós vemos nas letras de canções como "Something in the Way" ou na primeira faixa do In Utero, "Serve the Servants". Além da rejeição dos pais, seu pai, Don, segundo ele, o humilhava. Isso também acarretou problemas que ele carregou pelo resto dos dias ("I tried hard to have a father/But instead I had a Dad).

Tanto que, numa entrevista do documentário, Cobain explica que queria muito casar-se com Courtney e criar sua filha, Frances, porque desejava restituir o lar perdido na infância. Isso parecia ser uma questão de vida e de morte para ele. Porém, Kurt achava que já não tinha nem capacidade psíquica e nem física para vislumbrar um futuro que, para ele, parecia "assustador".

Desde a adolescência, o líder do Nirvana sofria de problemas estomacais. Porém, como achava que aquela dor era parte de sua inspiração, ele protelou qualquer tratamento efetivo. Ao mesmo tempo, Cobain diz que decidiu resolver isso tomando remédios. Foi quando descobriu a heroína, já morando com Tracy.

Alguém pergunta se ele seria capaz de criá-la, a despeito de todos os rumores - vindo da imprensa, se eles seriam capazes de criar uma criança em "situação de risco" - dado o fato de que tanto Courtney quanto ele consumiam quantidades gigantescas de drogas durante a gravidez de Love. Cobain revela que seria capa de dar toda a ternura que seu pai não lhe deu. Mais: diria que isse seria o fator principal para que ele abandonasse a carreira.

Outra parte da sua trajetória me lembrou do repórter da Rolling Stone, David Fricke (que fez uma das últimas entrevistas com ele), que associou a vida de Kurt com a de John Lennon ("você pode achar que é sacrilégio, mas está tudo ali"). A fronda de Cobain e Courtney contra a imprensa no auge da carreira do Nirvana parece um repeteco da "The Ballad of John and Yoko". Para eles, não passavam de dois malucos drogados onde ela havia lhe subido à cabeça.

Nos vídeos caseiros - que compõem boa parte do documentário, eles fazem pouco caso da forma como eram retratados pela imprensa. No entanto, o clichê lhes cai bem aos olhos dos fãs. Todavia, Montage of Heck quer mostrar que o amor de ambos era verdadeiro e que, em última análise, Cobain era um homem inteligente, mas não era um herói, um bandleader, e nem queria ser. Morreu sem ter feito dez por cento do que gostaria de ter feito como artista.

Por isso, Montage of Heck não quer ser um grande documentário sobre o Nirvana. Mas mostra que sua morte não é fruto de uma conspiração, ou de um assassinato cultural, impetrado pela mídia. E o filme é um testemunho de um personagem mais trágico do que dionisíaco, o pop star dilacerado pelas próprias entranhas.

Friday, May 15, 2015

Ensaio sobre a Cegueira


Aquiles (direita) e Pátroclo


Num trecho das Confissões, Santo Agostinho * critica Homero, ao se referir aos seus estudos de grego, ainda na juventude. Diz que o autor da Ilíada atribuiu qualidades divinas a seres corrompidos, para que os vícios não fossem considerados vícios e, para qualquer um que os cometesse desse a impressão de que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos".

Dá para ver nesse trecho um exemplo do conflito entre a construção da visão cristã da época e uma visão do mundo pagão. Mas eu acho que isso é exatamente o que existe de mais interessante no poema. A caracterização dos deuses agindo quase como humanos e humanos morrendo com a dignidade de heróis imortais é o que existe de mais original no texto.

Em Homero nós ainda não vamos encontrar uma narrativa com uma análise psicológica dos personagens. Eles se constroem sob a luz do sol. O que os diginifica é a sua ação, pelo que falam (a oratória) e pelas armas. A reputação é a sua consciência maior. É curioso ver como o destino deles se delineia ao longo do poema. Volta e meia, eles se questionam a respeito da morte.

Eles vivem com a consciência da morte. Ela é a moldura da história. A Ilíada é o poema da morte. Essa nota sobre a condição humana é constante nos versos.

