Monday, April 25, 2011

Rádiofônicas

Essa aqui dizem que aconteceu com o Milton Júnior e o Luís Hacke, quando eles apresentavam e produziam, nos anos 80, um programa de esporte amador na rádio Guaíba.

O Mílton teve que viajar um fim de semana para cobrir um jogo do Grêmio, em Ijuí. A partida ia ser sábado de tarde, e o programa ia ao ar sábado de manhã.

Porém, antes de viajar, ele escreveu as notícias da semana e enfeixou tudo com uma sugestão de pauta ao Hacke, que ia substitui-lo. Junto com as laudas, o Júnior escreveu à mão:

"Hacke, o ginasta Carlos Eduardo Fulcher, do Minas Tênis Clube, tricampeão brasileiro, está treinando no Grêmio Náutico União, para uma competição que eu não sei o nome".

No sábado pela manhã, o Hacke pegou na nota redigida à mão, foi para a frente da máquina de escrever e passou o bilhete rigorosamente a limpo.

Ao invés de se dar conta que era uma pauta e ir investigar a dúvida ou na pressa de terminar o roteiro do programa, o produtor redigiu a mesma coisa que o Mílton havia escrito na sexta.

Então o programa vai ao ar. o locutor do programa, Paulo Caligari vai lendo as notícias, chega na nota do ginasta (escrita nas normas radiofônicas, naturalmente) e lê, com voz empostada e parcimoniosa:

O ginasta CARLOS EDUARDO FULCHER, do MINAS TÊNIS CLUBE, tricampeão brasileiro, está treinando no GRÊMIO NÁUTICO UNIÃO, em PORTO ALEGRE, numa competição que eu não sei o nome.\\\


....

Santa Cruz vai pegar o Grêmio no Olímpico, num Gauchão dos anos 80. A transmissão ia ser duplex, já que no mesmo horário, o Inter de Santa Maria pegava o Internacional de Porto Alegre na Baixada.


Na preleção, como é de praxe, os repórteres respectivamente passam aos locutores as escalações dos times, com a respectiva numeração nas respectivas camisetas.

O repórter que cobre o Santa, Jodoé Souza, passa o time mas, no entanto, se esquece de passar a numeração. O locutor, Carlos Moacir, quando se dá conta já em cima da hora, vê o árbitro dar o começo do jogo.

No meio do duplex, com as duas equipes narrando os dois jogos respectivamente, o Carlos Moacir chama o operador pela linha de serviço:

- Alô, me chamem a coordenação!

Alguém responde:

- O quê?

- É o o Moacir, me bota na escuta, cadê o Edgar (Schimidt) eu tenho que falar com o Jodoé!

- Hein?

- Por favor, cortem a transmissão do Olímpico que eu tenho que falar aqui com o Jodoé, caramba!

O operador não ouve nada e a transmissão do jogo do Grêmio segue no ar.

- Jodoé, Jodoé, é o Carlos Moacir.

- O que tu quer?

- Quero que tu me dê a escalação do Santa com a numeração dos jogadores...

- Opa, eu dei mas eu tava esperando o momento certo para dar por completo! - responde o Jodoé.

Imitando uma bichinha, Carlos Moacir brinca:

- É né, é que eu fiquei sem a numeração e achei que tu não ias querer mas dar para mim, e fiquei assustada....


- Aiii, loucaaa! - responde o repórter.



Ainda estava no ar.

...

Essa aqui um operador lá da Famecos me contou. Era um jogo da Seleção em Montevidéu. O pessoal do esporte da rádio Gaúcha foi almoçar num restaurante do centro da capital uruguaia. A equipe era o Brauner, o Pedro Ernesto, o Wianey e o preclaro professor Ruy Carlos Ostermann.

O professor, que é um homem culto, inteligente e cosmopolita, passa a vista no cardápio, e encontra Cazuelas com Mariscos, que é a especialidade da casa. Olha para o garçom, e diz:

- Ora, este é um grande prato, vou querer.

Os demais, que não sabem do que se trata o tal prato predileto do Professor, encolhem os ombros e acabam optando por um A la Minuta. Quando o garçom sai com os pedidos, Ruy olha para os companheiros de mesa e diz:

- Mas meu Deus do céu, vocês comem A La Minuta todo dia, toda semana, todo mês e todo ano no Brasil. Aí vocês chegam aqui em Montevidéu e em vez de pedir alguma comida típica, me pedem um A La Minuta, isso não é possível!

Pedro Ernesto, riscando o garfo no prato vazio, responde:

- Bom, professor, sabe como é, cada um come aquilo que tem vontade, não é?

Não satisfeito, Ostermann faz um panegírico da culinária uruguaia, e descreve minuciosamente as suas Cazuelas como um banquete proustiano, um verdadeiro manjar dos deuses. Tenta, em vão, fazer com que os demais optem pela sua escolha.

Então chega o garçom. Wianey e companhia devoram o arroz com ovo e fritas como se nunca tivessem visto nada melhor. Circunspecto, Ruy os censura:

- Calma, pessoal, calma. Vocês parecem que nunca comeram um bife.

E, olhando para o seu garfo, diz para eles:

- Eu, aqui em Montevidéu, saboreando o meu prato predileto, Cazuelas com Mariscos, e vocês aí, comendo batata frita com as mãos....Humpf.

Nessa altura dos acontecimentos, quase todos na mesa tecem catilinárias contra a culinária uruguaia, menos Ruy, que quebra lanças em favor do seu amplo conhecimento em matéria de cultura platina.

Meio constrangido, o garçom fica ouvindo aquela discussão toda, esperando o momento certo para chamar a atenção de um deles, o professor Ruy. o Ostermann, vendo que o pobre garçom, trazendo um prato com comida na sua bandeja, estava esperando um momento para falar, pede que todos silenciem. O garçom diz:

- Moço, é o seguinte: nós entregamos o prato errado para o senhor. Isso que o senhor está comendo é calamar. As Cazuellas com mariscos estão aqui.


E coloca o prato diante do perplexo Professor Ruy.

