Wednesday, January 22, 2014

O Tricampeonato de Lupicínio


Lupicínio Rodrigues


Lupicínio Rodrigues é mormente lembrado como a figura maior do samba-canção do tipo "dor-de-cotovelo".

No entanto, o cancionista porto-alegrense, cujo centenário de nascimento é lembrado este ano, começou como compositor carnavalesco.

Nos primórdios, como em outras capitais, o Carnaval era pura arrelia, capitaneada por blocos que se encontravam na rua, numa pororoca de gente. Aqui, por exemplo, tínhamos vários: "Tigres", "Os Batutas", "Os Divertidos e os Atravessados", "Os Turunas", "Os Prediletos", "Os Vampiros", o "Chora na Esquina", entre outros.

Como diz Nilo Ruschel, no seu livro Rua da Praia, havia uma rivalidade enorme entre estas agremiações, algo assemelhado ao que veríamos, anos mais tarde, no futebol.

- Os blocos arrastavam multidões ao som da música, e a rua se enchia de vozes cantando, de povo pulando atrás dos estandartes - escreve Ruschel. - No meio, viam mulheres com crianças de colo e pela mão, olhos inflamados de bevenecimento, gargantas estalando de tanto cantar.

A grande rivalidade, contudo, ficava entre os Batutas e os Tigres. Enquanto estes tinham em suas hostes o maestro Pena, da banda da Brigada Militar, aqueles possuíam Otávio Dutra como o verdadeiro batuta.

Lupicínio, que era da Ilhota (região alagadiça que se situava onde hoje está o Teatro Renascença, em Porto Alegre. Naquele tempo, o Arroio Dilúvio passava por onde foi construída a radial que leva o nome de avenida Erico Verissimo), conhecia o pessoal do Bloco dos Tesouras, cuja base era perto dali, no Areal da Baronesa; no entanto, ele se filiou aos Prediletos. Foi lá que o autor de "Brasa", "Ela Disse-Me Assim, "Cadeira Vazia" e "Nervos de Aço" se lançaria da Praça Garibaldi para a posteridade.

Aliás, quando foi cronista por um breve período, na extinta Última Hora, em 1964, Lupi também descreveu as festas momescas daquele tempo:

- Quando esses cordões se encontravam, nem sempre terminava tudo bem - diz. - Se eram amigos, chocavam-se os estandartes como se fossem beijos, abriam-se alas como se diz em gíria e cruzavam-se os cordões, um por dentro do outro; quando eram adversários, como foram sempre os Tigres e os Batutas, se provocavam entre si com lanternas representando um tigre engolindo uma batuta ou um mestre-domador batendo a batuta na cabeça de um tigre.

No afã de um bloco querer tocar mais alto que o outro, não era incomum que ambos acabassem de fantasia e tudo na delegacia de polícia da Duque para um chá de banco.

Pois foi no Carnaval de 1933 que Lupicínio inscreveu uma marchinha homônima num concurso. "Carnaval" acabou vencendo o certame.

Tempos depois, incorporado pelo serviço militar, o compositor foi parar em Santa Maria. Já cabo, Lupi resolveu concorrer a outro concurso carnavalesco com a mesma marchinha. Venceu pela segunda vez, quando o bloco santamariense "Rancho Sul" defendeu "Carnaval". Era a glória.

A música, porém, não chegou a ser gravada e, como o rádio comercial ainda engatinhava por aqui, "Carnaval" caiu em relativo esquecimento.

Três anos depois, em 1936, Lupicínio concorreu novamente; dessa vez, num certame promovido pela rádio Gaúcha. Junto com Otávio Dutra, dos Batutas. A marchinha, intitulada "Bem Velhinho", foi defendida pelo regional de Nelson Lucena, ao contrário dos demais concorrentes, que lançaram mão de músicos de bloco.

A despeito da singeleza do arranjo e, talvez por isso mesmo, "Bem Velhinho" ganhou o concurso. O prêmio foi um rádio portátil.

Dez anos depois de seu primeiro sucesso carnavalesco, Lupi, já compositor veterano - e de volta à Porto Alegre, foi convidado pelo Município para atuar na comissão julgadora de um concurso momesco.