O personagem trágico se caracteriza por ser um ser que decai sozinho. Às vezes, não se levam em consideração o personagem trágico que decai junto com uma pá de gente, como na epopeia. Isso não quer dizer que não exista espaço para isso no gênero. E o que torna a Ilíada numa história genial é todo o mundo que é concebido dentro dos seus limites, com heróis e deuses e suas idiossincrasias. Por isso que é inconcebível uma Ilíada sem deuses (como nas versões para o cinema). Sem eles, o poema não se sustenta.

Os deuses agem de maneira pérfida. Dividem-se ao apoiar respectivamente gregos e troianos. Agem como inconsequentes. Zeus é o único que está acima do destino de todos. Sem que eles saibam, mesmo que procurem atrapalhá-lo, o deus dos deuses joga com sabedoria sobre suas expectativas. No fim, todos conspiram inconscientemente à favor dele. Hera e Artêmis se engalfinham; Atena parte Ares no meio. E por aí vai.

Agamênon é meio Brancaleone. Acha que, ao despachar Aquiles, logo no começo da história, pode vencer os troianos. Não consegue, e isso faz parte do plano de Zeus de mostrar aos gregos que eles são impotentes sem Aquiles. É instigado por um sonho divino a atacar, e mostra-se falível.

Aquiles foi um filho mimado que, ao perder o butim, confiscado por Agamênon, foi embora. Pede ajuda à mãe, que pede ajuda a Zeus. Note-se que foi o cúmulo de uma briga já antiga que acendeu o rastilho de pólvora que se tornou a briga entre o filho de Peleu e o pai de Orestes.

A Ilíada é delimitada, desde o primeiro verso, pela fúria de Aquiles. É esse o tema do poema. Mas parece que ela é guiada pela cegueira momentânea de três personagens. Cegueira, aqui, imaginemos algo próximo da hybris grega, uma pessoa cujo orgulho ou vaidade em sua respectiva posição lhe sobe à cabeça, mesmo que, de cabeça fresca, logo depois, pudesse ter plena noção do seu lugar. É quando cai o pano sobre a vista, num momento de fúria, de loucura, aquele momento em que a gente fala o que não deveria falar, sem se importar com as consequências. Isso é demasiadamente humano.

A consequência da briga dos dois é enorme. Em sua soberba, Agamênon acha que pode tudo sem Aquiles.

O personagens crescem ao longo do poema. Diomedes é fustigado por Agamênon. É considerado um bom orador, mas não havia provado sua virtude nas armas. Mais adiante, Mais adiante, o mesmo Agamênon se vê perdido na luta, sem saber o que fazer diante de um exército à frente de uma derrota iminente. Sugere que todos voltem à Grécia. Diomedes, que havia sido o maior guerreiro depois de Aquiles, que havia se retirado da luta, diz que quer ficar. O rei de Esparta acaba dobrando a língua, diante dos seus homens.

Agamênon não demonstra externamente, mas podemos supor que ele sentiu o golpe. Quer desculpar-se, ele aprendeu com seu erro. O problema é Aquiles. Nestor sugere uma missão conciliatória, com Ulisses, Ájax e Fênix, para pedir perdão. Ele quer restituir o butim confiscado do herói dos pés velozes, quer que ele volte, foi sem pensar...

Aquiles? agora que ele sabe que Zeus interfere por ele contra os gregos, a cegueira passa para ele. Ele diz não. Ele não vai voltar. Agora Nestor sabe que é o fim.

Vemos a cegueira de Aquiles quando os troianos chegam ao disparate de empurrar os gregos até a praia, quase queimando suas naus. Ele diz a Pátroclo: "agora quero ver eles rastejarem a meus pés!". Num último movimento, Nestor consegue convencer Aquiles através de Pátroclo, para que este lute com suas armas, em seu lugar. Ele consente mas esse é o engodo de Aquiles.