Tuesday, April 19, 2011

Apartamento 1313

Batem a porta. Um homem de meia idade irrompe a sala escura, cruzando com certa dificuldade a distância do quarto até a entrada do apartamento, em direção à porta. Tateia o interruptor de luz enquanto destrava a porta. “Deve ser a vizinha querendo se livrar da santinha”, pensa. Ao abrir, dá de cara com um caveira grave, trajando uma longa mortalha negra e foice enferrujada na mão. A caveira fixa seu olhar cavo no homem, e exclama, como quem tivesse repetido a frase diversas vezes:

— Oi. Eu sou a morte e vim te levar.

Ele leva as mãos ao coração:

— É só o que me faltava!
— O quê?
— Eu devo ter esquecido de tomar o remédio para a isquemia.

— Do que você está falando?

Tentava se lembrar:

— Não, agora me lembro! Não pode ser! Eu tomei os remédios, não poderia morrer assim, nunca morrer assim!

— Não te falta mais nada, não. A tua hora chegou — respondeu o vulto.

— Mas! Mas eu tomei o remédio do coração agorinha, antes de jantar! — e gritando em direção ao quarto, ele pergunta à sua mulher: — Não tomei, Orlanda?

Sua esposa ruge alguma coisa do fundo do aposento:

— Viu? Tomei!

Encara a Morte, e diz, triunfante:

— Viu?

— É mas não adianta que eu vou te levar de qualquer forma. Você não tem nenhum poder contra mim.

— Ai, meu Deus! A minha mulher não vai gostar nada disso! Não, não! Mil vezes não! Logo agora que eu parei de pagar o meu seguro de vida porque tinha que cobrir aquela batida que eu dei na kombi no mês passado! Eu ainda estou pagando aquela velha desgraçada! Por que quem bate atrás sempre é culpado? Por que raios as coisas são sempre assim? Quando a gente menos espera, estas coisas acontecem!

— É.

— E meu filho? Meu único filho? Ele vai me perder justamente na época da sua vida em que ele mais precisa de mim, a senhora não pode fazer isso comigo, não pode fazer isso com ele, não pode fazer isso com a gente! Pense bem, pense! É muita injustiça. A senhora não percebe que está sendo injusta?

— Não — respondeu a Morte.

— E o meu sogro, coitado! Morreu no fim do ano passado, e foi aquele escarcéu no velório dele, a senhora não imagina que coisa! Quanto problema aquele homem ajuntou para a família dele quando ele morreu! Apareceu no cemitério todas as mulheres dele, amantes, filhos! Filhos que ele nem sabia que eram dele!

— Isso acontece.

— Duas delas, de luto do chapéu até os sapatos. E a guerra em busca da pensão começou ali, com todas aquelas viúvas, uma puxando o cabelo das outras, haja água de melissa para acalmar aquelas mulheres histéricas.

— Aí está.

— Veja a senhora! E o trauma daquelas crianças? A senhora faz idéia do desgosto de ver uma família dividida daquela maneira, e naquela hora extrema! Uma filha dele, a do primeiro casamento, sofreu tanto com a morte do velho que dizem que enlouqueceu, tamanho foi o trauma! E ele era saudável, não bebia, tinha sido remador quando jovem.

A Morte o interpelou:

— Não me diga que você...

— Eu o quê?

— Que você mais um filho da puta que tem uns casos por aí? Que vergonha, hein, meu velho? Olha que isso só vai complicar as coisas para você, depois...

O homem tomou conta de si:

— Nãããão! Eu não! Quem, eu?

— É.

— Olha, eu tenho um casinho — olha para o quarto e baixa a voz — mas tá tudo em cima, viu? Eu só preciso, eu só preciso de um pouco de tempo, pelo amor de Deus, se não é por mim, é por eles! Eles não merecem me perder desta maneira, eu sei como é, mas eles não sabem! E você sabe que eles não sabem, e você sabe que eu sei que eles não sabem!

— Paciência.

Olha, eu nem gosto das minhas am...das minhas outras mulheres. Quer dizer, gosto, mas não como a minha primeira. Na verdade, não gosto tanto dela como eu gostava antes, mas a senhora sabe como são os casamentos, o tempo passa, a gente vai se desacostumando com aquela vidinha romântica de antes, mas acho que o que salva o casamento são os filhos. Desde que não sejam muitos — e confidente: — Olhe, a senhora sabe que é assim, sempre foi assim. Todo mundo faz isso, por que eu deveria me culpar, por que eu deveria ser culpado por trair uma pessoa que não me quer mais? Tá me entendendo?

— Paciência.

— Como, paciência??? E quanto às minhas dívidas? Não posso morrer sem pagar as minhas dívidas, não posso morrer sem pagar minhas dívidas! Eu não quitei o carro ainda! E a lavadora de louça que eu dei de aniversário para a Orlanda? Faltam sete prestações!

A Morte tentou convencer:

— Aí, ó. É mais um motivo para partir. Aí você se livra destes problemas terrenos. Mulheres, crianças, dívidas. Dívidas e mais dívidas!

O homem já estava lívido:

— A senhora não entende? — diz o homem, esbugalhado de suor — Morrer assim é passar a perna nos outros!

A Morte era implacável:

— Mas ninguém está preparado para morrer. Quanta gente que morre e não tem tempo de arrumar as malas. E olha que nem precisa arrumar as malas.

— Mas eu vou complicar as coisas para os outros! Vocês precisam me dar mais uma chance, mais uma chance! Eu tenho que me redimir, tenho que saldar as minhas dívidas. Preciso de mais um emprego, preciso pagar o colégio do meu filho!

— Só um?

— Desse casamento, sim.

— Quantos são?

— Casamentos?

— Não. Filhos.

— Três. Um está na Índia.

— Índia? Aquele maldito país que ninguém mata ninguém, e só morrem por causa da monção e acidente de trem? Fazendo o quê?

— Ele é arqueólogo. Mas olha, isso não vem ao caso, o que vem ao caso é que eu não posso morrer deste jeito!

— É meu velho. Mas... — diz a morte, tamborilando as falanges ossudas na madeira da foice — você sabe que é assim que deve ser. Senão, ninguém partiria desta para melhor.