Um dos blocos que concorriam, o "Nós, os Democratas", apareceu com uma marchinha característica cujos versos eram:

Carnaval,
Foste criado por Deus prá brincar
Vais embora e não queres me levar,
Me diz onde vais, meu Carnaval!

A cantar vou prá não chorar,
Nem mostrar minha dor
Pois sei que vais me deixar,
Tão cedo não vais voltar.


Lupicínio ria por dentro. Era "Carnaval", a sua marchinha, só que com outro nome e outro autor. E os Democratas conseguiram plagiar descaradamente o próprio autor que, por sua vez, estava justamente na banca julgadora!

Ele, porém, não comentou nada. Levantou-se e, esportivamente, foi cumprimentar o campeão. Quando abraçou o "compositor", Lupi disse:

- Parabéns, meu filho. é a terceira vez que esta música recebe um primeiro lugar...







Thursday, January 16, 2014

A praça mais triste do mundo


Figura escultórica da Edgar Schneider (foto: Lucas Pedruzzi/Panoramio)



Em seu provincianismo, Porto Alegre se jacta de ter a chamada "rua mais bonita do mundo". Não sei como foi realizada tal eleição e, na verdade, tampouco me interessa; o fato é que nosso burgo açoriano ostenta esse título (tô brincando, eu sei), e todos os porto-alegrenses orgulham-se disso, como se a bucólica Gonçalo de Carvalho, encravada no limite dos bairros Independência e Floresta, fosse mais bela que a estrada de Salerno a Almaffi ou um trecho da Via Appia.

No entanto, se a capital do Rio Grande possui tal ilustre logradouro, eu digo que ela também possui em seus domínios a praça que eu denomino como a "mais triste do mundo". É a praça Edgar Schneider, e fica no limite ente o Cais Mauá e Marcílio Dias.

Ela fica no Centro Histórico (?). Contudo, é imperioso dizer que dez entre dez habitantes da cidade a desconhece e, por conseguinte, dez entre dez jamais pôs aos pés ali. Outra parcela igual da flanèrie que vai e vem no metrô de superfície (que, por sinal, separou definitivamente a cidade do rio, num dos maiores crimes lesa-patrimônio de todos os tempos) já a deve ter visto, porém nunca atinou de conceber que se trata, sim, de uma praça.

A Edgar Schneider não tem rolê, não tem associação de amigos, não tem turista para fotografar, poetas para cantar sua beleza, não foi decretada Patrimônio Histórico, Cultural, Ecológico e Ambiental, não possui publicações na internet, textos e imagens sobre ela. Nenhum blog (!) a cita, não aparece na imprensa, não recebe visita de retratistas de celular e curiosos de plantão.

O local foi inaugurado em 1962, ano da conclusão do Porto de Porto Alegre, que começou em 1911, no governo Carlos Barbosa, se estendendo - com a construção de silos, armazéns e aterros até o começo dos anos 60. O logradouro foi idealizado no berço cujo pátio pertencia ao antigo Frigorífico do Porto, hoje desativado. aquele ponto da Avenida Mauá - que compreendia toda o arruamento de ponta a ponta, do arrimo da margem esquerda até as docas.

Naquele tempo, passava um trenzinho na Mauá (os trilhos ainda estão lá) que vinha da Zona Norte até a Estação Idelfonso Pinto, que ficava na esquina da Mauá com a Uruguai, na beira do Guaíba. Dali, o comboio partia até um entroncamento com a Ferrovia do Riacho, ao sul da península, e que ligava o Centro com a Tristeza.

Pois no tempo em que havia vida no porto e que pessoas circulavam pela orla do Guaíba na região central de Porto Alegre (meu avô dizia que era do tempo em que se comprava peixe direto dos barcos de pesca, antes de chegar no Mercado Público que, por sinal, foi construído onde está justamente por seu vital conûbio com o Guaíba e o comércio), a praça surgiu. A homenagem se dá ao ex-reitor da UFRGS, Edgar Schneider. A praça ganhou à época um belo ajardinamento. Ao centro, duas figuras escultóricas, construídas por Alfred Adloff, famoso arquiteto na capital no tempo em que ainda vigorava o ecletismo por aqui.