Pátroclo morre pelas mãos de Heitor, que rouba suas armas. Apenas isso seria capaz de fazer o filho de Peleu voltar às hostes gregas. O problema é que, agora, ele não cumpre a mesma missão de antes. Agora ele atua em nome da vingança contra Heitor. É um tropel sem freios, agindo apenas por conta própria.

Heitor é um personagem interessante. Ele vê a aflição de sua mulher e mãe como o arrimo de Tróia. Tem consciência de sua finitude, de que pode morrer na guerra. Ele é o personagem trágico por excelência. Mesmo sendo do "inimigo", ele é íntegro. Talvez seja o personagem principal da história, muito embora ela esteja presa à ira de Aquiles.

Pois o filho de Menelau é um homem exemplar. Um cidadão de bem, temente aos deuses e pagador dos seus impostos. Comanda os troianos com bravura. Não tem auxílio de ninguém (como Enéas, que é filho de Afrodite, ou Páris, que é beneficiado por ela). Porém no afã da luta, ele se esquece de que é um simples mortal. Parece igualar-se aos deuses. Sabe que os gregos vão saquear Tróia, destruir o Paládio e escravizar a população sobrevivente. Mas, depois de sentir o gosto da vitória iminente, ele também vira o Pateta no trânsito.

Agora, a cegueira cai sobre Heitor. No canto XVIII, Polidamante sugere que as hostes troianas voltem para a cidade. Lá, protegidos pelas muralhas, eles poderiam defender-se da ira de Aquiles. Heitor ri de Polidamente, e diz que quer ficar e encará-lo frente a frente. Para ele, a vitória é certa. Ele não sente medo, não mede as consequências (embora fustigado por Atena que, momentaneamente, o faz pensar dessa forma). O cego Heitor quer o embate final.

Aquiles, depois da morte de Pátroclo, ao contrário, está nu. A perda do amigo matou metade dele. Sua morte total se dará com a de Heitor, por suas mãos. Ele já tem consciência do movimento que fez, é irreversível, tudo caminha para o termo e o seu fim.

A cegueira de Agamênon deu a largada no episódio, que se passa em cerca de quarenta dias, antes da queda de Tróia. Ou seja, a Ilíada não conta o fim da cidade (por isso, não tem nenhum cavalo de pau na história, a despeito de muitos não leitores de Homero acharem isso).

Como se sabe, o 'limite' de Homero é a ira de Aquiles. As derrotas fazem com que ele restitua a razão. A bola passa para Aquiles, que goza com o sofrimento dos aqueus. Ele volta a si quando perde Pátroclo. Agora a bola passa para Heitor, que põs tudo a perder. Curiosamente, se formos ver bem, tudo seu deu dentro do plano de Zeus.

Tróia será destruída, como ele prometeu à Hera. Ele ajudou Tétis quando esta lhe pediu ajuda. Aquiles é que não soube medir as consequências do seu ato. O poema se desenrolou por conta dessa hybris, dessas três pequenas insânias, essas três cegueiras particulares que, como diz o Odorico Mendes na terrível tradução dele para o Português, "mandou tantos heróis para o Orco".


*As Confissões, I-XIV, São Paulo, Editora das Américas, 1964.

Tuesday, May 12, 2015

Por que sou Pato Macho



Acervo do jornal (o verdadeiro) está agora na Internet



Esse blog está completando uma década. Isso é motivo de comemoração entre seus idealizadores, o Er, o Nildo e este que vos escreve ou mais precisamente, entre este que vos escreve e seus cinco ou seis leitores assíduos (nós oito ou, vá lá, nove), já que ele (o blog) vive dessa divertida relação primitiva entre o remanescente que vos fala, aquele (oi) que escreve e os que leem (vocês seis ou sete).

Às vezes o blog tem picos de visualizações de página - que eu considero inexplicáveis, Mesmo singrando longos hiatos, ele tem encontrado mitos incautos leitores que, através de ferramentas de busca, acabam achando alguma coisa postada por nós. Por exemplo, dia 10, o Google me listou 213 acessos que não foram de posts recentes.