— Ó. Escuta só. Eu pago o meu seguro, vendo o carro, quito o apartamento, e depois que o meu filho menor entrar na faculdade, a senhora pode me levar. Pronto. Está bem assim? Hein?

— Você sabe que eu não posso regatear a sua vida.

— Por favor! Eu lhe pago o que você quiser.

— Me pague com a sua vida, que eu vim buscar.

— Por favor, tudo menos isso!

A Morte se enfureceu:

— Não. Mas Deixa de ser chato, homem! Que coisa! Fazia tempo que eu não levava alguém tão chato! Cacete!

— Tá bem, tá bem, eu paro de ser chato, mas por favor, me dá mais um tempinho só, pelo amor de Deus, BUÁ!



A mulher estranha as alterações de voz do marido à porta, e o interpela do quarto, num mugido:

— Querido, com quem você tá falando?

Caindo em si, ele percebe o escândalo ante aquela cena extrema. Olha para a Morte e se vira para trás, gritando com a voz pausada e firme:

— Não é ninguém, É o vizinho do 1313.

A Morte arregala os olhos cavos. Pergunta ao homem:

— Vizinho do 1313? Mas aqui não é o 1313??

Perplexo, o homem emenda, entre confuso e espantado:

— Não, a senhora pode olhar na porta. Aqui é o 1312.

— Oh! Que distração a minha. Me deram o papel e eu não vi direito. Bati na sua porta achando que estava no apartamento certo. Onde fica o 1313?

— É lá no fundo, do lado do extintor.


E foi embora, sem dizer adeus.

Assustado, o homem fechou rapidamente a porta, fechando as trancas como se escapasse das sete pragas do Egito. Sentiu vontade de chorar, mas não sabia se era terror ou alívio. Apagou a luz da sala, e voltou para a cama, onde a sua mulher fazia palavras cruzadas do jornal. Sem tirar os olhos do papel, ela pergunta:

— O que ele queria?

— O cara da porta? Queria, queria entregar a santinha do prédio. — disfarça o homem, fingindo a calma.
— Ué! Mas hoje não ainda não é o nosso dia! — exclama a mulher.

E ele, num cínico suspiro:

— Graças a Deus.

Thursday, April 14, 2011

As 14 canções brasileiras do século


Ari Barroso


Há um tempo atrás, o Ricardo Cravo Albin lançou um concurso envolvendo 13 notórios conhecedores de música popular brasileira. A tarefa era escolher as 12 canções de MPB de todos os tempos.

A tarefa impossível foi anunciada na época na Academia Brasileira de Letras. Claro que muita coisa teve que ficar de fora, como foi o caso da produção musical dos anos 80 e 90 do século passado. Para facilitar, Albin resolveu aumentar a lista para quatorze.

Muita gente vai estranhar Se Você Jurar, do Ismael Silva na lista, já que ela não é tão conhecida quanto as demais. Ela entra provavelmente mais por sua importância história, a despeito de ter se tornado um sucesso na época de lançamento e ser um dos grandes clássicos do samba de todos os tempos. Se você não a conhece, então você não entende nada de samba, caro leitor.

A mais votada (12 de 13) foi Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. A lista ficou assim. Tentei colocá-las em suas respectivas versões originais:

1. Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939, 12 votos). Mesmo sendo acusada na época de criação típica do Estado Novo em seu estilo de samba exaltação, Aquarela foi o primeiro sucesso internacional de uma canção daqui. Consta que Walt Disney estava no aeroporto de Belém quando ouviu a música do Ari e resolveu fazer um filme, que viria ser Você já foi à Bahia.



2. Carinhoso (Pixinguinha e João de Barro, 1937, 9 votos). Pixinguinha a compôs como um choro para flauta em 1917. Ela ganhou versos somente vinte anos depois, quando uma cantora pediu à ela que a transformasse em canção. A cantora, Heloísa Helena, indicou entçao Braguinha para a letra. A primeira gravação porém seria de Orlando Silva.




3. Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1947, 9 votos). Criada em cima de um tema folclórico que o Rei do Baião ouvia na sanfona de seu pai, Asa Branca era meio desacreditada por ele quando mostrou a canção para Humberto Teixeira. O resultado foi um sucesso: além de mostrar Luiz Gonzaga para o Brasil, Asa Branca mostrou o baião para o mundo.



4. Último Desejo (Noel Rosa, 1937, 8 votos). Espécie de canto do cisne de Noel, Último Desejo conta a história da relação entre o Poeta da Vila e Ceci, a "dama do cabaré", Juraci Moraes, que como diz a música, eles se conheceram na boate Apollo numa noite de são João. Quando Aracy gravou o samba, Noel havia morrido poucos dias antes, minado pela tísica galopante que o levou aos 27 anos.



5. O Que Será (À Flor da Pele) (Chico Buarque, 1973, 7 votos). Conhecida inicialmente por causa do filme Dona Flor e seus Dois Maridos, O Que Será, que saiu no disco Meus Caros Amigos, de 1976, representava o ápice criativo de Chico Buarque durante os anos 70. Também possui outras duas letras, que foram registradas posteriormente por Mílton Nascimento e Simone.





6. Chega de Saudade (Tom Jobim e Vinícius de Moraes, 1957, 7 votos). samba-canção divisor de águas na história da MPB, criando um estilo que catalisaria boa parte da produção musical autóctone que mais tarde seria enlatada como MPB. A gravação orignal, no entanto, coube à elizeth Cardoso no disco Canção do Amor Demais, de 57. Porém, a versão de João seria e é a definitiva.




7. Alegria, Alegria (Caetano Veloso, 1967, 6 votos). Considerada por Augusto de Campos como a retomada evolutiva da Bossa Nova, Alegria Alegria era a carga de cavalaria do tropicalismo, que queria deglutir de forma críica e criativa a cultura de massa. Com sua letra modernista em estilo câmara-na-mão, no entanto, ela acabou logrando um terceiro lugar no Festival da Record. Mas em geral esse é o destino das obras-primas.