A Edgar Schneider morreu pela primeira vez com um projeto, intitulado Sistema da Proteção Contra Cheias. Capitaneado pelo antigo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), um muro de três metros de altura e quase 3 quilômetros de comprimento foi erguido entre o Gasômetro e a Rodoviária. Idealizado para proteger os prédios públicos da região central de enchentes (o Jacuí desemboca na Volta da Cadeia) como a de 1941, o Muro (separou o Cais da cidade).

A segunda morte da praça se deu em 1985, com a inauguração do Trensurb. Se antes o muro era o limite, e os mais otimistas acreditavam que, no futuro, poderíamos alcançar o Guaíba novamente, os trilhos do novo metrô de superfície enterraram essa possibilidade.

A terceira morte se deu, naturalmente, com a própria morte do Cais Mauá, em 1997, quando o Departamento Estadual de Portos Rios e Canais virou a Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH) e praticamente toda a atividade portuária foi transferida para o Cais Marcílio Dias. Na mesma época, o Cais Mauá se tornou área alfandegária e de fronteira. Em consequência disso, todo o tráfego tanto de autos como de transeuntes (eu era um deles) foi rigorosamente restrito.

O Muro causou o grande dano na cidade, pois, que foi a amputação e o exílio forçado do livre acesso do porto-alegrense com o seu rio (se o ilustre leitor procurar pelas fotos da cidade antiga, retratadas pelo Virgílio Calegari, verá que a orla do Guaíba era mais movimentada que o laguinho da Redenção nas tardes de domingo). Além disso, havia uma certo relacionamento vital com o Porto; até os anos 70, existia um estacionamento em oblíquo na avenida Mauá. No momento em que esse passeio acabou, por conta do muro, toda essa região comercial da avenida morreu. A Edgar Schneider, que era um espaço integrado ao Centro que, de certa maneira, servia como refúgio à loucura da cidade. Hoje vemos o estrago: basta correr a vista quando se está num ônibus e prestes a desembarcar no Terminal Parobé. Ninguém passa por ali, só existem prédios de pé direito alto e com fundo demolido que servem de estacionamentos caça-níqueis.

Saudosismo? Num país de primeiro mundo, teríamos um cais e gente circulando por ali, desde sempre.

Isolada, a praça não teve mais atenção, muito menos manutenção. Foi descaracterizando-se, até virar um simulacro de ruína. A figuras escultóricas, duas ninfas de braços vazados, parecem carregar séculos em suas costas. Quem passa por ali hoje encontra uma paisagem fraturada, parada e perdida no tempo.

Por mais paradoxal que seja, de certa forma, o isolamento da Edgar Schneider, tem um ponto positivo. Como sabemos, nos últimos 40 anos (a idade do Muro), assistimos à destruição e ao esvaziamento das praças do Centro (e a consequente ocupação delas por moradores de rua), mas o esquecido logradouro do cais guardou a sua integridade, posta à prova apenas e tão somente pelo tempo. O único caso de vandalismo que conheço dela é o descaso e o esquecimento.

Tempo esse que cuidou que ela fosse, quase meio século depois, contemplada na virtual revitalização de todo o Caus Mauá, cuja obra começa finalmente esta semana. De acordo com o Piratini, o contrato de arrendamento entre governo do Estado e a empresa Porto Cais Mauá será de 25 anos, com um repasse anual de R$ 3 milhões ou 1,7% da receita operacional, valor que será destinado à SPH para ser aplicado em benfeitorias portuárias.

O projeto inclui todo o entorno da Praça Edgar Schneider e o antigo frigorífico. Se tudo der certo, a praça mais triste do mundo vai, graças aos deuses, perder o título.