Muitos desses "recordes" são, com efeito, relativos à postagens muito antigas - postagens que, confesso, na maioria das vezes, sequer lembro de ter postado. Sim, há muita coisa que escrevi aqui que não lembro de ter escrito.

Como se vê, nosso blog vai na contramão da imprensa moderna: é produzido para não ter recordes de cliques. Em matéria de entropia e hermetismo, por conseguinte, somos um sucesso.

Contudo, a média de visualizações por texto publicado é ínfima, boiando no limiar dos seis ou sete - que são, a meu ver, os leitores do Pato Macho.

Mas por que Pato Macho, você deve se perguntar. É uma singelíssima (como diria o Augusto dos Anjos) homenagem. Isso talvez já tenha sido dirimido em posts anteriores mas (não me lembro) enfim. Quem procura por "Pato Macho" no Google sabe a resposta quando encontra este blog nos resultados. Porque ele procura por outro pato, que é o original.

O original que, segundo os seus editores, não era o original, viveu em Porto Alegre em 1971. O primitivo, no século XIX, era do tempo da imprensa de tipografia.

Descobrimos o Pato Macho gaúcho na faculdade de Comunicação. Nosso professor de Lingua Portuguesa era o Tatata Pimentel, ou Prof. Roberto Pimentel, de saudosa memória. Ele era um dos donos (junto com o estilista Rui Sommer, precocemente falecido) do mitológico Encouraçado Butikin, local onde a publicação nasceu, há mais de quarenta anos. Também se tornaria colaborador do semanário.

Quando cursávamos jornalismo, nos anos 90, descobrimos o Pato. A coleção do tablete porto-alegrense, que durou apenas quinze edições, era difícil de achar. Existe uma coleção no Museu Hipólito da Costa, mas acessível apenas à quem se dispusesse a ler no local. E a dele.

Com o falecimento do Prof Tatata, parte da biblioteca dele passou a integrar o acervo da PUCRS. De posse do seu acervo, o Núcleo de Pesquisas de Ciências de Computação da Universidade teve a feliz ideia de digitalizar em formato PDF todos os exemplares que foram à lume no distante ano de 1971.

O link é esse: http://eusoufamecos.uni5.net/nupecc/conteudo/acervodigital/patomacho/


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O Pato Macho nasceu em 14 de abril de 1971. Era um projeto capitaneado por Luís Fernando Verissimo, Cói Lopes de Almeida, Cláudio Ferlauto e o Pinheiro Machado, vulgo Anonymus Gourmet. Tinha 23 páginas e era, como vocês já sabem, um semanário. Além deles, havia um extenso time de colaboradores que, na época, ainda eram pouco conhecidos, como Moacyr Scliar, Ruy Carlos Ostermann, Assis Hoffmann, Carlos Nobre. Enfim, muita gente que trabalhava em agências de propaganda da capital e já militava na grande imprensa, mas que não podia falar de tudo lá.

Inspirado no Pasquim, o jornal tentou criar, à sua maneira, aquele mesmo espírito irreverente da publicação carioca. Mas o Pato esbarrou em várias frentes de batalha que hoje pareciam risíveis, como a pressão de uma sociedade provinciana (mais do que é hoje, mas nem tanto) e a censura propriamente dita, que não aceitava que uma publicação com essa linha editorial pudesse existir.

Claro que havia outro problema, que era a capacidade de auto-gerenciamento, já que, de certa forma, seus editores não dependiam do jornal para sobreviver - e esse é o grande problema do jornalismo feito por jornalistas. Exemplos de experiências geniais e efêmeras foram protagonizadas por esse modelo, como o Diário do Sul (e o próprio Pasquim, que sobreviveu talvez pelo fato de ser carioca), por exemplo. Mas, como lembro de ter ouvido o Tatata dizer (talvez tentando explicar não explicando) que se ele não fosse efêmero, ele não teria sido o que ele foi.