8. Se Você Jurar (Ismael Silva e Nilton Bastos, 1931, 6 votos). Primeira grande dupla de bambas do samba, os ases da Deixa Falar (depois Estácio) lançaram uma série de sambas antológicos no começo dos anos 30, a maioria para abastecer o repertório de outra dupla, Mário Reis e Francisco Alves. Se Você Jurar é a signature song do niteroiense Ismael Silva, autor de outros clássicos, como Adeus, Antonico, Para me Livrar do Mal e Novo Amor, entre outros.



9. Chão de Estrelas (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, 1937, 6 votos). Sílvio e o jornalista e poeta Orestes têm juntos uma série de serestas geniais, como Serenata, que era o tema de abertura do programa do Caboclinho na Rádio Nacional ou Arranha Céu, uma canção de letra impressionista e modernista mas com uma melodia de modinha imperial. Mas foi com Chão de Estrelas que eles se tornariam conhecidos em todas as partes. Manuel Bandeira dizia que "tu pisavas nos astros distraída" era um dos mais belos versos em língua portuguesa. Outro poeta, Guilherme de Almeida, seria o criador do título da seresta, que Orestes chamava de "Sonoridade que Acabou".



10. As Rosas não Falam (Cartola, 1975, 6 votos). Cartola estava esquecido do mundo (ele conseguiu algum sucesso nos anos 30 com Divina Dama, gravada por Chico Alves, mas se desiludiu com o mundo do disco e do rádio) quando Stanislaw Ponte Preta o achou lavando carros em Ipanema. Tratou de relançá-lo ao estrelato, já em idade provecta. Nos anos 70, Cartola continuaria ativo e lançaria dois discos geniais, e a sua obra-prima, as Rosas Não Falam.



11. O Abre Alas (Chiquinha Gonzaga, 1899) Compositora prolífica e inteligente, Chiquinha fazia música e vendia através de pregoeiros, ou ela mesma vendia, de porta em porta. Na virada do século, em 1899, o rancho carnavalesco Rosa de Ouro, do Andaraí, lhe pediu um tema para o tríduo momesco de 1900. Chiquinha compôs uma marcha, que acabou virando um gênero musical por excelência dentro do Carnaval brasileiro.




12. O Mar (Dorival Caymmi, 1939, 5 votos). Uma pequena suíte trágica que mostra o contraste da beleza do mar e a história de um pescador que perde a vida nas águas. seria a mais conhecida de seu ciclo de canções praieiras contando crônicas da vida dos pescadores da praia de Itapuã. "Não há nada no mundo que possa ser comparado a esse conjunto de obras de tom camerístico", diz Cravo Albin.



13. Pelo Telefone (Mauro de Almeida e Ernesto dos Santos, 1917, 5 votos). Controversa e polêmica, Pelo Telefone era originalmente uma criação coletiva de sambistas que tocavam nos saraus da Tia Ciata, no centro do Rio. Numa tacada de mestre, um dos comensais daqueles serões, Donga (Ernesto dos Santos), resolveu registrá-la numa época em que ninguém registrava canções ( a primeira entidade destinada a isso foi a SBAT, criada em 1916 por Chiquinha Gonzaga, cansada de ver suas músicas sendo plagiadas). Pelo Telefone seria também o primeiro samba carnavalesco gravado de sucesso (o primeiro se chama Em Casa de Baiana, de 1910). A letra, censurada, seria cantada por todos os foliões cariocas nos festejos de momo de 1917.



14. O Bêbado e o Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979, 4 votos) Aldir e João se conheceram no começo dos anos 70. Vivendo à distância, trocavam letras e músicas por correspondência. Criaram um vasto repertório genial, que vai de Kid Cavaquinho a Dois Prá Lá, Dois Prá Cá. Elis Regina, que era anti-bossa novista, a partir dos anos 70 passou a gravar compositores desconhecidos. Foi quando descobriu a dupla. O Bêbado e o Equilibrista se tornaria marcante por ser o hono da abertura política de 1979, celebrando a volta "do irmão do Henfil", Herbert de Souza, do exílio.

Monday, April 11, 2011

Cuesta Abajo


Caminito

Em lingüística existe o estudo de níveis de linguagem, que também é estudado por alunos de ensino secundário — pelo menos se os professores não pularem esse capítulo. Os maiores níveis de fala, o culto e o coloquial, são formados pela cultura inerente, pela formação escolar e recebem influência do grupo social a qual pertencem ou da situação em que a língua é utilizada. O nível culto é aquele que nunca usamos. O coloquial é o usado na conversação pessoal.

Deste, há uma variação, chamada “gíria”. Essa é a forma mais variável de todas, já que uma expressão pode sair de moda como uma roupa. Por exemplo, “sossega, leão”. Não existe nada mais obsoleto, hoje. Não confundir com jargão: essa é uma espécie de gíria técnica de cada profissão.

Existe a gíria dos políticos, dos punks, etc. Muito do léxico da gíria acaba se incorporando ao que chamaríamos de dicionário. É quando a palavra ganha notoriedade além do grupo restrito ou do sincronismo. Um exemplo de gíria muito interessante e que se perpetuou pela música popular, principalmente, é o Lunfardo.

O que é o Lunfardo? Segundo o falecido poeta, tradutor e pesquisador José Lino Grünewald, se trata de um subsistema linguístico que, pasmem, nasceu no meio marginal (a palavra “lunfardo” vem de lunfa, “ladrão”) que viviam na zona pobre da então europeizada Buenos Aires do começo do século XX.

Os sem-culotes, párias da sociedade, egressos do falido mundo rural que Jose Hernandez cantou em Martin Fierro . A Buenos Aires daquele começo de século também era um espaço urbano para onde arribavam estrangeiros de vários países: polacos, turcos, italianos, e franceses.

Com o tempo, surgiu a sociedade dos compadritos, ou seja, dos párias com ares de nobreza. Foi nesse caldeirão cultural que o Lunfardo nasceu.

