Monday, October 15, 2007

Pela Estrada Afora


Jack Kerouac


“Em julho de 1947, tendo economizado uns cinqüenta dólares da minha velha pensão de veterano, eu estava pronto para ir à Costa Oeste”. Assim começa a louca viagem de Jack Kerouac no romance lapidar On The Road, a sua obra-prima que, este ano, completa cinqüenta anos de seu lançamento. Com o passar dos anos, se transformaria na glória e na danação de seu autor, que ao mesmo tempo em que via o livro se tornar na “bíblia da geração Beat”, se tornava numa sombra que quase eclipsou o resto de sua obra. Na história, Kerouac é Sal Paradise, um sujeito que havia passado por uma desgastante separação e que, por sua roda de amigos em Nova Iorque, travou conhecimento por um ex-delinqüente juvenil de Denver, Colorado, Dean Moriarty (na vida real, Neal Cassady), responsável pela mudança na vida do pálido e wertheriano Sal, que decidiu largar a sua vida blasé no Leste e desbravar o seu país pelas “estradas reais”, como se fossem vaqueiros urbanos modernos, porém montados em velhos chevrolets, a fim de descobrir a “verdadeira América”.

“Loucos para serem salvos” - Pense naquele seu amigo mais biruta e frenético, que gosta de boa música, festa e muita bebida (qualquer uma), se dá relativamente bem com as mulheres (mais de uma, de preferência), nunca tem dinheiro mas sempre descola um trago na madrugada, vive de bico, ri pelos cotovelos e apesar de ser o mais honesto cafajeste do mundo, tem a simpatia de todo mundo. Esse é Dean Moriarty. Para Kerouac, “ele era apenas um garotão tremendamente apaixonado pela vida e, mesmo sendo um vigarista, só trapaceava porque tinha uma vontade enorme de viver e se envolver com pessoas que, de outra forma, não lhe dariam a mínima atenção”.

No livro, Dean ( o “ santo vagabundo de mente reluzente”, como o protagonista o chamava) olhava Sal escrevendo à máquina, e dizia: “ Uau, cara! Tanta coisa para fazer, tanta coisa prá escrever!”. Moriarty queria alugar Paradise para que este o ensinasse o ofício da escrita; já Sal, como diz no livro, queria passar a vida sendo arrastado por pessoas que lhe ineressassem. Como Kerouac confidencia no conhecido trecho da obra: “para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca boceja e jamais falam chavões, mas queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício”.

Mesmo narrando suas inúmeras viagens leste-oeste pelas paragens americanas ou pelo México, Kerouac transforma Dean no personagem principal, o motivo condutor de toda a história e se transforma no evangelista do seu amigo maluco, um quixotesco messias. Jack percebe que, a despeito do seu sombrio pasado, Moriarty é um cara sensível, intuitivo e inteligente, e que serviria para ser o seu melhor personagem. Cassady/Moriarty foi quem provocou a sede mochileira de Sal e ele é o melhor pesudo-coadjuvante de todos os tempos. “ Todos os meus amigos estavam numa viagem baixo-astral, naquele pesadelo negativista de combater o sistema (...) enquanto Dean mergulhava nessa mesma sociedade, faminto de pão e amor, ele estava pouco se lixando de tudo isso”. Sem perceber, para Kerouac esse era o chamado. Era uma extrema lição de vida de um sujeito simplório e lúcido.

Três Semanas - No programa de Steve Allen, em 1957, Kerouac revelou que havia escrito On The Road em três semanas, depois de passar sete anos na estrada. De brincadeira, Allen replicou (o vídeo, antológico, pode ser conferido no You Tube) que, se passasse três semanas na estrada, levaria sete anos para escrever o livro.

Do que se pode depreeender, Jack queria reafirmar a sua tese de “ prosa espontânea”. Assim como havia escrito Os Subterrâneos “em três noites”, ele queria demonstrar que a sua técnica era quase como parar um texto em fluxo de consciência, isto é, como um enorme solo de sax, um improviso sob a violenta noite sombria, movido à benzedrina & outros estimulantes legais ou ilegais. Consta que o original de On The Road era tão experimental que foi recusado por diversas editoras. Esta recusa certamente passa pela revolução que o autor tentou empreender em transformar o livro num cavalo de batalha contra o academismo e a monotonia da literatura em favor de uma escrita livre, torrencial e intensa.

Assim nasceu, através do próprio Kerouac, a lenda que ele escreveu a história em três semanas, num rolo de telex. O texto final pode ter sido concebido desta forma, mas o certo é que muitas das magistrais descrições do ambiente norte-americano e de detalhes que passam por um perfeccionismo que foge ao perfil do escritor “ espontâneo”.

Jack também fazia anotações de tudo e de todos em cadernos de ele surrupiava quando trabalhava em pátios de manobras de estações de ferro. Tudo aquilo foi documentado no livro Diários de Kerouac, publicado em 2006. E, desde a conclusão do esboço, em 1951 até a sua publicação, em setembro de 1957, ele o reescreveu inúmeras vezes. O que parecia um parto espontâneo na verdade esconde uma obra-prima gravada com lavor de joalheiro. Porém, On The Road não é hermético; muito pelo contrário, a narrativa, cerebral e amplamente documental, traduz uma jovialidade contagiante e uma inefável objetividade jornalística cuja linguagem remonta à clássicos como Huckleberry Finn (Mark Twain) ou O Chamado Selvagem (Jack London).

Além disso, o livro é entremeado de cenas inesquecíveis – muitas hilárias - como a carona num caminhão de dinamite, outra, de pau de ararar com um bando de vagabundos, repartindo uma garrafa de vinho, ou quando Sal, empregado de vigilante, hasteia a bandeira americana dstraidamente de cabeça para baixo antes de dormir, Old Bull Lee (William Burroughs) se injetando de heroína e fazendo terapia de orgone (criada por Willihm Reich) num caixão, sem falar do diálogo em fluxo de consciência quando ele está prestes a morrer de fome e solidão em San Francisco. Sem falar das pedras de toque, onde o leitor tropeça a cada página, tais como “Não se pode ensinar novas melodias a um velho maestro”, ou “ Essa é a história da América, cada um faz o que pensa que deve fazer”.

Assim como preconizava, Kerouac viviu célere e breve como um fogo de artifício. Morreu triste e esquecido, em 1969, depois de transformar a sua vida em literatura. Como disse alguém, ele escreveu como um príncipe de sua época: feito ninguém fizera antes.

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