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A redação do Pato era improvisada, não tinha um número de colaboradores fixo ou pré-determinado, todos eram amigos e frequentavam os mesmos lugares. Luís Fernando, Ostermann e Carlos Nobre trabalhavam na Folha da Manhã, a doidivana da Companhia Jornalística Caldas Júnior. existe uma produção acadêmica recente e interessante sobre o jornal, mas a grande experiência se dá a partir de agora, quando todos podem ter acesso aos jornais e analisar por si mesmos o que foi aquele curioso semanário.

A primeira coisa que chama a atenção é o projeto gráfico. Ainda hoje, aquele tipo de diagramação propositalmente canhestra, cheia de vazamentos e com várias faces de tipo e ligeiramente assimétrica parece original. A outra são os anúncios, a maioria de estabelecimentos que não existem mais. Mas, curioso observar que é incrível imaginar que o Pato não pudesse sobreviver -- ou ter sobrevivido mesmo a despeito da enorme quantidade de anúncios por edição.

A terceira coisa é a qualidade da produção textual (ainda mais se comparada com hoje), tentativas de fazer grandes reportagens, matérias-paródia, artigos a la Pasquim versando sobre cultura, literatura e cinema, um correio sentimental (Odete de Crècy, pseudônimo do proustiano Tatata) e muito cartum (muita coisa que Nobre e Veríssimo ensaiavam na Folha).

Fora a filosofia do Simandol. Essa era a forma hedonista de suportar o que era o sufocante provincianismo de Porto Alegre dos anos 70, talvez tão sufocante ou mais estanque do que a própria censura por si só. O Simandol era aceitar que a única forma de escapar à esse marasmo cultural da cidade era ir embora daqui. O jeito era encher a cara ou literalmente "se mandar". Essa era o protesto, ou a forma de resistência do jornal. Em algumas edições, eles brincam com uma tal "enciclopédia Simandol" que vale a pena a leitura.

Creio que, nas entrelinhas, isso incomodava o estabilishment do nosso burgo açoriano. Até porque os motivos pelos quais a Censura caiu sobre o Pato não foram de cunho político (até porque, na sua origem, o PM não tinha estritamente a intenção de ser político, falando até, mas de forma um tanto pragmática e bem humorada, de futebol, entrevistando os técnicos Oto Glória, do Grêmio e Daltro Menezes, do Inter). O estopim foi uma crítica de Cói Lopes de Almeida a Aline Faraco, então esposa do Reitor da UFRGS, Eduardo Faraco.

Ela não gostou da citação e reclamou com o marido que, por coincidência, era o cardiologista do Presidente da República, Emílio Médici. Imagine...

Por conta disso, desde a sua terceira edição, o Pato começou a sofrer censura prévia. Isso pode se notar pela esparsa objetividade dos textos a partir dali, muitas vezes querendo dizer alguma coisa que não se sabe o que é. Como diz a bailarina do filme Luzes da Ribalta: como é triste ser engraçado...

Por outras, o próprio Simandol é a chave para criticar aquilo que podia ser criticado. O marasmo, o provincianismo podiam ser o sparring dos editores do semanário. Mas, naturalmente, era inaceitável para a inteligencia porto-alegrense que existisse, entre bares e mesas da cidade um politiburo de jovens (quem sabe...de repente... até comunistas?) pensando juntos. Isso sim era inaceitável.

A censura prévia ao Pato Macho mostra o que era a censura a um jornal alternativo, quando interpretamos aquilo que foi publicado. O que foi publicado saiu porque alguma coisa havia sido proibida. é visível que há, a partir da terceira edição (quando ocorre a efeméride com a mulher do Reitor) que existe uma falta de rumo, que muita coisa parece que foi impressa para tapar buraco. E muitos dos editores falam hoje que a censura era pesada. às vezes, era preciso rechear quase a metade de um boneco inteiro pronto à ir para o prelo, esse recheio composto por traduções de contos do Garcia Marquez (como na edição 09), por exemplo.