O Lunfardo é, pois, um filho bastardo mas de parentalidade diversa. Para o também pesquisador, José Clemente, é um gênero metafórico onde a palavra inovadora (neologos) sempre busca se ligar a uma realidade sincrônica através de uma realidade sincrônica: ou seja, procura se conectar a uma vivência anterior conhecida, “de forma a se fazer inteligível”.

Pela imaginação do seu povo, ele também amalgamou elementos de muitos outros idiomas, inclusive o Português. O seu léxico também encontrava cognato no léxico de nosso país — além do argot francês e o slang inglês. De certa maneira, isso explica a popularidade da música portenha no Brasil.

Sendo oriundo de uma raiz marginal, o Lunfardo tem o objetivo de “esconder”, de ser ininteligível aos não-introduzidos.

A despeito desta ininteligibilidade, é muito comum que esta gíria seja utilizada originalmente para falar em encoberto, de modo a obter vantagem contra a Polícia — num jogo de cintura lingüístico típico de malandros, da malandragem. Vingou como um “falar” enigmático.

Frederico Cammarota se referiu à gíria potenha como um sistema fechado similar ao “dizer secreto dos sacerdotes do antigo Egito”. E quem detém a língua, detém o poder. Porém, a marginália de Buenos Aires não chegou a tanto. Contudo, se eles não dominaram a capital argentina, eles dominaram pela canção.

Os poetas, os letristas infiltrariam o falar dos “lunfas” através de suas canções. Foi através deles que ele se incorporou o espanhol falado no Rio da Prata.

José Lino elenca alguns exemplos: mate, significando cabeça; bobo por relógio (trabalha de graça); pelar, tirar dinheiro; mina, mulher, aquela que é explorada como se fosse uma mina de ouro; e para o cafetão, personagem perene das letras de tango, podemos listar: cafiolo, caralisa, cafisho (como em “Mano a Mano”), canfli, canflinero, cafriolo, além de cáften, entre outros.

Foi justamente no tango — originalmente uma música de pobres e que ganhou casaca e palheta com Gardel quando ele cantou “Mi Noche Triste” no sisudo Teatro Empire, no dia 14 de outubro de 1917. Foi Gardel quem tirou o tango da rua, e o transformou numa sólida instituição cultural que ganharia o mundo nos anos seguintes.

O tango deu uma seara ao Lunfardo, e se tornou a crônica daqueles dias. Muitas letras inesquecíveis no vasto território da música portenha são quase verdadeiros tratados de lingüística. Se a Gardel coube o fato de dar elegância e alma ao tango, os seus históricos letristas transformaram o gênero com figura de proa de um movimento que nascera das ruas e falava delas.

O curioso é que o estudante neófito na língua espanhola há de “boiar” no oceano de gírias que se infiltrou no cancioneiro guapo.

Um dos maiores compositores de tango (se não o maior), Enríque Santos Discépolo, enfeixava a gíria em suas canções. Como em “Chorra” (“chorro” é Lunfardo, que significa o ladrão que passa a perna, e a palavra nasceu gíria e hoje é utilizada largamente, como o povo argentino chamou o governo De La Rúa de ladrão ao impedir o saque aos bancos “chorro, donde está nosso ahorro?”), por exemplo:

Y he sabido que’el guerrero
Que murió lleno de honor
Ni murió, ni fue guerrero
Como me engrupiste vós
Está em cana, prontuariado
Como agente ‘e la camorra
Professor de cachiporra
Malandrín e estafador.


“Engrupir”, como no Brasil, significa passar a perna, “cana”, polícia, “engrupir”, adular, “camorra”, bando de marginais (como em italiano), etc. Ou na citada “Mano a Mano”, de Celedonio Flores:

Se dio el juego de remanye cuando vós, pobre percanta,
Gambeteabas la pobreza em la casa de pensón.
Hoy sós toda una bacana, la vida te ríe e canta
Los morlacos del otários los tirás a la marchanta
Como juega el gato maula com el mísero ratón.


“Percanta” é como se chamam as meretrizes em lunfardo. No mesmo sentido, “gambetear” é se esquivar. “Bacana” é o vida mansa; “morlaco” é o dinheiro. O “otário” é o revés (ou vesre, em Lunfardo, que também usa de anagramas para neologismos) do malandro, como se dizia no Brasil, nos tempos da malandragem.

“Marchanta” é golpe. Aliás, “mano a mano” é Lunfardo também, e quer dizer “de igual para igual. São expressões que se universalizaram pela música. Alfredo Le Pera, o parceiro musical de Carlos Gardel, era paulistano e também mestre no jogo de palavras, autor de “Mi Buenos Aires Querido”, “El Dia En Que Me Quieras”, “Amargura” e “Cuesta Abajo”. Mas o maior de todos é, sem dúvida, Enríque Discépolo.

Discépolo foi o cronista maior do tango. Fazendo uma tíbia comparação, eu diria até que ele foi o Chico Buarque da sua geração. Escreveu clássicos como “Yira...Yira”, “Victória”, “Malevaje” (populacho, bando de malevos), “Esta Noche Me Emborracho” e “Uno”, clássico dos clássicos.

Mas o Lunfardo também é poesia. De acordo com José Bacia, até meados dos anos 60 o gênero foi representado por poucos livros de menção, até La Crencha Engrasada, de Carlos de la Pua. Foi o divisor de águas, quando essa modalidade poética foi reconhecida como arte singular.

Em 1962, nasceu a Academia de Lunfardo que, segundo Grünewald, foi quem trouxe criatividade maior na dialética entre arte popular e imperativo estético, com direito a um manual sobre o assunto, Aprenda Lunfa Básico.

