Friday, June 13, 2014

Uma Weltanschauung porto-alegrense


Largo dos Medeiros

Esses dias, eu subia num domingo de tarde de chuva forte Duque acima, quando cruzei na esquina do Alto da Bronze.

Fiquei imaginando que, assim como Tróia, se um arqueólogo do futuro apostasse sob as ruínas de Porto Alegre, ele iria descobrir, assim como Heinrich Schliemann, que existem várias cidades debaixo de Porto Alegre. Existe uma Porto Alegre que traz atavismos de décadas passadas. Porém, existem outras porto alegres enterradas debaixo da arquitetura presente. Cidades mortas, e enterradas, junto com seu passado, seus protagonistas.

Então lembro-me do Carlos Reverbel. Numa crônica (no Barco de Papel), ele diz que uma senhora o interpelou, na rua, para saber onde ficava a Rua da Praia. A resposta do Reverbel: “minha senhora, a Rua da Praia a senhora hoje só vai encontrar nas páginas do livro do Nilo Ruschel.

Agora, imagino que, por seu turno, nem mesmo vocês sabem do que ele estava falando, ou quem foi Nilo Ruschel. Estamos, na verdade, falando das porto alegres enterradas. Esse alumbramento só perpassa na mente dos arqueólogos.

Por exemplo. Porto Alegre teve pontos de encontro em sua história que hoje morreram e a quase totalidade dos seus habitantes sem memória, quando passam por esses locais, sequer sonham que esses locais foram, um dia, pontos de convergência de muita gente.

É o tipo de episódio que, se alguém contar, ninguém acredita. É como Tróia. Estamos falando de algo tão antigo que a gente nem sabe se realmente existiu ou se, de fato, vivenciamos aquilo tudo — tão passado e tão presente.

Cito três exemplos de lugares que ora representaram quase um Weltanschauung porto-alegrense, e você, caríssimo e jovem leitor, nem sequer suspeita do que representaram.

Largo dos Medeiros
: a esquina da rua General Câmara com a Andradas foi, durante muito tempo, a Times Square da cidade. Naquelas priscas eras— entre meados da década de 20 e final dos anos 70, o grosso do comércio chic do centro ficava ali. A partir dos anos 30, na quadra fronteiriça à praça da Alfândega, os irmãos Medeiros abriram uma confeitaria, ao lado do Cinema Central. Junto com eles, havia outro estabelecimento, a Schramm, na outra esquina. Era comum, principalmente na hora dio footing, no fim de tarde, uma aglomeração de tipos que, com o tempo, acabaram tornando-se decanos do Largo — figuras conhecidas e folclóricas do provincianismo porto-alegrense (e que já renderam a famosa trilogia literária do Renato Maciel de Sá Júnior, nos estertores da Globo gaúcha), além de políticos, futebolistas, turfistas (lembrem-se que, até os anos 50, o turfe em Porto alegre era tão popular (ou mais) do que o futebol.

O Largo dos Medeiros era o ponto ideal: para lá convergia o pessoal dos escritórios, balcões, redações (todos os jornais e rádios ficavam perto dali). O auge perdurou até o começo dos anos 60. Mais tarde, com a descentralização da área, o fim dos cinemas e das confeitarias e o advento do maldito calçadão (já na prefeitura do Thompson Flores), a turma do Largo se perdeu — se dispersou ou morreu. E, aos poucos, o próprio topônimo foi desaparecendo, até perder o sentido. Se não, faça o teste: pergunte a qualquer passante pela Rua da Praia sobre a localização do tal “Largo dos Medeiros”. Ninguém saberá dizer.

Encouraçado Butikin e a “Indepê”: quem lia diariamente a extinta Folha da Manhã, no começo dos anos 70, se deparava com notas sociais e colunas diárias da Ivete Brandalise e do Luís Fernando Verissimo versando sobre o “Butikin”. Idealizado por Rui Sommer, o bar, que marcou época em Porto Alegre, e delimitou os altos da Independência como o point da boemia bem vestida deste burgo açoriano (como diria o Reverbel), surgiu em 1966. Durou até 1972 com a direção original e rerpesentou o momento em que aquela classe média (média-alta) criou um pequeno mundo entre a Santo Antônio e a Ramiro Barcelos.
É preciso lembrar que, nos anos 60, os bairros nobres “de escol” eram, com efeito, Independência e o Moinhos de Vento (muito antes de Três Figueiras e arredores).
E ora pois, principalmente a “Indepê” (que virou a gíria das “minininhas”, como nas tiras do Verissimo, testemunha ocular da história), que foi construída pelos estanceiros que aportaram à cidade e os capitães de indústria que ergueram palacetes inexpugnáveis para além do Jardim Cristóffel. Porto Alegre era mais provinciana e liliputiana do que nunca, mas não havia nada mais adorável do que aquela boemia, que começava na Baiúca, o Teatro Leopoldina (depois da Ospa) na esquina da Garibaldi, o Whisky a Go-Go, o Joe’s (que fechou suas portas, já como uma teimoso atavismo dos tempos da Indepê só em 2010) terminava, de repente, num pocket show no Butikin. Imagine o The Sun Also Rises na Porto Alegre trique-trique rolimã. Era mais ou menos isso.

A partir do começo dos anos 70, tudo mudou. Em junho de 1972, a Prefeitura começou a concretagem do muro da Mauá e a construção do viaduto da Conceição. Para piorar de vez, o Butikin fechou as suas portas.

Esquina Maldita:
a gurizada que estuda no Campus Central hoje vai beber os seus porres politizados ou no Xiru Beer, na esquina da Avaí, ou na Cidade Baixa. Não sabem eles que, o entroncamento da Sarmento com a Oswaldo Aranha foi o point da estudantada intelectualizada ou desbundada dos anos 60 e 70. Somada à repressão do Governo Militar, os botecos que formavam a Esquina Maldita, o local virou foco de resistência ao regime e recanto da esquerda (festiva e não-festiva). Os bares eram o Alaska, o Copa 70, o Marius e o Estudantil. A maioria desses estabelecimentos morreu com a Abertura e a transferência dos cursos de Humanas para a Agronomia. Alguns viraram xerox, outros, mini-mercados. Só restou o Mariu’s que, apesar de ter a sua freguesia descacacterizada de lá prá cá, é outro atavismo daqueles anos políticos ou “anos de chumbo”, como preferem alguns. O “maldita” do nome não era tanto pela raiz política dos estudantes (na maioria homns, já que era difícil ver mulheres sozinhas por lá naquele tempo), mas mais pela aura de transgressão numa época em que duas pessoas fumando juntas podia dar cadeia, imagine conversando entre si.


Para quem quiser saber mais, não irei perder-me em digressões por aqui, pois existe, por incrível que pareça, alguma bibliografia sobre esses assuntos. Assim, respectivamente, eu recomendo, sobre o Largo, os três volumes do Anedotário da Rua da Praia (relançados pela Editora da Cidade, em 2010) e o Rua da Praia, do Nilo Ruschel (reeditado pela IEL, original da Globo, de 1971); sobre o Butikin, o Na Ponta da Agulha, do DJ Claudinho Pereira (de 2010). E sobre o Esquina maldita, um livro-reportagem que é definitvo sobre o tema, escrito pelo Paulo César Teixeira, e editado em 2012 pela Libretos.