A censura, do ponto de vista editorial, era uma questão de vida ou morte. O Pato esgotava sucessivas edições, mas ter uma edição impressa censurada matava os alternativos aos poucos, como foi o caso de outro semanário, o Movimento. Ao mesmo tempo, havia a pressão aos anunciantes. Por um lado, ou eram ameaçados por patrocinarem aquelas publicações; por outro, temiam ser associados à jornais que tinham o estigma de "subversivos" mesmo que não fossem, e esse era o caso do PM.

Lendo, hoje, é incrível imaginar que havia um ódio fecundo, por parte de militares e de boa parte da sociedade gaúcha contra isso. enfim, além da censura ideológica, há a censura "econômica".

O Pato original parece aquela conversa de bêbados num bar (no caso, o Butikin, na Indepê dos anos 70, que era um dos "personagens" do pasquim gaúcho) do tipo: "vamos fazer um jornal?" e que acabou sobrevivendo à ressaca do dia seguinte. E virou um "diário coletivo de grupo", sem preocupação com uma linha editorial definida, não como um jornal popular, ou com essa pretensão (assim, de certa forma, como o Pasquim, que vendia a "sua" verdade).

Todavia, como observa a professora Aline Strelow num interessante trabalho *, reinava o caos administrativo. Ou você edita, ou você produz. Nesse meio tempo, sem um departamento de vendas, o jornal empatava na venda em banca. Quando empata, ele ainda se sustenta; quando você começa a pagar para produzir, aí a publicação começa a fazer água.

Por isso, a censura poderia não ter papel capital nesse processo. No máximo ou no mínimo, de broxar a pauta. Mas, como podemos ver nas quinze edições, ele morreu prenhe de (boa) publicidade.

Resta saber no que redundava a caixinha do departamento comercial. Ao mesmo tempo, nessa linha de "diário de grupo"< a pauta fechava-se em si mesmo, a falta de novidade, a falta de contato com o público, esses fatores também apressaram o desaparecimento do Pato.

Porém, a respeito desse hermetismo editorial do "grupo", é importante estabelecer uma comparação com o Pasquim. Este, por sua vez, não tinha dificuldade em promover ou se auto-promover a vida da ipenemia dos tempos do desbunde carioca do começo dos anos 70.

O ipanemismo era produto de exportação. Por sua vez, a auto-promoção à la pasquim do desbunde porto-alegrense era um coice curto: não era promocional e, ao mesmo tempo, desagradava a elite conservadora da cidade, o seu alvo principal.

Ou, evitando cair no clichê fácil, o Pato Macho estava ligeiramente à frente do seu tempo. Ou, aderindo ao clichê fácil, longe demais das capitais.

O que ficou, se pudermos falar numa teoria do Pato Macho, era a roleta russa do jogo do Simandol. O jornal dispunha de um tabuleiro para recortar, que era como o Jogo da Vida: à medida em que você avançava, tinha a oportunidade de vencer e ficar; ou de perder e ir tentar a sorte em outro lugar. Ou seja, no fim, a derrota não era uma derrota de todo, e vice-versa.

E o que eles queriam, como salienta Aline, é que as coisas mudassem por aqui para que eles pudessem permanecer em Porto Alegre.

Olhando pelo retrovisor da história, essa coleção preservada é um inefável documento do que era a vida noturna da boemia bem vestida do começo dos anos 70 em Porto Alegre, numa época em que o "in" na cidade era a avenida Independência e adjacências, com seus bares, boates (Baiúca, Le Locomotive, Whisky a Go Go) e o Teatro Leopoldina que, aliás, ficava na frente do Butikin. O DJ Claudinho Pereira, decano da discotecagem na cidade, lançou um livro, há alguns anos, contando um pouco da história dessa boemia com fumos de neo-belle epoque. Vale a pena a leitura.


No fim, o grupo do Pato, no jogo do Simandol, venceu e perdeu: perdeu o jogo, com o fim do semanário, mas manteve a estética militando na imprensa e no circuito cultural da cidade a partir de então.