A seguir, um breve glossário:

Alpiste: álcool
Bagre: mulher feia
Biaba: assalto (vem do piemontês biava)
Cabrón: corno
Chafe: policial
Currar: iludir
Entregar la rosca: morrer
Escrachado: mal trajado
Farolar: administrar drogas
Forfai: sem dinheiro (oriundo do turfe)
Gamba: nota de cem pesos
Ganzua: pé de cabra (para gatunos)
Garufa: farra
Gil: otário (como em “Cambalache”)
Jerquear: gozar
Macanear: mentir, atochar
Manflora: veado
Matungo: cavalo ruim (como no Brasil)
Mishiadura: pobreza
Nieve: cocaína
Panaro: bunda de mulher
Percanta: concubina (do genovês percanta, princesa, ou alteração fonética da indagação per quanto?, que os imigrantes faziam às meretrizes na rua)
Porra: cabeleira
Orto: bunda
Puente: ladrão de carros
Quieco: bordel
Rechiflado: entrevado, abichornado
Shomer: miserável (do francês chomeur)
Tangata: recital de tango
Timba: carteado
Toquero: policial corrupto
Verano: vergonha
Vivanco: esperto
Yeta: azar
Yuta: cadeia
Zaranda: surra
Zorzal: cantor

Saturday, April 09, 2011

O Artista da Fome


Acima de qualquer suspeita: Celso Roth


A demissão do preclaro Celso Roth do cargo de treinador do Internacional me lembrou de uma história que eu contei (ou devo ter contado) aqui nesse devezenquandário lá por 2005.

A história começava mais ou menos assim (me perdoem por estar puxando pela memória, devo estar negligenciando algo aqui e ali, mas enfim, a história é essa) o pobre diabo até que vinha tentando se lançar na carreira, mas sem sucesso.

Não vingava nem no baixo clero da bola. Era apenas e tão somente um professor de educação física bem falante, pragmático.

Chamavam-no o "papagaio de fraque". Foi quando resolveu procurar um bom pai-de-santo. Já tinha ouvido falar no homem, lhe disseram que era careiro, mas o caboclo dele era forte. Então, o treinador foi ter com ele. O mandingueiro deu uma lista de compras para o homem. Ao todo, pediu que ele comprasse umas velas pretas na flora do Mercado, perfume de alfazema na farmácia, um galo preto mo mercadão, umas fitas azuis no armarinho e charutos na tabacaria.

Feito o acordo, lá foram os dois para uma esquina.

Tempos depois, a carreira do cliente ia de vento em "polpa", como diria a Wanessa Camargo. De cara, ele pegou um time do interior do estado, e conseguiu levar um bando de pernetas às semifinais do regional. Logo, foi solicitado para atuar num clube também do interior, porém um pouco mais conhecido. Virou sensação do milênio! Só faltou matéria na Placar.

As coisas iam bem, só que no afã das vitórias, o nosso herói se esqueceu de pagar o pai-de-santo. Ele foi reclamar com o técnico. Este enrolou, enrolou, até que o outro se enfureceu. Os dois brigaram aos berros, um jurou o outro de morte. O técnico, irritado, decidiu que não ia pagar mais nada.

Crispado de raiva, o homem do sortilégio decidiu se vingar: ia voltar todo o trabalho conta o treinador. Ia ser trabalho sujo, do grosso, pesado. Por essas tantas, ele já era entronizado pela imprensa especializada.

Depois de classificar um inexpressivo clube à beira de fechar as portas para a Série B, foi contratado por outro que, novamente, chegou às portas das finais de outro regional.

Saiu de lá coberto de glórias para disputar uma Copa do Brasil. Em quatro rodadas, ele fez o nome em todo o país.

Foi quando nosso herói sentiu o golpe. A macumba era forte e fez fez efeito, e ele começou a decair. Quando ia se consagrar, caiu do cavalo. Demitiram-no, sem explicação. Foi parar noutro time, nos cafundós do Judas.


Porém, o tal técnico, que era um crente, tinha um não sei quê, um santo forte, ou uma legião de anjos da guarda. Teve tempo de pegar um clube grande.

Um desses clubes grandes que, refestelados no meio de velhos troféus e louros de glórias do passado, acham que a sorte está com eles, aponto de deixar a política de futebol andar ao sabor dos ventos da Fortuna. Por algum motivo, os dirigentes desse clube resolveram apostar no "professor"(como ele já era chamado).

Festejado como o "salvador da pátria" do clube, ele afundou em dois ou três jogos. Os tais dirigentes resolveram metê-lo no cadafalso, e escapar das críticas da torcida. O tal treinador estava fora.

Porém, nosso demissionário herói descobriu que alguma coisa estava acontecendo de bom no meio dessa maré de azar. Ao cair do comando no clube anterior, ele pôde receber meses e meses de salário por conta da recisão de contrato.

Na entressafra entre um emprego e outro, ele pôde fazer o seu marketing: dava entrevistas, era simpático com repórteres, dava palestras um tanto pragmáticas aqui e ali.

Certa feita, até descolou uma vaguinha de comentarista de tevê, numa dessas emissoras da vida. Não tinha levantado taça nenhuma, mas tinha um obscuro vice-campeonazito acolá que lhe investia de uma aura de genialidade e de lenda.

No campo do sobrenatural, era o armagedom do cangerê do pai-de-santo contra as peripécias do treinador, que ganhava de lavada.

Nessa vida de malabarista, o treinador virou um mito da bola. No primeiro semestre, sempre havia um clube interessado em seus serviços, a fim de ganhar algum clássico ou cumprir tabela no regional, com certa dignidade e com a estrela de tão afamado profissional.

Já no segundo semestre, ele era solicitado para a incumbência de salvar algum time da segunda ou da terceira divisão. Nessa tarefa, ele atingiu o grau de mestre: já era pentacampeão em salvar desafortunadas agremiações do inferno da segundona ou da terceirona.

Não ganhava certame algum, mas era requisitado. E se porventura não conseguisse salvar de todo, era demitido e ganhava um troco interessante pela recisão, e ainda tinha copa franca com a torcida, é claro.

Era realista: só cobrava alto por clubes que pudessem pagar. Clubes que gostam de errar no futebol e depois chamar técnicos mágicos para salvar o ano e emendar sonetos de pé quebrado. Ah, e curioso é que times não faltavam para ele.

E o mercado hoje nunca lhe foi tão favorável. Diplomata, simpático, divertido, bem falante e altaneiro, tratava com mesura e cabotinismo a tudo e a todos. Se saía de um clube, cuidava para deixar o caminho aberta para retornar.