Thursday, January 02, 2014

Anunciação






E José, despertando do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher
Mateus, 1;24


Então eu sonhei que tu voltavas; tu eras aquela menina florida deusa dos olhos volúveis pousada na mão das ondas que eu conheci num dia de sol nascendo de uma concha como numa pintura renascentista e desde que te vi, deixei meus olhos sozinhos na soleira da tua porta. Tu dormias em tua alcova e eu tinha medo de te procurar, eu sabia que tu não gostavas de mim, tu que me dizia que eu era velho demais para você mas eu te acolhi com todo o amor de mortal, mas eu te amava e, no entanto era feliz. Eu tinha a eternidade ao meu lado, mas me sentia um tolo e ridículo e um velho apaixonado nos umbrais da morte, eu ia confessar meu sonho para ti e tu ias rir da minha cara, tu que não sabes ainda o que é amar como eu te amo. Eu te amo e tu sabes mas tu acha que eu não sei o que é amar e acho que nem tu sabes o que é amar. Eu posso não ser inteligente e esperto e talvez eu até diga para ti que eu sou meio tosco mas eu sei o que é amar. Porque o que eu sinto por você, todos os dias, todas as noites, todas as horas vazias, todos os dias perdidos da minha solidão, eu sempre penso em ti e isso só pode ser amor. No sonho, tu me conduzia pela rua - como naquela vez, lembra? - e eu fazia todas as tuas vontades, tu tão airosa e pueril e boba e linda como uma menina grande de vinte e poucos anos e te comprei até aquela camiseta com uma estampa do Che Guevara e tu me levaste na Banca 15 porque tu não conhecias ainda o sorvete da Banca 15 e eu sabia que tudo aquilo para ti era banal e fútil como uma tarde de dia de semana mas para mim você era o caminho, a verdade e a vida ou seja lá o que quer que seja. Mas eu sabia que não era para sempre e sabia que quando fôssemos embora daquela cidade todo o nosso caminho seria sagrado e tu serias bem-aventurada em todas as gerações, mas eu também sabia que era o fim e que tu irias me esquecer e tu iria voltar para o teu rincão e para os teus amigos bonitos e simpáticos e inteligentes e ia arrumar um namorado, ia noivar e ia se casar e eu ia ficar em meu catre sozinho sozinho olhando a distante estrela de Belém e imaginando se tu ainda pensarias em mim e nas palavras bonitas que eu te escrevi e nas canções que eu compus para ti e do meu jeito tolo, trêfego e triste de ser, pensava se tu ainda lembras de mim, que sobe no alto do monte e contempla a noite imaginando que aquela luzinha distante no horizonte noturno é você, lá na distância fria do horizonte, talvez ninando o seu filhinho pequeno em seu colo enquanto olhas pela janela, seu bambino que já deve ter esgotado todo o estoque de fraldas que você ganhou no chá, imagino que você é jovem, o menino vai crescer, você vai mudar, vai voltar para mim e eu estarei sempre a te esperar. Por que você quis ter esse filho, meu amor? Eu não posso competir com ele. Te espero mas já percebi, já vi que acabou. Sem que se mova o meu espanto na noite ancorada da minha solidão, mesmo sendo inútil, vou querer saber porque tudo o que eu quis de mais vivo me disse não. Tudo aqui parece secundário, na vida secundária de uma pessoa secundária de alguém que viveu um dia com você e que esteve em seus braços, eu beijando os teus lábios e os teus peitos que você agora dá de mamar, penso em você sorrindo e penso que estou envelhecendo e que você está envelhecendo e que tudo está envelhecendo e eu ficando cada vez mais assustado com o fato de que o tempo passou e prá você eu sou apenas uma vaquinha de presépio em sua vida, pego a longa e cansativa estrada de novo e vejo da janela do ônibus você com seu filho nos braços, um menino gentil, esperto, rosado e gordo, como os anjos e os cupidos que a arte nos representa em seus painéis, olhe como é bela essa criança que me insulta com seu sorriso banguela, enfim, adeus; vou-me embora, meu amor. Por que as coisas são assim, não é? A verdade é que posso dizer que, sem saber, me encontrei em você completamente e isso me enriqueceu. O que tinha de ser. O Purgatório não é uma porta que se abre para o Céu? Enfim, vou te deixar e te esquecer para sempre, porque eu não tenho nada a ver com a sua vida.