Do status de iniciantes e desconhecidos (cabe lembrar que eles não gozavam da fama de hoje. Se não, o jornal talvez sobrevivesse), mesmo que de maneira híbrida (e com o fim do "primeiro" Encouraçado, em 72, e que separou o clã), eles tornaram-se figuras importantes na cena local e nacional.



* Aline Strelow, Pato Macho, Jornal alternativo de humor. PUCRS, Porto Alegre, 2004, 69 p.










Monday, May 04, 2015

Muito além do Cidadão Welles


Cartaz do filme


O mundo comemora esta semana o centenário de Orson Welles. Eu, como muitos dos que assistiram ao seu clássico de 1941, Cidadão Kane, sempre tive a imagem do diretor norte-americano como uma espécie de "Homem da Renascença" da Sétima Arte, como diria Ruy Castro* . O artista total. No seu tempo, só comparável a Chaplin.

Ao mesmo tempo, pegando a mesma ideia do roteiro do filme, imaginei me colocar na pele do repórter que, depois da noticiada a sua morte, designado a tentar recriar, através de depoimentos, o perfil de quem foi Orson Welles.

Muitos o associavam à imagem de um renascentista. Um biógrafo dele, John Russel Taylor, disparou: "Orson é a sua própria criação, com Deus como produtor associado. A escritora, poetisa, dramaturga e crítica literária Dorothy Parker disse sobre ele: "foi como conhecer Deus sem ter morrido".

A atriz Geraldine Fitzgerald suspirava depois de conhecê-lo: "parecia o Deus de Michelângelo!". Marlene Dietrich, que dispensa apresentações, dizia que olhava para o céu ao ouvir o santo nome de Welles.

Norman Mailer: "a humanidade nunca produziu um homem mais bonito que o jovem Orson welles em Cidadão Kane".

Na verdade, hoje é fácil amá-lo ou odiá-lo. Opiniões pró ou contra elas existem às pencas, escorrem pelas paredes e estantes de bibliotecas. John Simon, da turma do contra, certa feita deu a largada: "Welles passou a vida investindo o seu considerável talento na tarefa de glorificar o seu gênio imaginário".

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O repórter que fosse fazer um perfil sobre Welles teria que montar um quebra-cabeças. Como o incensado gênio precoce de Hollywood se transformou naquele bufão da propaganda dos vinhos Paul Masson (há quem diga que aqueles outtakes da filmagem que aparecem no Youtube são a sua melhor interpretação).

A queda de Welles lembra a queda de outros "gênios" que, depois de darem ao mundo a sua obra-prima, simplesmente pereceram, moral, filosófica ou físicamente: Proust, Kerouac, Capote. A filmografia do diretor norte-americano pós-Kane é uma lista de filmes inconclusos, terminados à sua revelia - além daqueles que nunca saíram do papel.

Nos anos 70, apareceriam teses que buscavam se não derrubar a inexpugnável imagem do renascentista Welles, pelo menos chegar ao paroxismo de emoldurá-lo a um contexto possível, muito além da fama de gênio instantâneo que o notabilizou.

Em sua autobiografia, John Houseman, um dos homens que lançou Orson, explicou que, nos tempos do Federal Theatre Project, tudo começava com uma reunião com o elenco sobre a possível adaptação de um determinado texto, porém, no fim, quem escrevia os roteiros era ele, Houseman. Welles só aparecia no fim, quando os ensaios e a trilha já estava pronta.

Na mesma época, descobriu-se que havia um sujeito por trás da história da Guerra dos Mundos, e esse sujeito era Howard Koch, roteirista do tempo do Mercury Theatre e mais tarde o co-autor do texto de Casablanca.

A maior polêmica, no entanto, foi um ensaio de Pauline Kael na New Yorker, em 1971. Intitulado de "Raising Kane" (mais tarde transformado em livro), ela revela que Welles tem papel capital na direção, mas escondeu o verdadeiro gênio do filme, que é Herman Mankiewicz.

Mankiewicz era um jornalista da costa leste e que foi jovem para Hollywood tentar a sorte como roteirista. Fez sucesso o bastante para tornar-se um dos comensais dos saraus de William Hearst, com quem convivem por dez anos, até um rompimento fatal em 1936.