E o tal pai-de-santo? Coitado. Cansou de fazer macumba contra o técnico caloteiro e atacá-lo com entidades e caboclos. E o técnico, aliás, hoje nada em dinheiro por conta de contratos de recisão de clubes mal administrados e que torram dinheiro em favor de verdadeiros vigaristas de porta de vestiário.

O "professor" enriquece coma recisão num time qualquer e acaba ganhando o dobro do salário num venturoso novo contrato. Em pouco tempo, empregado ou não, será sempre lembrado, e reinará na capelinha dos argutos de ocasião.

E enquanto está fora do mercado, fatura com a grana da multa recisória enquanto mostra toda a sua cultura e salomônica sabedoria nos microfones do rádio e da tevê, em programas esportivos.

Nosso herói está espantado. Ri a toa. A razão é tão simples: a sorte dele é o "azar" dos outros, e o "azar" dele, na verdade, não é azar. No fim, ele é quem virou uma espécie de macumbeiro do futebol, e quem mistifica e entroniza certos técnicos são os dirigentes medíocres. E não é só coisa do futebol.

Mas aí, quem quiser que bote a carapuça.

O divertido nisso tudo é que o nosso treinador até que poderia pagar ao pobre do macumbeiro em dobro que ele ainda lhe deve para lhe desfazer o tal quebranto. Mas pagar para quê?

Wednesday, April 06, 2011

Ponteio

Há exatos 46 anos, em 1965, Edu Lobo ganhava o Festival da Canção da TV Rio, com Arrastão, defendida pela Elis.

Isso me lembrou um trecho do Noites Tropicais, do Nelson Motta. O livro, que narra em primeira pessoa os bastidores do mundo mundo vasto mundo cultural brasileiro das últimas cinco décadas, ele diz que, depois do sucesso de Arrastão, Edu se montou: gravou três discos e, com o Gianfrancesco Guarnieri, lançou o Arena Canta Zumbi. O auge seria uma mega-produção no Zum-Zum, com o Baden Powell e a Elis (Regina).

Quando iriam começar os ensaios, Edu recebeu um convite para uma turnê na Europa e não pensou duas vezes. Chegou no Rio cinco meses depois.

De volta, o autor de Borandá notou que tudo havia mudado. O novo xodó da mídia agora era o moreno dos olhos d'água Chico Buarque de Holanda, Wilson Simonal levantava multidões, Vandré era o novo ícone da esquerda festiva, Gil e Caetano lançavam seus primeiros trabalhos em disco. Pior: faltava pouco tempo para o encerramento de inscrições do próximo Festival e edu não tenha nada para o certame.

Antes da turnê, porém, ele ouviu a nova canção que Dori Caymmi queria inscrever para a competição. Gostou tanto que o filho de Dorival perguntou se ele não queria pôr letra. Edu chegou a pensar em algo mas achou melhor não se intrometer na parceria de Dori com o próprio Nelson Motta (juntos tinham feito Saveiros).


Contudo, da parceria frustrada, ele ficou com um refrão boiando na mente: "quem me dera agora eu tivesse a viola prá cantar". Resolveu transformar esses versos no refrão de um galope que ele havia esboçado (na linha de protesto entronizada por ele e pelo Vandré de Disparada) e convidou Capinam para fazer a letra. Edu apenas sugeriu o tema, e o poeta baiano fez o resto.


A competição do III Festival da Record de 67 foi o ápice do gênero na década de 60. Tanto que pelo menos os quatro primeiros colocados mereciam o primeiro lugar. A despeito da enorme concorrência, foi justamente a canção de Edu Lobo que ganhou o certame: era Ponteio, defendida por ele, Maria Medalha, Airto Moreira, o Quarteto Novo, orquestrada por ninguém menos que Rogério Duprat.



Ponteio foi a última canção "engajada" a ganhar um festival por aqui. Ao mesmo tempo que o gênero foi se desgastando, o próprio FIC, que virava uma espécie de catalisador político naqueles anos marcados pela ditadura militar, ele foi sendo paulatinamente esvaziado na medida em que os canais ditos de 'participação popular' na época iam se fechando e o público começava a ver que onde se acreditava haver uma forma de mudar a realidade havia apenas música.

O canto do cisne seria a final do FIC de 68, quando o público quis Vandré e os seus dois acordes de "Caminhando" e o júri escolheu a jobiniana Sabiá. quando o Festival da Canção foi capitaneado pela TV Globo, a partir de 69, o FIC já havia se transformado em udigrudi, sob as bênçãos do governo militar - como explica Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais.

Tuesday, April 05, 2011

Caro Flávio


O criador da "A Fonte da Informação"


Morreu o Flávio Alcaraz Gomes e toda uma época desapareceu com ele.

Me lembro do tempo em que eu era rádio-escuta na Prefeitura de Porto Alegre (do tempo em que a Assessoria de Imprensa ficava ali no Paço dos Açorianos, na Praça Montevidéo) e eu fazia a audição da manhã na rádio Guaíba entre 1997 e 1998.


Me lembro de uma enorme polêmica entre ele, os moradores do bairro Santa Teresa com a Prefeitura por causa do projeto de construção do Sambódromo, então previsto para ser construído ao lado do Marinha.

Flávio levou a querela como uma questão pessoal: ele acabou vencendo a queda de braço. A Prefeitura, que já tinha até instalado uma maquete do Sambódromo (ou Pista de Eventos) projetada para ser inaugurada ao lado do ginásio Gigantinho, acabou indo parar no porão do Paço. O Sambódromo foi parar lá no Sarandi.


Claro que eu era guaibeiro desde piá e achava o máximo ganhar soldo para ouvir a Guaíba ao lado da soleira da terceira janela da parte direita do Paço, que dava para a rua Uruguai, onde ficava a salinha do escutas (o nosso colega aqui do Pato Macho e decano do jornalismo gaúcho, Nildo Jr, certamente se lembra).

Quando eu era estagiário da Prefeitura eu ouvia e degravava os Guerilheiros na Guaíba, ali e depois na escuta no porão do Piratini). Ele nos ridicularizava, chamava a gente de "dedo duros" do prefeito, mas era o estilo dele. E, de fato, a gente não passava de insolentes dedo duros.


Era divertido ele com o Baldi no começo do programa, ou convidando algum vereador de oposição para meter pau na Prefeitura, eu degravava mas como não era partidário de nada, apenas um estagiário e estudante de jornalismo tolo e ignaro. Eu degravava as críticas e morria de rir de tudo aquilo. E isso que 1998 foi ano eleitoral, ou seja, eu devo, de longe, ter degravado uma suma teológica de tantas laudas de trechos do Flávio Alcaraz Gomes Repórter.

Sempre depois do Correspondente Renner, o Flávio colocava uma música. Era ou o Strangers In The NIght, com o Sinatra, ou Ultimo Desejo, com a Maria Bethânia (aquela versão do Recital da Noite Barroco), ou Yves Montand, Juliette Grecó (a musa existencialista) ou Charles Trenet (Le Mer), sempre tem um cantor francês, que era o que ele gostava. Aliás, aquela musiquinha do assobio, que era a trilha de abertura dos Guerilheiros na Guaíba ele usava desde os tempos da rádio Farroupilha, quando ele transmitia o programa direto do Presídio Central, onde ele foi tirar férias por alguns anos.


Me lembro de uma vez que ele veio de Paris com um CD do Montand e passou uns dois meses tocando quase todo dia o Yves cantando Les Jardins De Monte-Carlo. Um porre.


No meu último dia de estágio, eu pedi para a moça do fax para que eu mandasse um pedindo uma música que ele não tocava mais, que era I Left my Heart in San Francisco, com o Tony Benett.

Aí eu datilografei o chasque marotamente no verso da lauda da redação da Prefeitura que tinha o timbre e tal. E pedi para ela passar o fax para a redação da Guaíba. Achei que eles fossem ignorar, já que não é do programa (que era jornalístico) atender a pedidos musicais. Mas não é que ele tocou mesmo? Leu a minha carta (na época eu não mexia com Internet, imaginem). Logo depois do Renner. Ele leu a carta do "nosso ouvinte Marcelo", e tocou a música em vinil.



Quando ele começou a ler a carta, eu chamei a moça do fax, e morria de rir de incredulidade, de trás da minha máquina elétrica. Eu tenho a gravação até hoje.

Segundo o pessoal da rádio, eles só mantinham um toca-discos plugado na mesa de áudio do estúdio por causa do Flávio — e do Fernando Veronezi, que apresentava o saudoso Noturno Guaíba.

E ele nem sonhava que quem fez o pedido foi justamente um dos seus mais insolentes e fiéis "dedo duros" da Prefeitura...

Morreu o Flávio Alcaraz Gomes. E toda uma época desapareceu com ele.

Friday, April 01, 2011

Maneca e a fuga de Brizola


Jango e Brizola

Uma das lendas mais curiosas em torno do Golpe de 64 (ou a Redentora, como a batizou o Stanslaw Ponte Preta) é sobre a famosa fuga do ex-governador Leonel Brizola para o Uruguai.

A lenda diz que ele teria escapado dos militares fantasiado de mulher, mas a história contada pelo piloto particular do intrépido cunhado de João Goulart, Maneca Leães, é bem ilustrativa e digna de um esquete do Moscou Contra 007.

A história foi assim: ele e o Jango chegaram em Porto Alegre de Brasília dia 2 de abril de madrugada. O Brizola tentou convencer o Jango à resistir, mas quando viu que estava falando com um cara que se achava psicologicamente deposto, largou.

Ele queria que o Jango pusesse ele como Ministro da Justiça. Largou o presidente e foi para a prefeitura discursar, queria convocar a população e o III Exército e não conseguiu nada.

Aí ele ficou um mês e meio clandestino no RS até se exilar. Antes ele mandou a Neusa e os filhos para o Uruguai. Em Montevideu ela contatou o piloto do Jango. O cara largou a família também lá e foi para São Borja com um teco-teco.

Enquanto isso, o Brizola conseguiu uma farde da Brigada do ex-chefe da Casa Miltar dele, o Átilo Escobar, enquanto estava escondido num quartinho na casa de uma senhora (parente de outro ordenança do tempo do Piratini), no Duquesa, em plena Rua da Praia.

Ele se escondeu num cobertor embaixo do "puta merda" (aquela alça que fica em cima do porta-luvas) do Fusca dela e lá foram eles 100 quilômetros até Pinhal. Isso era 15 de maio de 64.

O piloto do Jango voou de São Borja até até Punta Del Este, enquanto os dois iam para a praia de Fusca. A missão do piloto era ir de Punta até Pinhal, pela beira do mar. Ou seja, subir quase todo o estado pela costa. Não havia um ponto de encontro específico e o Cesna não tinha instrumento de navegação.

O cara foi na base do relógio de pulso voando baixo emplena escuridão, só vendo a espuma das ondas pelo caminho. O relógio porque ele só sabia queo Brizola ia estar a duas horas e meia do ponto de onde ele partiu.

Se ele chegasse cedo ou tarde, podia ser cedo ou tarde demais.

Se algo desse errado, o Átio Escobar seria o plano 2, e teria a missão de atravessar a fronteira com um comboio da Brigada Militar e o Brizola fardado de soldado e de capacete enfiado na cabeça...


Aí então ele reotrnou com o Brizola, que o tempo todo achava que a FAB ia interceptá-los. Pousaram em Sarandi Grande, e depois foram para o Punta. O piloto disse para a mulher, depois: "resolvi o problema do gado do doutor Jango".

Só que não foi preciso. Já que o céu era de brigadeiro, o piloto, voando baixo para não ser percebido, fez o trajeto no RS no limite da plataforma continental. quando deu duas horaae meia ele se aproximou e viu um carro e um jipe, achou estranho mas resolveu pousar, e viu um BM sem capcete, era o Brizola, era umas oito da manhã.

Esse piloto, o Maneca Leães, depois seria quem traria o mesmo Brizola do exílio em 79, do Paraguai para São Borja. Não pôde trazer Jango, que morreu de infarto no exílio, três anos antes. Aliás, o único presidente brasileiro que morreu exilado.