Fatal porque Mankiewicz era um dissoluto: naquela década, a bebida e o jogo arruinaram sua carreira na Califórnia. Demitido dos grandes estúdios, não conseguia emprego nenhum, até ser contratado por Orson, já sob os auspícios da RKO.

Welles queria fazer um filme sobre a vida de um homem famoso. Mankiewicz conhecia bem Hearst, a ponto de saber detalhes íntimos da vida do clã através de Charles Lederer, sobrinho de Marion Davies, a famosa cortesã do magnata das comunicações.

Hearst era popular na américa (como Roberto Marinho ou Chateaubriand no Brasil) e a forma como ele ergueu seu império eram conhecidas. Contudo, Mankiewicz tinha a chave. Ele era o homem certo, e tinha escrúpulos suficientes para topar a máxima de que "perde-se o amigo mas não a piada".

Basear Kane em Hearst era suicídio, porém a RKO bancou. Hearst odiou o filme e fez de tudo para eliminá-lo. Não tanto pela sua imagem, mas para quem viu o filme, pela interpretação de Dorothy Comingore para Susan Alexander Kane. Para muitos, um retrato sem retoques, embora muito além da paródia, de Marion Davies.

Mais do que isso, o repórter do filme procura decifrar o significado as pretensas derradeiras palavras de Kane ("rosebud"). A palavra, inscrita no trenó do menino Kane e a chave do enigma, era a forma carinhosa pela qual Hearst chamava o clitóris de Marion.

Não apenas a inconfidência da expressão mas a forma obsessiva e possessiva como Kane lida com Susan no filme, tudo aquilo tinha parentesco com a relação Davies-Hearst. E alguém certamente (o roteirista) estava muito bem municiado de informações sobre. E esse alguém só poderia ser Herman Mankiewicz.

Ele foi capaz de "expor" o clitóris de Davies no filme e pagou caro por isso. Hearst o perseguiu até o fim do mundo (não precisou ir tão longe: o homem acabou seus dias não longe dali, dentro de uma garrafa). O mesmo fez com Welles: conseguiu o boicote ao Citzen e quase pôde apoderar-se dos negativos e das cópias.

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A crítica de Pauline Kael a Welles talvez tenha sido um duro golpe não ao talento do diretor, que é observado por ela mas, sim, à imagem moderna do "artista total", o mito do diretor moderno, quase um Wagner. Kael dizia que a ideia de Kane não era original.

O tema já havia sido explorado por Hollywood antes. A diferença é que Mankiewicz soube, com maestria, dourar a pílula. Ninguém poderia ir além de Citzen, principalmente por seus diálogos inesquecíveis. O que deveria ser levado em consideração era o fato de que o autor, desde sempre, era o catalisador, mas sua arte era, em última análise, fruto de um espírito coletivo (nada mais politicamente correto).

Esse é o grande problema: como dissociar nosso herói de sua criação maior, sem dissociar tudo? Parece incrível pensar que tanto a efeméride da Guerra dos Mundos quanto à excelência de uma obra-prima como Citzen Kane consigam sustentar um mito impossível de derrubar. Nem mesmo o próprio diretor que, ao mesmo tempo em que cuidou de auto-promover-se, conseguiu destruir a sua reputação, transformando-se, pela vida afora, numa cópia de si mesmo.

Peter Bogdanovich, diretor e autor de um livro onde ele publica horas de conversações com Orson, parece entender que Welles era um pouco (ou totalmente) Kane. Para ele, a obra de seu entrevistado é uma tentativa de idealizar um passado que "se perdeu antes de ter existido".

A conclusão do diretor de "The Last Picture Show" é a mesma do repórter do filme. Parece que nós já lemos, ouvimos e assistimos à tanta coisa a respeito do biografado que não há por que buscar uma resposta-chave.


* Ruy Castro, Saudades do Século 20, Companhia das Letras, 1994.